Por Estevão Bosco (UNICAMP)[1]
Por uma teoria social cosmopolita: modernização, mundialização/globalização e entendimento intercultural
Para viver com o outro, enquanto o outro do outro – esta tarefa humana básica se aplica tanto ao nível micro quanto ao nível macro. Assim como cada um de nós aprende a viver com o outro no processo de maturação individual, um processo similar de aprendizagem permanece verdadeiro para comunidades mais amplas, para nações e Estados […] Onde o objetivo não é (unilateralmente) a dominação ou o controle, nós estamos suscetíveis de experimentar a alteridade dos outros precisamente contra o pano de fundo dos próprios preconceitos. Neste contexto, o maior e mais elevado objetivo pelo qual podemos lutar é tomar parte junto a esse outro, no sentido de compartilhar a alteridade do outro […] Podemos então aprender a experienciar a alteridade e outros humanos como o “outro de nós mesmos”, de modo a participar do que é do outro.
Hans-Georg Gadamer, Das Erbe Europas: Beiträge, 1989, p. 28-34.
O propósito inicial de meu estudo doutoral era elaborar uma reconstrução da ideia de cosmopolitismo na história da teoria social. À luz das resignificações recentes, cujo propósito amplo é o de endereçar a intensificação recente da mundialização/globalização[2], o projeto de pesquisa visava explorar o potencial teórico, metodológico e político-normativo do cosmopolitismo. Entretanto, seu uso nos clássicos era pontual, sendo mais utilizado como metáfora do que como conceito.
Duas ocasiões em que o termo foi utilizado exemplificam isso. Na edição original do Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels preconizam que a exploração do mercado pela burguesia via a produção industrial e o consumo, tende a tornar cosmopolita todas as nações[3]. Simmel associa ao termo a crescente diferenciação das formas de socialização e da constituição social da individualidade nas metrópoles[4]. Se para Marx e Engels o que é cosmopolita vem associado às proporções globais da produção e do consumo na sociedade capitalista, em Simmel está associado à diversificação cultural das condições de vida metropolitanas. Apesar da distância entre as posições metódicas dos autores, se atentarmos para o que é designado no mundo como cosmopolita, denota-se uma vinculação de significado grosso modo comum: o cosmopolitismo da vida social moderna consiste no efeito antropológico e sociológico gerado por uma modernização continuada que, cada vez mais, diversifica material e simbolicamente a situação de vida e nossa experiência do mundo. Em termos atuais, diríamos que a isso corresponde um tipo determinado de intersubjetividade da experiência: para usar a expressão cunhada pelo antropólogo Charles Piot, tratar-se-ia de “processos de transculturação[5]”. Num sentido sociologicamente amplo, falaríamos, com Ulrich Beck, em “cosmopolitização reflexiva[6]”.
Essa mudança no sentido associado ao termo se deve, em larga medida, à intensificação recente da mundialização/globalização. O que antes era apenas uma metáfora para designar aspectos genéricos da experiência em uma sociedade recentemente industrial, passou a ser vinculado a experiências específicas e diversificadas em uma sociedade mundializada e globalizada, cujo efeito cumulativo é significativo. O cosmopolitismo passou a designar fenômenos no mundo. À luz destes últimos, teóricos sociais vieram a reivindicar um giro cosmopolita, na tentativa de superar, por exemplo, o etnocentrismo (Bhambra e Mignolo) e o nacionalismo metodológico (Chernilo, Fine e Beck) de teorias gerais estabelecidas, ou ainda, superar o baixo grau de normatização das relações internacionais (Habermas e Held). Em Marx-Engels e Simmel, o cosmopolitismo está longe de possuir esse horizonte compreensivo, embora o seu emprego já presumisse, naquela época, a referência a processos de transculturação. Interessado justamente nesse potencial, acabei por definir o domínio de objeto da tese pela vinculação interna entre modernização e cosmopolitismo estabelecida na teoria social contemporânea. Com esse domínio de objeto, os programas teóricos de Habermas e Beck e as versões pós/descoloniais de cosmopolitismo passaram a ocupar lugar proeminente.
