artigos publicações

“Os livros que Habermas não escreveu”, por Frédéric Vandenberghe

hab
Por Wolfram Huke

Por Frédéric Vandenberghe
Tradução: Diogo Corrêa
Revisão: Samantha Sales

Clique aqui para pdf

O artigo apresenta uma visão geral da produção intelectual de Jürgen Habermas nas últimas cinco décadas. Por meio da análise dos ensaios filosóficos recentemente publicados em uma caixa com cinco volumes, mostra a relevância e a pertinência da “virada linguística” na filosofia para a fundamentação discursiva das ciências humanas. Seguindo o desenvolvimento do pensamento de Habermas desde teoria social, epistemologia, ética, teoria política e jurídica até filosofia e teologia pós-metafísicas, o artigo oferece uma introdução à obra do mais sociológico dos grandes filósofos do século XX.

Sociólogos profissionais podem não ter lido muito da obra de Jürgen Habermas, mas certamente já ouviram falar dele. Durante 50 anos, a principal figura da segunda geração da Escola de Frankfurt estabeleceu a agenda intelectual não apenas na filosofia, mas também na sociologia e em disciplinas cognatas. Seus debates com Karl Popper, Hans Georg Gadamer, Niklas Luhmann ou John Rawls são parte de seu currículo. Seus muitos artigos acadêmicos sobre grandes figuras da filosofia e da teoria social, como Marx, Weber ou Parsons, Lukács, Adorno ou Foucault, são contribuições importantes por si mesmas. Cada um de seus vultuosos livros já é um clássico no campo e gerou uma pequena indústria artesanal de comentários e críticas. Veja: A transformação estrutural da esfera pública (1962), Conhecimento e interesse (1968), A teoria da ação comunicativa (1981), O discurso filosófico da modernidade (1985) e Entre fatos e normas (1992), cada um desses grandes livros já é um clássico. Em 28 de junho de 2009, Jürgen Habermas celebrou seu octogésimo aniversário. Seu editor em Frankfurt aproveitou a ocasião para publicar uma edição para estudantes de textos filosóficos em um conjunto de cinco volumes.[i] Cada volume vem com uma introdução que justifica e contextualiza a seleção de cerca de 1600 páginas da vasta obra habermasiana. Em um breve prefácio à coleção, o autor sublinha que os 36 artigos não devem ser considerados “Obras reunidas” em sentido estrito. Trata-se, em vez disso, de uma seleção sistemática e temática que substitui uma série de livros que ele não escreveu sobre temas tão importantes como os fundamentos filosóficos da sociologia, pragmática universal, a teoria da linguagem e da racionalidade, ética do discurso, filosofia política e direito internacional ou pensamento pós-metafísico. Assim, os artigos podem ser considerados estudos preliminares a livros não escritos. A seleção de textos feita pelo próprio Habermas revela o que ele pensa como sua contribuição para a tradição filosófica do século XX. Com exceção de um único texto, todos são posteriores à sua ruptura com a filosofia do sujeito. Na medida em que não há textos dos anos 60 ou 70, parece evidente que o sucessor de Horkheimer quer ser lembrado não tanto por dar continuidade (ou descontinuidade) à Escola de Frankfurt, mas por sua contribuição para a “virada linguística” – na verdade, uma virada para a ação simbolicamente mediada e para uma teoria do discurso da sociedade, da ética, do direito e da política.

Uma rápida olhada no sumário é suficiente para mostrar tanto o alcance dos seus interesses quanto o fio condutor discursivo que os liga e lhes dá sua unidade sistemática. O primeiro volume contém ensaios situados na fronteira da sociologia e da filosofia que visam clarificar os fundamentos filosóficos da teoria da ação comunicativa. Enquanto o primeiro volume reúne textos significativos sobre linguagem, comunicação e a coordenação da ação, o mundo da vida e o sistema, racionalização e modernização que preparam, anunciam e acompanham a publicação da Teoria da ação comunicativa em 1981, os três volumes seguintes se afastam da sociologia e da ação comunicativa na direção da filosofia e do discurso. De uma forma ou de outra, todos os três exploram o papel do discurso e do consenso para a fundamentação discursiva das pretensões de validade. O segundo volume contém artigos anteriormente publicados sobre a teoria da verdade como consenso, o terceiro sobre ética do discurso e o quarto sobre teoria legal e democracia. O quinto volume é o único que contém textos inéditos. Defendendo um conceito fraco de filosofia, ele se concentra na relação entre filosofia, ciência e religião.

