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Entrevista com Timothy Pachirat, por Avi Solomon

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Tradução de Leonardo Carbonieri Campoy

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Fazendo etnografia disfarçado de trabalhador em um abatedouro: uma entrevista com Timothy Pachirat[1]

Timothy Pachirat é professor assistente de ciência política na Universidade de Massachusetts Amherst e autor de Every twelve seconds: industrialized slaughter and the politics of sight, uma análise etnográfica de seu trabalho disfarçado em um abatedouro de gado. O livro de Pachirat revela o atemporal padrão humano de violência escondida e de relutância para perceber realidades desagradáveis no qual estamos todos implicados pelo simples fato de vivermos juntos em sociedade. Eu o entrevistei em 2012, como parte da minha MetaHack série de entrevistas.

Avi Solomon: Conte-nos um pouco sobre você.

Timothy Pachirat: eu nasci e cresci no nordeste da Tailândia, em uma família tailandesa–americana. No ensino médio, eu passei um ano como aluno de intercâmbio no high desert do Oregon rural, onde eu trabalhei em um rancho de gado, cuidando do cultivo de alfafa e – inesperadamente – fui um running back no time de football da escola. Desde então, eu vivi em Illinois, Indiana, Connecticut, Alabama, Nebraska e na cidade de New York trabalhando como construtor de treliças para casas, entregador de pizza, terapeuta comportamental para crianças diagnosticadas com autismo, como pai que fica em casa, um estudante de graduação, um trabalhador em abatedouro e um professor assistente de política.

Timothy Pachirat

AS: O que o alertou para a importância de fazer pesquisa de campo etnográfica?

TP: Assim como muitas crianças racial, cultural e linguisticamente misturadas, eu desenvolvi alguma coisa parecida com uma sensibilidade etnográfica inata em virtude do complexo terreno cultural no qual cresci. Muito antes de sequer ter ouvido a palavra ‘etnografia’, por exemplo, durante a graduação, eu passei minhas férias de outono e de primavera conhecendo e dormindo ao lado de homens e mulheres sem-teto na Lower Wacker Drive, em Chicago, como forma de encontrar algum sentido para entender as vastas inequidades que percebia na sociedade americana e no mundo. No doutorado em ciência política, em Yale, pareceu ser natural gravitar para uma orientação de pesquisa que permitiria me engajar corporalmente – como participante e observador – com as experiências vividas de pessoas com quem, talvez, eu nunca entraria em contato. Eu estava aprendendo muitas teorias extravagantes que eram excitantes no papel, e eu estava aprendendo algumas técnicas poderosas de análise estatística, mas somente a etnografia me permitia medir aqueles conceitos e técnicas feitos na academia em relação às localizadas, específicas e belamente complexas experiências vividas dos mundos sociais atuais, os quais aqueles conceitos e técnicas pretendiam descrever e explicar.

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AS: E por que você decidiu fazer etnografia em um abatedouro disfarçado de trabalhador?

TP: Eu queria entender como processos massivos de violência tornam-se normalizados na sociedade moderna, e queria fazer isso a partir da perspectiva daqueles que trabalham em abatedouros. Meu palpite era o de que uma atenção cuidadosa de como o trabalho de matança industrializada é feito pode iluminar não apenas como as realidades do abate industrializado de animais tornam-se toleráveis, mas, também, a forma que a distância e a ocultação operam em processos sociais análogos: guerra executada por exércitos voluntários, a subcontratação de mercenários para o terror organizado e a violência subjacente à fabricação de milhares de itens e componentes com os quais temos contato em nossos cotidianos. Assim como seus análogos políticos autoevidentes – a prisão, o hospital, o asilo, o manicômio, o campo de refugiados, o centro de detenção, a sala de interrogação e a câmara de execução – o moderno e industrializado abatedouro é ‘zona de confinamento’, um ‘território segregado e isolado’, nas palavras do sociólogo Zigmut Bauman, ‘invisível’ e ‘completamente inacessível aos membros ordinários da sociedade’. Eu trabalhei em funções básicas na área de matança de um abatedouro industrial para entender, a partir da perspectiva daqueles que participam diretamente delas, como essas zonas de confinamento operam.

AS: Você pode nos falar sobre o abatedouro em que trabalhou?