I
O estudo apresenta duas teses, uma descritiva, outra teórica. A tese descritiva sustenta que, na teoria social contemporânea, a resignificação da ideia de cosmopolitismo define três dimensões de sentido – como categoria e conceito para o diagnóstico de época, como fundação teórica e metodológica experimental e como projeto político. Uma revisão ampla de estudos sobre o cosmopolitismo na filosofia, na sociologia, na ciência política e nos estudos pós-coloniais, levou-me a concluir que, enquanto fenômeno no mundo, o cosmopolitismo invoca fundamentalmente a diversidade cultural das formas de vida e o entrelaçamento histórico das sociedades. O sentido interpretativo da tese descritiva fica então como segue: a vinculação entre modernização e cosmopolitismo é operada com o propósito de compreender as transformações impulsionadas por uma modernização que, além de racionalizar socialmente, também mundializa e globaliza. A estratégia metodológica utilizada foi a reconstrução.
De seu lado, a tese teórica sustenta que a concepção de modernização como racionalização social é insuficiente para compreender uma modernização que mundializa e globaliza, i.e o cosmopolitismo efetivamente existente. Num sentido fundamental, isso se deve, assim argumento, a sua pressuposição metateórica, segundo a qual seria possível deduzir o todo da modernização pelo efeito universal de racionalização que a mesma introduz na imbricação interna da parte (mundo da vida e sistema, no caso de Habermas; formas de socialização e instituições modernas, no caso de Beck). O problema de pesquisa fica então como segue: tradicionalmente, os conceitos e categorias elaborados no contexto da teoria da modernização estão voltados para a manifestação desta última como racionalização social no interior da sociedade (efeito do todo sobre a parte), e neste sentido não nos permite compreender uma modernização que mundializa e globaliza[7] (relação entre as partes). O movimento que vai da modernização como racionalização social para a modernização como mundialização/globalização consiste, precisamente, no núcleo da tese teórica.
Em vista disso, argumento que, para endereçar as transformações advindas da mundialização/globalização, seria necessário partir da pressuposição metateórica da relação entre as partes – entre as sociedades. Na hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer[8], encontro as definições que permitem fundamentar esse ponto de partida.
II
O estudo comporta duas partes. Na primeira, a reconstrução circunscreve as três versões da relação modernização e cosmopolitismo suprarreferidas. Nos capítulos I e II, reconstruo os programas de Habermas e Beck, e no terceiro, as versões pós e descoloniais de cosmopolitismo, formuladas por Gurminder Bhambra e Walter Mignolo, respectivamente. A seguir, discorro brevemente sobre o que a tese teórica revela nos programas de Habermas e Beck e nas versões pós e descoloniais.
Ao pensar o todo da modernização apenas como racionalização sistêmica do mundo da vida (Habermas) e como racionalização no sentido da indução institucional de uma situação social de ameaça (Beck), os autores tomam a manifestação histórica e culturalmente particular da modernização nas sociedades dominantes do mundo (Ocidente) como universal. A consequência histórico-sociológica disso reside em uma teleologia da modernização mundial, a qual se iniciaria no Ocidente e se difundiria linear e progressivamente para o Resto. No plano teórico, a insuficiência geral dessa teleologia histórica da sociedade moderna consiste em uma concepção de transformação social que é cultural e historicamente autofágica. A rigor, pode-se falar aqui de uma aporia no uso sociológico do conceito de modernização: por um lado, a transformação social impulsionada pela modernização seria cultural e historicamente autofágica quando olhamos para as sociedades mais evoluídas do Ocidente (Habermas) ou pioneiras da modernização (Beck); por outro, a transformação social estimulada pela modernização seria cultural e historicamente entrelaçada quando se difunde para as sociedades do Resto. Isso não apenas desconsidera arbitrariamente as influências que as sociedades não-ocidentais tiveram e têm sobre as sociedades ocidentais – como Lévi-Strauss[9], Sebastian Conrad e Shalini Randeria[10], por exemplo, tão bem mostram –, mas também conduz a um congelamento das assimetrias históricas no interior da sociedade mundial.
No plano empírico, isso leva a dois equívocos. Primeiro, Habermas e Beck pressupõem, respectivamente, um Ocidente potencialmente cosmopolita ou já cosmopolita; segundo, associam exclusivamente a essa região do mundo práticas sociais cosmopolitas. Estudos aplicados sobre o cosmopolitismo atual contestam ambas as suposições, ao não confirmar a predominância de práticas sociais cosmopolitas no Ocidente e ao identificar tais práticas fora do dele[11].