Embora a composição arquitetônica do conjunto lembre um sólido, mas elegante, edifício do Alta Renascença, com a comunicação na base, o discurso no meio e o consenso universal na cúpula, talvez seja melhor, embora ligeiramente irreverente, compará-la a uma salsicha frankfurtiana da teoria do discurso (Vol. 2-4) entre uma fatia de teoria social (Vol. 1) e uma de filosofia pós-metafísica (Vol. 5). Seja como for, o conjunto pode ser lido tanto de trás para frente, começando com a base comunicativa da sociologia, passando da comunicação para o discurso, ou de frente para trás, começando com uma concepção deflacionada da filosofia que se baseia no consenso e é desenvolvida em troca direta com as ciências humanas. Como a publicação segue uma ordem cronológica da década de 1970 até o presente, pode-se traçar o processo de aprendizagem como tantos estágios de desenvolvimento de um filósofo universal em seu longo caminho desde as Palestras de Gauss e Entre fatos e normas até Entre naturalismo e religião.

Embora valesse a pena apresentar os livros com mais detalhes, limito-me aqui a um rápido esboço de cada livro não escrito, baseado na leitura do texto introdutório de cada volume. Para os teóricos sociais, o primeiro volume com ensaios do período de gestação da Teoria da ação comunicativa é definitivamente o mais interessante. Rompendo com a filosofia do sujeito, que concebe a história como um processo reflexivo de emancipação no qual a humanidade se torna consciente de si mesma, Habermas propõe nada mais do que uma crítica da razão sociológica. Com a intenção de dar novas fundações à sociologia, o volume é, não por acaso, intitulado Fundação linguístico-teórica da sociologia (Sprachtheoretische Grundlegung der Soziologie) – ele reformula os problemas centrais da teoria social nos termos de uma filosofia da linguagem. O que é ação social? Como a sociedade é possível? O que determina a mudança social? Essas são, de fato, as perguntas às quais o mais sociológico dos filósofos procura dar uma resposta na sua teoria da ação comunicativa. O movimento básico que inicia a virada linguística na sociologia é a substituição das práticas cotidianas de comunicação pela consciência transcendental do filósofo. A tentativa de destranscendentalizar o sujeito da razão efetua uma socialização da epistemologia neokantiana. Ao substituir as práticas epistêmicas do sujeito cognoscente pelos atos de fala dos atores ordinários, a análise se desloca da constituição do objeto de conhecimento para a constituição da sociedade. Na e pela comunicação, os atores são capazes de alcançar entendimentos acerca da situação da ação, coordenar suas ações e agir em conjunto e em concerto. A comunicação não é o fim, mas um meio. Sociologicamente falando, ela funciona como um meio para coordenar a ação do ego e do alter em um plano comum. Habermas não seria Habermas, no entanto, se não tivesse introduzido as pretensões de validade na teoria do ato de fala e concebido a comunicação como uma força racionalizadora. Por meio dos atos de fala, os atores entram em contato uns com os outros e procuram uma definição comum da situação. A linguagem é estruturada de tal modo que os atos de fala automaticamente trazem à tona pretensões de validade, que transcendem a situação, na própria situação. Com um simples “sim” ou “não”, os ouvintes podem aceitar ou declinar as pretensões de validade dos locutores. Em todo o caso, com a possibilidade de um teste público das pretensões de validade a análise passa de uma teoria sociológica da comunicação a uma análise filosófica do discurso, que é o tema do segundo volume.

Com a introdução do mundo da vida, entendido como um recurso cultural que estrutura a situação da ação, a transição de uma teoria social da ação para uma teoria da sociedade é realizada. Embora o conceito de Lebenswelt tenha sido inicialmente cunhado por Husserl, Habermas quer evitar as premissas egológicas da fenomenologia transcendental e recorre ao pragmatismo americano de George Herbert Mead. Com Mead, passamos de uma intersubjetividade monádica para uma interação simbolicamente mediada. A racionalização do mundo da vida pode ser pensada como um complexo processo de aprendizagem cuja lógica e estágios podem ser sistematicamente reconstruídos por uma sociologia do desenvolvimento piagetiana, que é também uma teoria da evolução cultural que sustenta a sua teoria da mudança social. A racionalização do mundo da vida abre caminho para uma racionalização do sistema. Com a complexificação da sociedade e a diferenciação dos subsistemas, a coordenação da ação torna-se progressivamente desvinculada do mundo da vida e mediada por meios simbólicos e abstratos de condução como o poder e o dinheiro, que padronizam a situação da ação e regulam as práticas sociais de fora. Quando o poder e o dinheiro começam a invadir o mundo da vida “como mestres colonizadores” (mas note que Habermas não tem uma única palavra a dizer sobre a colonização enquanto tal), surgem patologias sociais. A desintegração das fontes de sentido e de solidariedade que mantêm unido o mundo da vida leva ao egoísmo e à anomia, à alienação e à falta de sentido, à apatia e à impotência. A mediação transforma-se em alienação; a racionalização em reificação. Hoje, o sistema está fora de controle. A civilização está fora do rumo; a modernidade está descarrilada e, embora todos estejamos conscientes de que algo está seriamente errado e de que algo tem de ser feito, o mundo tornou-se muito complexo para soluções fáceis. A tarefa de uma autocompreensão das sociedades modernas em termos de oportunidades e riscos, possibilidades e patologias, já não pertence mais a uma filosofia especulativa da história, como era o caso na tradição hegeliana de Marx a Adorno, mas a uma sociologia do presente filosoficamente informada que aponte para tendências contrárias.