TP: Como meu objetivo não era escrever um retrato de um lugar particular, não dou o nome do abatedouro em Nebraska no qual trabalhei, assim como não uso os nomes reais das pessoais que encontrei ali. O abatedouro emprega quase oitocentos trabalhadores não sindicalizados, a vasta maioria sendo das Américas Central e do Sul, do sudeste asiático e do leste africano. Gera mais de 820 milhões de dólares anualmente em vendas para distribuidores de dentro e de fora dos Estados Unidos e se junta àqueles poucos abatedouros de gado do mundo todo que estão no topo em termos de volume de produção. A velocidade da linha de produção na área de matança é de aproximadamente trezentos gados por hora, ou um a cada doze segundos. Em um dia típico de trabalho, algo entre duas mil e duzentas e duas mil e quinhentas cabeças de gado são abatidas ali, tranquilamente somando mais de dez mil cabeças em uma semana, ou mais de meio milhão por ano.

AS: Quais trabalhos você acabou fazendo lá?

TP: Meu primeiro trabalho foi o de enganchar fígado no refrigerador. Por dez horas diárias, ficava em um frio de praticamente zero grau pegando fígados recém eviscerados que passavam em uma linha suspensa e pendurava-os em carrinhos, onde seriam esfriados para serem empacotados. Depois fui transferido para as calhas, onde eu conduzia o gado vivo para dentro da caixa de atordoamento, onde eles recebiam um tiro de pistola de êmbolo retrátil na cabeça. Finalmente, fui promovido a uma posição de controle de qualidade, um trabalho que me deu acesso a todas as partes da área de matança e me fez ser um intermediário entre os inspetores federais da USDA e os gerentes da área de matança.

AS: Como você se acostumou com o trabalho?

TP: Lenta e dolorosamente. Cada função vinha com seu próprio conjunto de desafios físicos, psicológicos e emocionais. Apesar de ser fisicamente desgastante, minha principal batalha pendurando fígados no refrigerador era com a monotonia insuportável. Brincadeiras, piadas e até mesmo a dor física eram formas de negociar aquela monotonia. O trabalho nas calhas me tirou do ambiente esterilizado do refrigerador e forçou uma confrontação com a dor e o medo de cada animal individual enquanto eles eram guiados pelas linhas das serpentinas até chegarem na caixa de atordoamento. Trabalhando como um funcionário do controle de qualidade, tive que dominar uma série de exigências técnicas e burocráticas até o ponto em que me tornei cúmplice da vigilância e da disciplinarização dos meus antigos colegas de trabalho na linha de produção. Por mais que já tenha se passado sete anos desde que saí da área de matança, ainda sou afetado pelos contínuos impactos emocionais e psicológicos que resultam da participação direta em uma rotinização de tirar vidas.

AS: E como seus colegas de trabalho te tratavam?

TP: Eu não teria durado mais do que alguns poucos dias no abatedouro se não fosse a gentileza, aceitação e, em alguns casos, a amizade dos meus colegas de trabalho. Eles me mostraram como fazer o trabalho, me socorriam quando eu errava e, o mais importante, me ensinaram a sobreviver naquele trabalho. Contudo, havia divisões e tensões entre os trabalhadores com base na raça, no gênero e nas funções. Além de tratar das formas de solidariedade entre os trabalhadores, meu livro também detalha essas tensões e como naveguei por elas.

AS: Quem é um ‘atordoador’?

TP: O atordoador é o trabalhador que fica na caixa de atordoamento e atira na cabeça de cada animal individual com uma pistola de aço de êmbolo retrátil. Das 121 distintas funções na área de matança que mapeio e descrevo no livro, apenas o atordoador vê o gado senciente e desfere o golpe que supostamente o deixa inconsciente.  Em um dia normal, esse trabalhador solitário atira em 2500 animais individuais, em uma média de um a cada doze segundos.

AS: Quem mais está diretamente envolvido na morte da vaca?

TP: Depois de o atordoador atirar neles, o gado cai em uma esteira transportadora por meio da qual eles são suspensos e içados para uma linha de ganchos que passa sobre nossas cabeças. Pendurados de cabeça para baixo e presos por suas pernas traseiras, eles viajam por uma série de curvas de noventa graus que os leva para longe da linha de visão do atordoador. Depois, um pré-cortador e um cortador abrem as artérias carótidas e as veias jugulares. Então, os animais vão sangrando enquanto viajam pela cadeia suspensa de ganchos até o estripador de caudas, que é quem começa o processo de remoção das partes do corpo e das entranhas. De mais de 800 trabalhadores na área de matança, quatro estão diretamente envolvidos na morte do gado e menos de 20 veem o local exato da morte.