No plano metodológico, a ancoragem em uma modernização como racionalização social inscreve o diagnóstico da mundialização/globalização e da cosmopolitização na antinomia Ocidente/Resto, incorrendo no equívoco de fundir fronteira geopolítica, que é historicamente conjuntural, e fronteira sociológica. Assim, inapta a apreender a relação entre as sociedades, a racionalização social passa ao largo de processos históricos constitutivos do alcance mundial da modernização – como a colonização e o imperialismo – e daquilo que o cosmopolitismo invoca no mundo – a diversidade cultural e o entrelaçamento histórico das sociedades. No plano normativo, isso conduz ao equívoco de tomar o horizonte normativo histórica e culturalmente particular de determinada região do mundo (Ocidente) como mundial. Por fim, pode-se dizer que a vinculação modernização-cosmopolitismo operada por Habermas e Beck parece romper com o princípio crítico da imanência, já que desconsideram as condições efetivas de vida extraocidentais em seus diagnósticos da mundialização/globalização e proposições político-normativas.
No que concerne ao programa habermasiano, essas insuficiências gerais são expressão de três insuficiências específicas, duas teóricas e uma político-normativa. Estas últimas decorrem de vinculações internas determinadas entre entendimento mútuo concebido comunicativamente, teoria da evolução social, teoria em dois níveis da sociedade e constelação pós-nacional. No caso de Beck, são expressão da relação entre fundação metodológica experimental no cosmopolitismo e diagnóstico de época. Trata-se, nesse sentido, de construções teóricas distintas que levam a insuficiências gerais similares. Isso se deve, assim argumento, à ancoragem comum na modernização como racionalização social.
É preciso frisar, contudo, que tais insuficiências gerais são parcialmente verdadeiras no caso da teoria da sociedade mundial de risco, tendo em vista seu conceito tridimensional de cosmopolitismo – como diagnóstico de época, como fundação metodológica experimental e como projeto político. Em seu diagnóstico, Beck identifica no risco um fenômeno que entrelaça as sociedades. Por isso, em seu esforço incansável de abrir a sociologia para as transformações recentes da sociedade, o autor define uma trans-historicidade vinculada à territorialidade como orientação metodológica de seu projeto cosmopolita de conhecimento. Nisto reside a parcialidade. O problema é de ordem procedimental, no sentido da correspondência entre a orientação metodológica e o diagnóstico. Beck não logrou traduzir seu cosmopolitismo metodológico em um diagnóstico de época efetivamente mundial[12]. Ao pressupor as condições efetivas de vida das sociedades democráticas do Ocidente, a pretensão global de seu diagnóstico do risco é, no melhor dos casos, ocidental[13]. Esse problema também é encontrado nos planos histórico e lógico: como argumentam, por vias distintas, Daniel Chernilo[14], Robert Fine[15] e Sérgio Costa[16], sua resignificação do cosmopolitismo é eurocêntrica, ou ainda, como prefere Gurminder Bhambra[17], ela é “ocidentalocêntrica”.
No Capítulo III e último da Parte I, volto-me para as versões pós e descoloniais de cosmopolitismo. Bhambra e Mignolo são particularmente bem-sucedidos em endereçar, nos planos do diagnóstico e político-normativo, a diversidade cultural e o entrelaçamento histórico das sociedades que o cosmopolitismo invoca. O ponto de partida dos autores é a desconstrução histórica de antinomias como metrópole/colônia, civilizado/bárbaro, Ocidente/Resto, que orientam os discursos dominantes da modernidade, iluminando seu caráter epistêmico. Justificando a necessidade de um descentramento epistêmico nas ciências sociais, o ponto de chegada é um projeto de conhecimento ancorado no diagnóstico das condições de vida extraocidentais, no entrelaçamento entre elas e com as sociedades ocidentais.
Contudo, apesar do proveito que essas versões têm para a tese teórica, a ancoragem na indistinção entre discurso e mundo se distancia da fundamentação hermenêutica adotada. De acordo com esta última, trata-se menos da particularidade irredutível da situação histórica e dos sentidos diversos que a ela podemos atribuir discursivamente, do que enfatizar a finitude intrínseca da compreensão do mundo de que somos capazes[18]. A vantagem dessa perspectiva reside em que, ao não fundir discurso e mundo, logra-se, em princípio, levar em consideração a diversidade das imputações possíveis de sentido ao mundo (discurso) e manter um elemento comum a todos os discursos, que consiste precisamente no fenômeno situado no mundo que buscamos compreender na medida em que sobre ele dizemos alguma coisa[19]. Por exemplo, os discursos que Habermas, Beck, Bhambra e Mignolo formulam a respeito da modernização (mundo suposto comum) iluminam aspectos distintos (finitude de nossa compreensão do mundo) igualmente verdadeiros. Assim, a modernização pode ser caracterizada tanto por uma racionalização crescente (Habermas e Beck) quanto pela reatualização de mecanismos coloniais de dominação (Bhambra e Mignolo). Essa perspectiva parece permitir assegurar a validade de críticas distintas em sua respectiva referência ao fenômeno estudado, sem recair num relativismo. A posição metódica daí decorrente é a seguinte: as teorias, sejam elas de onde forem e por quem foram escritas, desvelam aspectos distintos do mundo suposto comum e, por conta disso, dizem verdades distintas sobre ele que, eventualmente, podem ser complementares.