Inicialmente, as questões de linguagem, significado e racionalidade foram tratadas no contexto de uma teoria da sociedade. O contexto sociológico explica por que a comunicação é pragmaticamente entendida como um mecanismo de coordenação da ação e por que a racionalização é analisada a partir da perspectiva weberiana de uma teoria da modernidade. Quando a ação passa para o segundo plano e a validação das pretensões da verdade vem à tona, o discurso é entendido não tanto como um meio de ação concertada, mas como um dispositivo de verdade. No segundo volume, que reúne artigos sobre a teoria do significado, da racionalidade e da verdade, a comunicação é ainda analisada pragmaticamente, mas o foco está agora nas práticas epistêmicas dos cientistas e nas condições de possibilidade de se chegar a um consenso. Tal como o seu amigo e colega Karl Otto Apel, que o apresentou ao pragmatismo de Peirce, Habermas tenta superar a divisão entre uma filosofia analítica da linguagem ordinária (o segundo Wittgenstein, mas também Austin e Searle) e a hermenêutica continental (Dilthey, Heidegger e Gadamer). Embora ele agora qualifique a frase segundo a qual “a compreensão racional é embutida na linguagem como o seu telos” e revogue o seu conceito de “situação ideal de fala” como um conceito enganador que sugere uma forma ideal de vida (em vez de condições formais de entendimento genuíno), as principais intuições de sua teoria do consenso, como exposto em um antigo artigo sobre as teorias da verdade, ainda se mantêm. Quando os atores falam uns com os outros e genuinamente procuram um entendimento entre si a respeito de algo no mundo, como acontece em um seminário filosófico, eles não podem evitar trazer à tona pretensões de validade expressivas, normativas e epistêmicas. Além disso, ao envolverem-se em uma discussão sobre as pretensões de validade relativas ao mundo subjetivo, social e objetivo, eles necessária e inevitavelmente pressupõem a existência de uma “comunidade de comunicação ilimitada” ideal (igualitária e democrática, aberta e inclusiva). Com esse pressuposto quasi-transcendental e a projeção de um ideal, uma espécie de “tribunal da razão” é estabelecida no mundo da vida. Quando as pessoas passam reflexivamente da comunicação ao discurso para testar a suas pretensões de validade, elas contrafactualmente assumem que na e por meio da discussão podem chegar a um consenso e, assim, chegar à verdade (não à verdade eterna, mas à “verdade por enquanto”).

No terceiro volume, dedicado à ética do discurso, Habermas estende a teoria da verdade como consenso para o domínio da razão prática e defende a tese cognitivista de que a verdade pode ser alcançada não apenas no plano teórico, mas também nas questões práticas. Inicialmente introduzida no contexto político das questões relativas à legitimidade de um sistema de proteção social que privilegia o privado em detrimento de interesses universais, a tese cognitivista na ética dá continuidade à tradição das teorias do contrato social. Como Rawls, cuja Teoria da justiça foi publicada mais ou menos na mesma época que a Crise da legitimação, Habermas trabalha com a ficção do que poderíamos chamar de um “discurso original” (em vez de uma “posição original”), em que os participantes seriam motivados apenas pela busca cooperativa da verdade e nenhuma outra força prevaleceria além da “força do melhor argumento”. Buscando uma solução consensual para problemas práticos que fosse aceitável para todos os envolvidos no problema se tal discussão aberta ocorresse, os participantes realizariam performativamente as condições que Kant procurou expressar em seu imperativo categórico. Pelo simples fato de se envolverem em tal discurso, realizariam as condições formais, tais como liberdade, igualdade e solidariedade, que permitiriam testar se uma norma satisfaz ou não o critério de universalidade.