AS: Você conseguiu entrevistar algum atordoador?

TP: Eu não consegui entrevistar diretamente o atordoador, mas conversei com muitos outros trabalhadores acerca das suas percepções sobre o atordoador. Existe um tipo de mitologia coletiva construída a partir desse trabalhador específico, uma mitologia que autoriza um implícito intercâmbio moral por meio do qual o atordoador, sozinho, realiza o ato de matar, enquanto o trabalho dos outros 800 trabalhadores do abatedouro é moralmente desconectado dessa morte. É uma ficção, mas uma ficção convincente: de todos os trabalhadores no abatedouro, só o atordoador profere o golpe que inaugura o processo irreversível de transformar criaturas vivas em mortas. Se você escutar atenciosamente as centenas de trabalhadores realizando as 120 outras funções na área da matança, este é, provavelmente, o refrão que vai escutar: “é só o atordoador”. É matemática moral simples: a área da matança opera no sistema 120 + 1 funções. Enquanto esse 1 existe, enquanto existe uma narrativa plausível que concentra o peso mais pesado do trabalho mais sujo nesse 1, então os outros 120 trabalhadores da área da matança podem dizer, e acreditar no que estão dizendo, ‘eu não vou fazer parte disso aí’.

AS: Quais são as principais estratégias usadas para esconder a violência no abatedouro?

TP: A primeira e mais óbvia é a de que a violência da morte industrializada está escondida da sociedade como um todo. Mais de 8.5 bilhões de animais são mortos a cada ano nos Estados Unidos, mas essas mortes são cumpridas por uma pequena minoria de trabalhadores, em grande parte imigrantes, que labutam atrás de paredes opacas, quase sempre em lugares rurais, isolados e distantes dos centros urbanos. Além do mais, atualmente, leis apoiadas pela indústria da carne e da pecuária estão sendo revistas em seis estados, no sentido de criminalizar a publicização do que acontece nos abatedouros e em outras fábricas de carne sem o consentimento dos proprietários. A Casa dos Representantes de Iowa, por exemplo, aprovou uma lei no ano passado, que agora segue para a apreciação do Senado do mesmo estado, que transforma em crime a distribuição ou posse de vídeo, áudio ou material impresso, recolhidos por meio de acesso não autorizado a abatedouros ou fábricas de carne.

A segunda é que o abatedouro como um todo é dividido em departamentos compartimentalizados. O escritório de administração está isolado do departamento de fabricação, que está, por sua vez, isolado do refrigerador, que está, então, isolado da área da matança. É totalmente possível passar anos trabalhando no escritório, no departamento de fabricação ou no refrigerador de um abatedouro que abate mais de meio milhão de gado por ano sem, contudo, sequer encontrar um animal vivo, muito menos testemunhar a morte de um deles.

Mas a terceira, e a mais importante, é que o trabalho de matança é ocultado até mesmo no local em que poderia se supor que seria mais visível: a área de matança. A complexa divisão do trabalho e do espaço atua para compartimentalizar e neutralizar a experiência do “trabalho de matar” para cada trabalhador na área da matança. Eu já mencionei a divisão do trabalho por meio da qual apenas alguns poucos trabalhadores, de um total de mais de 800, acabam estando diretamente envolvidos na ou tendo alguma linha de visão da morte dos animais. Para dar outro exemplo, a área de matança está espacialmente dividida entre um lado limpo e um lado sujo. O lado sujo se refere a qualquer coisa que acontece enquanto as entranhas do gado ainda estão neles e o lado limpo a qualquer coisa que acontece depois de que as entranhas tenham sido removidas. Trabalhadores do lado limpo são segregados dos trabalhadores do lado sujo, até mesmo durante os intervalos para as refeições e banheiro. Isso se traduz em uma espécie de compartimentalização fenomenológica na qual a minoria dos trabalhadores que lidam com os “animais” enquanto suas vísceras ainda estão nos corpos são mantidos separados da maioria dos trabalhadores que lidam com as “carcaças” depois de que as entranhas foram removidas. Dessa forma, a violência de transformar o animal em uma carcaça é reservada aos trabalhadores do lado sujo, e mesmo lá esse confinamento é aprofundado por divisões de trabalho e de espaço mais refinadas.