III
Na Parte II, os desafios colocados pela modernização como mundialização/globalização dão forma a um programa de pesquisa reconstrutivo. Esses desafios estão estruturados na forma de um crescendum, que vai sucessivamente do plano metateórico ao teórico, ao metodológico e ao político-normativo. Para levar a cabo a abertura da teoria da modernização para a mundialização/globalização, passo a dialogar com um conjunto mais amplo de estudos. Com isso, pretendo esboçar os contornos fundamentais dessa abertura tal como ela se apresenta para mim hoje. A dimensão da cultura (mundialização) é privilegiada, por remeter a aspectos sociologicamente antecedentes ao mercado e à política (globalização). Ao longo do percurso, hipóteses razoáveis são formuladas, cuja pertinência deverá ser explorada em estudos posteriores.
Num primeiro momento, reaprecio as insuficiências anteriormente identificadas nos programas de Habermas e Beck a partir da confrontação das pressuposições empíricas de seus respectivos diagnósticos de época, com estudos aplicados sobre o cosmopolitismo atual; estudos estes distribuídos nos temas questão ambiental, mídia, identidade cultural e pós-colonialidade. Neste momento, as respectivas insuficiências no plano teórico e no plano do diagnóstico são vistas em seu desdobramento no plano político-normativo do cosmopolitismo, resultando naquilo que denomino de “equívoco da univocidade ocidental” de práticas sociais cosmopolitas. Em seguida, busco mostrar como as assimetrias históricas mundiais são centrais para o diagnóstico do cosmopolitismo atual, eo ipso, de uma modernização que também mundializa e globaliza. A ênfase então é dada à reprodução de tais assimetrias no contexto dos noticiários internacionais e da midiatização da questão ambiental.
Num terceiro momento, o diálogo com os estudos aplicados permite tratar de aspectos fundamentais da experiência da mundialização, que interessam ao plano teórico. Aqui, busco mostrar como o conceito de experiência hermenêutica formulado por Gadamer[20] é particularmente elucidativo para compreender esse tipo de experiência. Nesse contexto, a hipótese apresentada circunscreve os conceitos hermenêuticos de experiência e situação e o conceito de situação da fenomenologia social de Alfred Schütz e Thomas Luckmann[21]. Esse diálogo hermenêutico-fenomenológico visa delinear conceitos de experiência e de situação que estejam em medida de revelar pré-condições da experiência da mundialização.
Assim concebida, a experiência da mundialização invoca um conceito indiciário de entendimento intercultural. Num quarto passo, esse conceito é definido em duas esferas estruturantes internamente vinculadas, uma hermenêutica, outra teórico-sociológica. No plano hermenêutico, distinguem-se três aspectos do uso da linguagem que desvelam pré-condições de um tipo intercultural de entendimento, a saber: o caráter semanticamente flutuante da palavra, a natureza intersubjetivamente vinculante do uso da linguagem e a analogia como mediação da imbricação entre pensamento e linguagem[22]. No plano teórico-sociológico, volto-me para a relação problemática entre cultura e episteme no contexto da pretensão de verdade e para tipos de aprendizagem mediatizados pelo entendimento intercultural. A hipótese que conecta esses dois planos sustenta que o acontecer de um tipo intercultural de entendimento está na origem de uma diversificação semântica das estruturas linguísticas compartilhadas intersubjetivamente no mundo da vida e uma diversificação dos signos do pensamento. Nesse contexto, sugere-se então falar de coevolução cultural ao lado de evolução social (Habermas). Disso, depreendem-se duas orientações metodológicas: orientar o diagnóstico de época para fenômenos que iluminam o entrelaçamento histórico das sociedades (risco, diáspora, guerra, catástrofes, mídias, imigração, turismo, relação amorosa à distância, por exemplo) e, a contar com os limites de nossa compreensão do mundo (Gadamer), estimular uma prática de pesquisa cooperativa interlocal, internacional e inter-regional.
Os planos hermenêutico e teórico-sociológico do tipo intercultural de entendimento apontam para a necessidade de elaborar um conceito de distância cultural. No momento atual de minhas reflexões, imagino que um conceito como esse possa se beneficiar do conceito gadameriano de distância temporal[23] e do conceito fenomenológico de estranhamento de Bernhard Waldenfels[24]. Mas também deve se beneficiar de estudos em linguística evolutiva como o de Salikoko Mufwene[25], que revela o entrelaçamento histórico das culturas a partir dos fenômenos de crioulização, miscigenação e hibridização linguística. Assim como, o diálogo deve abrir-se para estudos antropológicos que também diagnosticam o entrelaçamento das culturas, como, por exemplo, o já referido de Lévi-Strauss, de Marshall Sahlins[26] e de Lilia Schwarcz[27]. Os estudos pós-coloniais também são importantes aqui, tanto as etnografias como as interpretações sociológicas da história da sociedade moderna[28].
A partir disso, e num quinto momento, vislumbro uma concepção de modernização dotada de duas dimensões: por um lado, temos a pressuposição metateórica de dedução do todo pela parte, o entendimento mútuo concebido comunicativamente, a evolução social e a modernização como racionalização social; por outro, temos a pressuposição metateórica de dedução do todo pela relação entre as partes, o entendimento intercultural concebido hermeneuticamente, a coevolução cultural e a modernização como mundialização/globalização. Nesta segunda dimensão, a mundialização é associada ao mundo da vida (sociedade civil), a globalização ao sistema (Estado e mercado). Compreende-se assim que é revindicada uma complementaridade com a teoria da sociedade de Habermas[29].
À luz do tipo intercultural de entendimento, a hipótese que orienta a modernização como globalização é a seguinte: além de uma colonização sistêmica do mundo da vida (Habermas), teríamos também uma colonização dos mundos da vida pelo sistema global, cujos efeitos liberados seriam um tipo de racionalização transcultural, no sentido de simplificação e substituição do entendimento intercultural pelos medium do poder e do dinheiro – como no imperialismo, por exemplo –, e uma subalternização transcultural[30]. Essa hipótese sugere fenômenos de crise correspondentes na reprodução do mundo da vida – perda de sentido, alienação, anomia, colonialismo interno. De modo a explorá-la, salienta-se a necessidade de contar com estudos como, por exemplo, a análise do sistema-mundo formulada Immanuel Wallerstein[31], de Anthony Anghie[32] sobre a história do direito internacional moderno, de Jack Goody[33] sobre a construção discursiva da história moderna, de Pablo González Casanova[34] sobre o colonialismo interno e de Aníbal Quijano[35] sobre a colonialidade do saber.
De seu lado, a hipótese que orienta a modernização como mundialização é a seguinte: partindo do que estudos aplicados nos mostram, sugere-se, por um lado, falar de uma meta-empatia intercultural que pode vir a estimular a solidarização como empatia intercultural[36]; essa meta-empatia seria o que está presumido no fenômeno da cosmopolitização reflexiva diagnosticado por Beck. Por outro lado, fala-se de um meta-juízo de valor, que pode mostrar-se constringente para a integração como juízo transcultural de valor[37]. Inicialmente, essa hipótese deverá ser explorada à luz de estudos sobre os novos movimentos sociais, o ativismo global e o multiculturalismo.
No que concerne à concepção de modernidade, o caminho que vai do entendimento intercultural para a modernização como mundialização/globalização parece se aproximar daquilo que a antropóloga pós-colonial Shalini Randeria caracteriza como “modernidades entrelaçadas[38]” (entangled modernities). Segundo o diagnóstico de Randeria, o mundo moderno teria sido “coproduzido” por uma dinâmica ambivalente de compartilhamentos e diferenciações entre as sociedades. No plano cultural, compartilhar também significa diferenciar-se, porque a reflexividade ativada no contato com o outro cultural acontece sempre já de modo antropológica, sociológica e historicamente situado. No lugar de uma imagem de mundo tendencialmente homogênea, a qual induz, em última instância, uma modernização que se difundiria teleologicamente do Ocidente para o Resto, temos mais diferenciações no interior das sociedades. A concepção de modernidade a que a modernização como mundialização/globalização remete, deverá ser formulada mediante uma revisão ampla de desenvolvimentos recentes, como, por exemplo, o de “modernidades múltiplas[39]”.
O caminho percorrido visa esboçar referências fundamentais para abrir a teoria da modernização para a mundialização/globalização e a cosmopolitização. Num sexto e último momento, dirijo-me para implicações político-normativas do conceito indiciário de entendimento intercultural, tendo em vista aquilo que Habermas e Beck vislumbram como uma ordem mundial cosmopolita, possível e necessária. O horizonte de um projeto “cosmopolítico” mundial pressupõe, como salientam os autores, uma abertura cosmopolita do diálogo, seja no âmbito interno da relação entre Estado e sociedade, seja no âmbito da relação entre Estados. Entretanto, argumento que, por si só, tal abertura do diálogo consiste em uma orientação da ação por demais elementar. Ela deve vir acompanhada de questões relativas à justiça e à política, que levem em conta as assimetrias históricas mundiais. O risco de não proceder dessa maneira consiste justamente na reprodução de tais assimetrias, como é o caso quando se toma uma linguagem local (do Ocidente) como gramática mundial.
O argumento inicial é o seguinte: o déficit normativo nas relações internacionais (Habermas) parece decorrer do fato de que a condição historicamente entrelaçada das sociedades (entendimento intercultural) não está adequadamente refletida. Abrindo diálogo com estudos políticos sobre a ordem internacional[40] e sociológicos sobre as mudanças climáticas[41], três orientações gerais da ação institucional são vislumbradas, visando a construção de uma ordem mundial cosmopolita. No plano dialógico-normativo, parece necessário orientar a ação normatizadora para a correspondência entre normatização das relações internacionais e o estado historicamente entrelaçado das sociedades. Num sentido prático imediato, isso implica em assegurar iguais oportunidades de participação nos processos de tomada de decisão na esfera internacional. No plano jurídico, trata-se de orientar a ação jurisdicional para a efetivação das normatizações existentes nos tribunais internacionais e nacionais, no sentido de instituir compensações financeiras por danos causados por empresas multinacionais e por Estados. E no plano político, trata-se de orientar a ação estatal para acordos racionalmente motivados tendo em vista um princípio de coresponsabilidade[42]. Essas três orientações sugerem que é importante olhar para as negociações internacionais, uma vez que talvez este seja o contexto institucional de interação par excellence onde diferentes tradições e mundos da vida se encontram e, com base em posições de maior ou menor abertura e poder militar e econômico, esforçam-se pela resolução de problemas que parecem, no mais das vezes, sistêmicos.
V
Compreende-se pelo o que foi dito que meu estudo doutoral gravita seletivamente entre filosofia das ciências sociais, teoria social, sociologia, antropologia, ciência política e estudos pós-coloniais. Dois princípios hermenêuticos justificam essa amplitude disciplinar, no sentido de evitar a fragilidade teórica do que pode ser visto como uma “colcha de retalhos”. Primeiro, a geração linguística de um mundo que existe para além de nós e apesar de nós permite, por definição, levar em conta imputações diversas de sentido sobre um mesmo fenômeno no mundo, sem recair num relativismo discursivo. A geração linguística do mundo consiste no aspecto comum que possibilita reunir interpretações distintas de um mesmo fenômeno. E segundo, a primazia da referência a algo no mundo – ao fenômeno da modernização, por exemplo – é o que assegura, em sentido último, a cientificidade da pretensão de validade. Num sentido fundamental, esses dois princípios podem operar como ponto de partida reconstrutivo e garantir a coerência necessária para fundamentar uma abertura da modernização para a mundializacão/globalização e a cosmopolitização.
A perspectiva de longo alcance aqui vislumbrada parte da intuição de que uma teoria social que reivindica um horizonte cosmopolita pode ser fundamentada em uma hermenêutica crítica e intercultural. De maneira mais específica, parece-me que uma hermenêutica como essa estaria em medida de tornar a teoria da modernização efetivamente cosmopolita, no sentido de revelar aspectos da diversidade cultural das formas de vida e do entrelaçamento histórico das sociedades enquanto condição do nosso estar no mundo. A racionalidade reside aqui na aprendizagem com a experiência dos outros de nós mesmos, cujo horizonte, por definição, é infinito. Isto é, na finitude imanente de nossa compreensão do mundo, podemos sempre aprender mais.