Se a ética do discurso visa reformular a filosofia moral de Kant em termos comunicativos, a teoria do discurso da democracia e do direito propõe o mesmo para as teorias republicanas da soberania popular. Retrospectivamente, Entre fatos e normas aparece como uma tentativa sistemática de revisitar e retrabalhar alguns dos temas que Habermas havia desenvolvido em seu livro sobre a esfera pública. Tematicamente, essa monografia clássica antecipou a virada para o discurso, mas filosoficamente ainda estava em grande parte escrita na tradição frankfurtiana da filosofia do sujeito. Os ensaios sobre teoria política republicados no Volume 4 são mais recentes. Provando, como se ainda fosse necessário, que os escritos filosóficos e técnicos sobre democracia, Estado de direito e os desafios da globalização são atravessados por, e dificilmente separáveis das, considerações mais políticas de um intelectual público, algumas delas são extraídas de sua coletânea de intervenções na esfera pública (Kleine politische Schriften [Short Political Writings], com cerca de 12 volumes até agora). Esse contexto político, sem dúvida, explica por que Habermas considera necessário contextualizar sua defesa de princípio da inclusão, participação e deliberação com uma referência ao nacional-socialismo. Sem mencionar que, assim como muitos de sua idade (por exemplo, Luhmann, Dahrendorf, Günther Grass), foi membro da Hitlerjügend, ele descreve o regime fascista como “uma patologia política a partir da qual se pode aprender alguma coisa”. Como terapia e remédio contra a permanência do autoritarismo e o ressurgimento ocasional do fascismo, defende a democracia deliberativa; como cura, prescreve a formação de uma vontade política discursivamente esclarecida dos cidadãos como contrapoder face à autocracia, ao populismo e ao despotismo. De fato, sua própria insistência na importância vital da sociedade civil (contra o Estado), da esfera pública (contra a manipulação das massas) e da democracia deliberativa (contra o decisionismo) só pode ser entendida como um antídoto ao nacionalismo e sua presunção de homogeneidade do povo, ao autoritarismo de uma aclamativa democracia que enfatiza a identidade do líder e dos liderados, bem como ao decisionismo existencial da política de poder absoluto, que caracterizou o nacional-socialismo.

Posicionando-se explicitamente contra as correntes intelectuais do início da Bundesrepublik, Habermas repreende não somente o antiliberalismo dos admiradores de Carl Schmitt e dos defensores da tecnocracia à la Luhmann, mas também da Escola de Frankfurt, cuja teoria da sociedade representa apenas uma versão sofisticada de uma teoria do totalitarismo. Como alternativa, ele propõe uma teoria liberal-republicana da democracia deliberativa e do Estado de direito, revisada comunicativamente. De acordo com os principais fundamentos da sua teoria do discurso procedural, ele argumenta que o governo é legitimado não tanto porque representa a “vontade geral”, mas porque as suas políticas são, ideal e contrafactualmente, o resultado da deliberação pública de todos os envolvidos na decisão. Em uma complexa articulação entre o princípio republicano da democracia e o princípio liberal do Estado de direito que constitui o núcleo de sua teoria discursiva do direito, ele cria um esquema institucional em que o poder político, que implementa políticas, é autorizado e legitimado pelo Estado de direito, enquanto a lei, que gera validade e legitimidade, é implementada pelo Estado. Ciente de que a globalização mina a sua concepção de democracia centrada no Estado, ele passa do nível nacional ao nível trans- e pós-nacional do direito internacional e propõe uma constituição republicana para a governança do mundo, mas sem que haja um governo mundial. Apesar de – ou, talvez, precisamente por causa disso – a atual conjuntura da política mundial não deixar muito espaço para a esperança, ele insiste nas realizações do século XX, como a criação da ONU, a aceitação universal dos direitos humanos, a proscrição da guerra. Confiantemente, ele descreve os contornos de uma sociedade mundial democrática.