Além das divisões espaciais e de trabalho, o uso da linguagem é outra forma de ocultar a violência da matança. Do momento em que o gado é descarregado dos caminhões de transporte para os cercados do abatedouro, gerentes e supervisores da área de matança se referem a eles como “bife”. Apesar de estarem vivos, respirando, seres sencientes, eles já foram linguisticamente reduzidos à carne inanimada, a objetos de uso. Da mesma forma, existe uma enorme quantidade de acrônimos e uma linguagem técnica sobre o sistema de inspeção de segurança que reduz a função do trabalhador do controle de qualidade a um regime burocrático e técnico ao invés de um que os forçaria a confrontarem o processo verdadeiramente massivo de ceifar vidas. Por mais que o trabalhador do controle de qualidade pode se movimentar fisicamente por toda a área de matança, assim como pode ver todo aspecto da matança em si, sua moldura interpretativa é interditada por requerimentos técnicos e burocráticos da função. Temperaturas, pressões hidráulicas, concentração ácidas, contagem de bactérias e a sanitização das facas tornam-se o seu foco primário, ao invés do massivo e incessante mecanismo de tirar vidas que está acontecendo ali.

AS: Alguém que trabalha no abatedouro tem consciência dessas estratégias?

TP: Eu não acho que alguém parou e disse, ‘vamos projetar um processo de abate que cria uma distância máxima entre cada trabalhador e a violência da matança e permite a cada um deles contribuir sem ter de confrontar essa violência diretamente’. A divisão entre os lados limpo e sujo na área da matança, mencionado anteriormente, por exemplo, é abertamente motivada pela lógica da segurança do alimento produzido ali. O gado chega no abatedouro recheado de fezes e vômito, e na perspectiva da segurança o desafio é remover as vísceras minimizando a transferência desses contaminantes para a carne propriamente dita. Mas o que interessa é que os efeitos dessas organizações de espaço e de trabalho não é apenas o aumento da ‘eficiência’ ou da ‘segurança’, mas, também, o distanciamento e a ocultação dos processos violentos até mesmo daqueles que participam diretamente deles. De um ponto de vista político, de um ponto de vista interessado em entender como as relações violentas de dominação e exploração são reproduzidas, é precisamente esses efeitos que mais importam.

AS: As fábricas de morte de Auschwitz apresentavam esses mesmos mecanismos?

TP: Eu recomendo o livro soberbo de Zygmunt Bauman, Modernidade e Holocausto, para aqueles interessados em como mecanismos paralelos de distância, ocultamento e vigilância trabalharam para neutralizar o morticínio que estava em curso em Auschwitz e em outros campos de concentração. A lição aqui, é óbvio, não é a de que abatedouros e genocidas são moral ou funcionalmente equivalentes, mas, antes, que a violência em larga escala, rotinizada e sistemática, é totalmente consistente com os tipos de estruturas e mecanismos burocráticos que nós geralmente associamos com a civilização moderna.

O sociólogo Norbert Elias argumenta – convincentemente, na minha opinião – que o “ocultamento” e o “deslocamento” da violência, ao invés da sua eliminação ou redução, é a grande marca da civilização. No meu ponto de vista, os industrializados abatedouros contemporâneos oferecem um caso exemplar que sublinha alguns dos aspectos mais salientes desse fenômeno.

AS: A violência está escondida até mesmo nas vidas mais “normais”. Como podemos detectar essa penetrante presença em nossas vidas diárias?

TP: Nós – o ‘nós’ dos relativamente afluentes e poderosos – vivemos em um tempo e em uma ordem espacial na qual a ‘normalidade’ em nossas vidas requer uma cumplicidade com formas de exploração e violência que nós condenaríamos e repudiaríamos se quisermos que as distâncias físicas, sociais e linguísticas que separam nós e eles, em algum momento, colapsem. Isso é verdade para o confinamento e morticínio desnecessário e brutal de bilhões de animais todo ano só para comida, para a exploração e sofrimento de trabalhadores em Shenzhen, China, que produzem nossos Ipads e celulares, para as ‘aprimoradas técnicas de interrogação’ desenvolvidas em nome da nossa segurança e para os ‘danos colaterais’ causados pelos veículos-aéreos-não-identificados que nossos impostos financiam. Nossa cumplicidade não está na violência diretamente infligida, mas, antes, na nossa concordância tácita em desviar o olhar e não fazer algumas perguntas muito, mas muito simples: de onde essa carne vem e como ela chegou aqui? Quem fabricou esse último gadget que chegou em meu e-mail? O que significa criar categorias de seres humanos torturáveis? Os mecanismos de distanciamento e ocultação inerentes em nossas divisões de espaço e de trabalho e nosso uso irrefletido da linguagem eufemística fazem com que seja sedutoramente fácil evitar a busca pelas respostas complexas para essas perguntas simples com algum grau de determinação.

Meses depois de ter saído do abatedouro, discuti com uma amiga brilhante sobre quem era mais moralmente responsável pela morte dos animais: aqueles que comem carne ou os 121 trabalhadores que os mataram. Ela argumentou, apaixonadamente e com convicção, que as pessoas que os mataram eram mais responsáveis porque elas praticaram os atos físicos que tiraram a vida dos animais. Carnívoros, ela defendeu, eram apenas indiretamente responsáveis. Naquele momento, defendi a posição contrária, argumentando que aqueles que se beneficiam à distância, delegando esse trabalho terrível a outros enquanto renunciam de suas responsabilidades, tinham mais responsabilidade, particularmente em contextos como o abatedouro, onde aqueles com menos oportunidades na sociedade eram os que faziam o trabalho sujo.

Hoje, estou mais inclinado a pensar que é justamente a preocupação com a responsabilidade moral que serve como uma deflexão. Nas palavras do filósofo John Lachs: ‘a responsabilidade por um ato pode ser transmitida, mas, a experiência desse mesmo ato, não’. Eu estou muito interessado em pensar sobre o que pode significar, para aqueles que se beneficiam de trabalhos moral e fisicamente sujos, não só assumir alguma parcela de responsabilidade, mas, também, vivenciar diretamente tais trabalhos. O que pode significar, em outras palavras, colapsar alguns dos mecanismos de distanciamento físico, social e linguístico que separam nossas vidas ‘normais’ da violência e da exploração requeridas para sustentá-las e reproduzi-las? Exploro algumas dessas questões com mais cuidado no último capítulo do meu livro.

AS: Quem era Cinci Freedom? Que propósito mitologizante ela serve?

TP: Abro o livro com a história de uma vaca que fugiu de um abatedouro que fica na mesma rua do qual eu estava trabalhando. A polícia de Omaha perseguiu a vaca e encurralou-a num beco que beirava meu abatedouro. Isso aconteceu durante nosso intervalo de dez minutos da tarde e muitos dos trabalhadores do abatedouro testemunharam a polícia abrindo fogo na vaca com espingardas. No dia seguinte, no refeitório, a raiva, a repugnância e o horror com o que a polícia fez, matando o animal, era palpável, da mesma forma em que sentia-se uma forte identificação com a condição do animal diante da maneira com que a polícia o tratou. Mesmo assim, depois do almoço, os trabalhadores voltaram ao trabalho na área de matança que mata 2,500 animais todo dia.

Cinci Freedom era outra vaca charolesa que fugiu de um abatedouro de Cincinnati, em 2002. Ela só foi recapturada, depois de vários dias, com o uso de um helicóptero da polícia capacitado com um equipamento de imagens termais. Ao contrário da vaca anônima de Omaha que foi abatida pela polícia, Cinci Freedom tornou-se uma celebridade instantânea. O prefeito deu a ela a chave da cidade e uma passagem para A Fazenda Santuário em Watkins Glen, no estado de Nova Iorque, onde ela viveu até 2008.

Apesar de que, à primeira vista, os destinos da vaca de Omaha e de Cinci Freedom são muito diferentes, acho que ambos, cada um ao seu modo, são formas efetivas de neutralizar a ameaça que esses animais representam. Suas fugas do abatedouro não foram apenas fugas físicas, mas, também, fugas conceituais, momentos de ruptura  daquilo que é, via de regra, um sistema normal e rotineiro de industrialização da morte. Exterminação e elevação ao status de celebridade (o que é bem diferente do ritual presidencial de concessão de perdão ao peru do dia de ação de graças) são formas de contenção dos perigos representados por esses momentos de ruptura conceitual. Eles também apontam para as promessas e limitações da ruptura como tática política, por exemplo, aquelas rupturas digitais que ocorrem com a divulgação de gravações clandestinas e chocantes de abatedouros e outras zonas de confinamento onde o trabalho de violência é rotineiramente feito de acordo com nossos interesses.

[1] Entrevista originalmente publicada em: 

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