Notas:
[1] Doutor em Sociologia (IFCH/UNICAMP), pesquisador-colaborador do Departamento de Sociologia e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) da UNICAMP. Este texto para o blog do Sociofilo é um resumo de minha tese de doutorado, de mesmo título e defendida em maio de 2016. A pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
[2] Adoto aqui a diferenciação entre mundialização e globalização elaborada por Renato Ortiz em “Mundialização e cultura” (São Paulo, Brasiliense, 2003, Cap. I). Por globalização, Ortiz se refere às formas de integração funcional do mercado e do Estado para além do espaço nacional. Por mundialização, remete à diversidade de visões de mundo que coexistem, à particularidade local ou nacional de expressões culturais que se entrelaçam na história. Enquanto entrelaçamento, fala-se potencialmente de aspectos culturais mundialmente comuns, compartilhados. A partir disso, introduzo uma diferenciação adicional em relação à cosmopolitização. O conceito se refere à diversidade cultural como dimensão sincrônica da experiência e ao entrelaçamento histórico como dimensão diacrônica. A cosmopolitização possui, portanto, uma estreita vinculação com o que Ortiz denomina de mundialização. O que é enfatizado aqui, todavia, é um efeito possível da mundialização: a cosmopolitização se refere a vínculos sociais que se estabelecem na esteira da circulação mundial de significações e fenômenos que estimulam, potencialmente, tipos de solidarização intercultural.
[3] Marx, K.; Engels, F. Manifest der kommunistischen Partei. In: Werke. Berlin: Dietz, 1973, p. 168.
[4] Simmel, G. Sociologie: étude sur les formes de socialisation. Paris: PUF, 1999, p. 704-708.
[5] Piot. C. Remotely Global: village modernity in West Africa. Chicago: University of Chicago Press. 1999, p. 23.
[6] Beck, U. Qu’est-ce que le cosmopolitisme? Paris: Aubier, 2006, p. 180-188.
[7] Apesar de, no momento, eu não poder ir além da simples constatação, é interessante notar que a tese metateórica da pressuposição de dedução do todo pela parte parece invocar uma reconstrução histórica da teoria social que remonta à Marx. É o que sugere o seguinte trecho do prefácio à primeira edição d’O Capital: “[…] O país industrialmente mais desenvolvido mostra ao menos desenvolvido tão somente a imagem do próprio futuro” (tomo 1, São Paulo, Abril Cultural, 1996, p. 130).
[8] Gadamer, H-G. (1999). Verdade e método I: esboço de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes.
[9] Lévi-Strauss, C. Race et histoire. Paris: UNESCO, 1952.
[10] Conrad, S.; Randeria, S.. Einleitung : geteilte Geschichten – Europa in eine postkolonialen Welt. In: Conrad. S.; Randeria, S. Jenseits von Eurozentrismus: postkolonialen Perspektiven in der Geschichts- und Kulturwissenschaften. Frankfurt am Main : Campus, 2002, p. 09-49.
[11] cf. tese, p. 260-282.
[12] O número especial do British Journal of Sociology editado em parceria com Edgar Grande no ano de 2010, intitulado Varieties of second modernity: extra-European and European experiences and perspectives, sugere que Beck estivesse a buscar superar esse problema. Algo que contribui para compreender esse hiato entre cosmopolitismo metodológico e diagnóstico é a história de sua teoria. Desde 1986, ano da publicação de seu Risikogesellschaft, a experimentação transdisciplinar de Beck se concentrou, sobretudo, no diagnóstico. Foi somente a partir de 2000, aproximadamente, que se voltou para questões de fundamentação. Se não viesse a falecer em janeiro de 2015, talvez a reformulação do diagnóstico fosse apenas uma questão de tempo. É o que sugere, me parece, o projeto que estava a coordenar – Methodological Cosmopolitanism – In the Laboratory of Climate Change.
[13] Além do capítulo II da tese, remeto a um artigo a ser publicado ainda neste mês de agosto que sintetiza esse argumento: Bosco, E.; Ferreira, L. Ulrich Beck: teoria, críticas e legado. Sociologias (UFRGS), 2016, no prelo.
[14] Chernilo, D. Social’s Theory methodological nationalism: myth and reality. European Journal of Social Theory, v. 1, n. 9, 2006, p. 05-22.
[15] Fine, R. Cosmopolitanism. London: Routledge, 2007, p. 09 sq.
[16] Costa, S. Dois atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: UFMG, 2006, Cap. II.
[17] Bhambra, G. Cosmopolitanism and post-colonial critique. In: Rovisco, M. & Nowicka, M. (eds.). The Ashgate Companion to Cosmopolitanism. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2011, p. 313-28.
[18] Gadamer, op.cit., p. 416-458 e 636-661.
[19] Ibid., p. 406.
[20] Ibid., p. 512-533.
[21] Schütz, A.; Luckmann, T. The structures of the life-world, v. 1, Evanston: Northwestern University Press, 1973, p. 35 sq.
[22] cf. tese, p. 301-312.
[23] Gadamer, op.cit., p. 436-448.
[24] Waldenfels, B. Grundmotive einer Phänomenologie des Fremden. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2006.
[25] Mufwene, S. The ecology of language evolution. Cambridge: University of Cambridge, 2004.
[26] Sahlins, M. How “natives” think: about Captain Hook, for example. Chicago: Chicago University, 1995.
[27] Schwarcz, L. Espetáculo da miscigenação. In: Estudos Avançados, IEA/USP, v. 8, n. 20, 1994.
[28] Cf. tese, Cap. III.
[29] Gadamer não formula uma teoria da sociedade, mas uma hermenêutica da verdade e do método com interesse para as ciências sociais. Isso quer dizer que a complementaridade reivindicada com a teoria habermasiana da sociedade visa garantir referências estruturais que, em princípio, permitiriam direcionar a abertura da teoria da modernização para a mundialização/globalização a partir da hermenêutica gadameriana.
[30] Aqui, utilizo o prefixo “trans-” no lugar de “inter-” com o propósito de indicar uma violência simbólica potencial na representação do outro cultural.
[31] Wallerstein, I. The modern world system. New York: Academic Press, 1976.
[32] Anghie, A. Francisco de Victoria and the Colonial Origins of International Law. In: Social & Legal Studies, v. 5, n. 3, 1996, p. 321-336; Imperialism, sovereignty and the making of international law. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; e The evolution of international law: colonial and post-colonial realities. Third World Quarterly, v. 27, n. 5, 2006, p. 739 – 753.
[33] Goody, J. The theft of history. Cambridge : Cambridge University Press, 2006.
[34] González Casanova, P. Colonialismo interno (una redefinición). In: Boron, A.; Amadeo, J.; Javier, G.; González, S. La teoría marxista hoy: problemas y perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, 2006, p. 409-434.
[35] Quijano, A. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000.
[36] Na tese, tomo como exemplo dessa meta-empatia a Revolução Tunisiana de 2011, que, de alguma maneira, acabou por estimular movimentos de protesto mundo afora – Primavera Árabe, Indignados, Occupy’s. Ver: p. 337-339.
[37] Penso aqui, por exemplo, no valor generalizante e prévio atribuído a alguém de origem cultural distinta da própria. Nesse tipo de representação, inclusive, basta parecer de outra origem cultural para que um valor seja atribuído.
[38] Randeria, S. Entangled histories of uneven modernities: civil society, caste solidarities and legal pluralism in post-colonial India. In: Elkana, Y.; Krastov, I.; Macamo, E.; Randeria, S. (eds). Unraveling Ties: From social cohesion to new practices of connectedness. Frankfurt: Campus, 2002, p. 284–311.
[39] Eisenstadt, S. Multiple modernities. In: Daedalus, v. 1, n. 129, 2000, p. 01-29.
[40] cf, tese, p. 30-38 e 343-356. Esses estudos políticos circunscrevem basicamente os seguintes temas: governança, justiça, nacionalismo e ética.
[41] Ferreira, Leila. Cidades, sustentabilidade e risco. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 9, 2004, p. 23-31Ferreira, L.; Barbi, F. The challenge of global environmental change in the Anthropocene: an analysis of Brazil and China. In: Chinese Political Science Review, 2016, p. 01-13; Dobson, A. Globalisation, cosmopolitanism and the environment. In: International Relations, v. 19, n. 3, 2005, p. 259–273; Hayden, P. The environment, global justice and world environmental citizenship. In: Brown, G.A.; Held, D. The cosmopolitan reader. London: Polity, p. 351-372; e Ribeiro, Wagner Costa. Geografia política e gestão internacional dos recursos naturais. In: Estudos Avançados/USP, n. 24, 2010, p. 69-80.
[42] No âmbito da relação entre Estados, esse princípio parece se aproximar daquilo que Frédéric Vandenberghe sugere quando advoga em favor da construção de um “Estado para o cosmopolitismo” orientada por políticas de reconhecimento entre Estados nacionais. Ver: Vandenberghe, F. Um estado para o cosmopolitismo. Novos estudos – CEBRAP [online], n.90, 2011, p. 85-101.
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