O quinto e último volume do conjunto consiste em ensaios menos técnicos e mais meditativos sobre as tarefas de uma filosofia pós-metafísica, sua cooperação com as ciências e sua relação com a religião. Desde o início, Habermas distancia-se da teoria crítica e de sua grande narrativa da emancipação. A concepção da filosofia como a parteira da história, que ele defendeu até Conhecimento e interesse, pode ser a de Honneth; certamente não é mais a sua. A ideia hegeliano-marxista segundo a qual a filosofia pode, graças a uma reflexão científico-filosófica sobre o seu próprio contexto de emergência e aplicação, ajudar a humanidade a atingir a consciência da sua própria alienação, reifica inevitavelmente o eu da autorreflexão em um sujeito genérico. A humanidade não pode agir “com vontade e consciência”. Na melhor das hipóteses, a emancipação refere-se a um processo de aprendizagem por meio do qual um sujeito experimenta como mudar a si mesmo quando aprende a se ver através dos olhos dos outros. Assim que a virada linguística é feita, a filosofia da consciência deve abrir espaço para uma filosofia de comunicação entre os sujeitos que estão engajados em uma busca comum pela verdade sem garantias metafísicas. De agora em diante, a filosofia tem que se contentar com reconstruções racionais das condições formais que tornam possível o entendimento racional entre sujeitos. Nada mais e – não se pode enfatizar suficientemente – nada menos do que isso. Embora a filosofia não possa mais fingir ter acesso privilegiado ao todo, à verdade, a toda a verdade, no entanto, como substituta do universal, ela tem de manter uma orientação para o todo vivo. Em diálogo constante com as ciências, tanto naturais como sociais, sua tarefa é trazer questões relativas à verdade de fora para as ciências especializadas e lembrar aos especialistas que seu conhecimento especializado não é a totalidade do conhecimento, mas encontra a sua finalidade, o seu fundamento e a sua a unidade no mundo da vida. Em um longo e inédito manuscrito que explora as conexões pragmáticas entre o mundo da vida e as ciências, Habermas argumenta contra o duro cientificismo da biogenética e da neurobiologia, alegando que um conhecimento objetivador que abstrai sistematicamente o senso comum não pode reduzir o mundo sem excedentes. Por meio de uma reflexão filosófica sobre a fundamentação das ciências no mundo da vida, ele mostra que a perspectiva do observador encontra o seu complemento necessário na perspectiva do participante; este último não pode ser eliminado sem incorrer em uma “contradição performativa”. Em outro texto inédito, mais curto, sobre o pós-secularismo, Habermas assume uma posição forte contra os fundamentalistas iluministas e defende que a religião não irá embora. Em suas relações com a religião, nem a filosofia nem as ciências podem desempenhar o papel de inspetores da razão. Em vez de excomungar a religião, Habermas apela para a necessidade de um diálogo entre fé e ciência, para que a primeira se torne reflexiva e a segunda possa aprender com a primeira o que foi perdido e traduza os seus conteúdos semânticos em uma linguagem mais secular. De todos os volumes, o último é definitivamente o mais pessoal. Ele anuncia o grande livro de 1700 páginas sobre a religião que será também uma história da filosofia. Os dois volumeis serão publicados em breve na Alemanha. Minha aposta é que em breve ele será sucedido por uma biografia intelectual em que o maior filósofo da segunda metade do século XX paga seus débitos a seus predecessores e contemporâneos.

Habermas nem sempre é uma leitura fácil. Seu pensamento é complexo e sua escrita é sobrecarregada de trabalho, enquanto seu estilo é pesado e um tanto quanto professoral. Para entender corretamente os livros que ele não escreveu seria preciso, idealmente, ter lido os que ele escreveu. Isso pode ser pedir muito de um sociólogo comum, mas na medida em que todos os maiores autores do cânone ocidental (incluindo os grandes sociólogos) foram integrados em sua teoria discursiva da sociedade, seu trabalho oferece, de fato, um atalho para uma história intelectual da civilização ocidental. Olhando retrospectivamente para meio século de sólida teorização e “filosofização”, o leitor se impressiona com a coerência de seu projeto intelectual, a complexidade de sua elaboração e a clareza das suas intuições básicas. Em última análise, todo o seu sistema de pensamento pode talvez ser entendido como uma dedução complexa da simples convicção de que a linguagem é a ponte que liga as pessoas e que a comunicação é uma força compensatória contra o poder arbitrário. Apesar de toda a miséria e dominação, há progresso. Em tempos sombrios como o nosso, esse é um pensamento simples e reconfortante.

Nota

[i] Philosophische Texte. Studienausgabe in fünf Bänden; Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009.

Referência

Vandenberghe, Frédéric. The Books that Habermas Hasn’t Written. International Sociology Review of Books, vol. 26, n. 5, pp. 597-603, 2011.

1 comentário em ““Os livros que Habermas não escreveu”, por Frédéric Vandenberghe

  1. Gustavo Nobre

    Não creio que haja um julgamento objetivo a esse respeito, mas pessoalmente não acho reconfortante. Intelectualmente creo que esse conforto tem algo de insultuoso. Mas acho, sim auspicioso.

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Descubra mais sobre

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading