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Forma e objeto: um tratado de coisas, por Tristan Garcia

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Tradução: Diogo Silva Corrêa*

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Nossa época é, talvez, aquela de uma epidemia de coisas.

A divisão do trabalho, a industrialização da produção seguida da informatização do tratamento de todos os dados, a especialização do conhecimento de coisas, e sobretudo a desubstancialização dessas coisas – que por muito tempo no Ocidente se organizavam em essências, em substratos, em qualidades, em predicados, em quididades e em quodidades, em seres e em entes – provocaram um tipo de contaminação “coisal” do presente. Torna-se delicado impedir qualquer coisa que seja de ser igualmente “alguma coisa”, nem mais nem menos que outra coisa. Nós vivemos nesse mundo de coisas, onde um ramo de acácias, um gene, uma imagem de síntese, uma mão que se pode transplantar, um fragmento de música, uma marca registrada ou um serviço sexual são coisas comparáveis. Certas resistem, se considerado ou considerando imediatamente o pensamento, a consciência, os seres sensíveis, a pessoa ou um Deus como exceções do regime plano de coisas intercambiáveis. Trabalho em vão – quanto mais se abre exceção para isso ou aquilo do mundo das coisas, mais e melhor a gente delas faz alguma coisa, de modo que as coisas possuem essa estrutura pânica: dela subtrair algo é levá-la em consideração.

Essa obra nasceu de um sentimento que ela tenta, ao mesmo tempo, sustentar, ilustrar, e ao qual ela tenta responder racionalmente: há cada vez mais coisas, e é sempre mais difícil de compreendê-las e de ser um suplemento delas, de acrescentar a si mesmo a cada momento, em cada lugar, no meio de pessoas, os objetos físicos naturais, artificiais, partes de objetos, imagens, qualidades, pacotes de dados, informações, palavras, ideias – de às coisas conceder esse papel sem com isso sofrer. O objetivo desse trabalho é o de conduzir aqueles que ainda não compartilhavam desse sentimento a reconhecê-lo, e o de propor aos que já o admitiram uma maneira de se deles desfazer – o que supõe a elaboração de um modelo novo de decoupagem das coisas, das coisas em torno de nós, das coisas em nós, de nós entre as coisas.

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Destinado a nós que amamos as coisas e que penamos diante de sua acumulação, esse tratado propõe colocar à prova um pensamento das coisas mais do que um pensamento sobre o nosso pensamento das coisas. Ao que espera de uma filosofia que ela informe sobre o conhecimento, sobre a consciência ou mais amplamente sobre a subjetividade, o eu e o nós, deve ser avisado: ele ficará decepcionado. Tratar-se-á, aqui, de pensar voltando-se o menos possível – o que não significa, de modo algum, que nós impediremos de fazê-lo –  à posição desse pensamento. O leitor deve aceitar, ao se por a ler essa obra, não reclamar sob as seguintes condições: de onde vem o objeto colocado? Por quem e como? Com qual direito, em qual cultura e por qual processo cognitivo? Se é válido, o modelo de coisa descrito nas páginas que seguem deve poder ser aplicado retrospectivamente a todo sujeito, a toda consciência, a toda condição de pensamento, desde que se tenha a paciência de julgá-lo no fim e não no início.

Todo pensamento da relação com as coisas – filosofia da consciência intencional, filosofia da linguagem ou filosofia da ação – tem o defeito de começar por se colocar uma relação orientada em direção à objetividade, logo rejeitada e jamais atingida. Pois aquele que crê que o pensamento se inicia pelo movimento, pelo impulso na direção “das coisas mesmas” termina sempre por eclipsar as coisas, que eram o fim, em prol do elo com o pensamento, com o conhecimento, com a ação, que não eram senão o meio.

Quem aceita, antes de tudo, a ideia de pensar a nossa consciência, a nossa consciência de coisas produz através desse gesto inaugural um objeto de pensamento que é identificado com uma relação: a partir de então, nessa perspectiva, tudo o que será objeto de pensamento deverá se resolver em relação para poder ser reconhecido. Tais como os gansos de Konrad Lorenz, que jamais consideravam como sua mãe o primeiro objeto com o qual eles entravam em contato no nascimento, o pensamento é marcado pelo que a etologia qualificou outrora como impressão. O que uma filosofia coloca em primeiro enquanto objeto de seu pensamento permanecerá para sempre a forma de seu objeto. Caso ela seja consequente, será a impressão do que ela poderá ou deverá reconhecer em seguida como sendo “alguma coisa”. Seria absurdo crer que uma filosofia poderia se dar impunemente a consciência como “consciência de” enquanto objeto inicial e descobrir em seguida “as coisas mesmas” de outro modo além de dados para, por a com a consciência dessas coisas, a partir de então impressas nela.

Um pensamento tem, portanto, todo o interesse em iniciar seu movimento vinculando-se às coisas – sobretudo a tal ou tal tipo de relação orientada na direção das coisas – de maneira a voltar mais tarde sobre o desejo, a vontade, o espírito ou a subjetividade enquanto objetos. Um pensamento das coisas, marcada em seu nascimento pela impressão de objetividade, não conhecerá mais do que coisas; aqui, um sujeito será, portanto, por e para ele mesmo um objeto determinado, alterado ou intensificado por uma certa forma, mas ainda assim um objeto.

A questão é, portanto, a seguinte: vale mais começar por um pensamento do acesso que não chegará jamais nas coisas, mas unicamente às suas condições de acesso; ou começar por um pensamento das coisas, que não encontrará jamais, se ela não quer trapacear, senão a coisidade em todos os modos possíveis da subjetividade?

A segunda solução é a que nos anima, ao menos, por três razões.

Primeiro, não podemos fazer de outro modo, por que nós fomos, por assim dizer, pegos na reflexão pelas coisas desde adolescência, e tudo o que se mostra nos parece desde então sob a máscara da coisidade. Mas essa razão não vale senão a posteriori e para o que nós adquirimos, apesar de nós mesmos, através de decorrências lógicas. Ela é singular.

Em seguida, a presente época nos parece inclinar-se na direção das metafísicas do acesso, e o século XX – ao qual essa obra propõe, de alguma maneira, dizer adeus – parece ter sido um período de teorização dos modos de acesso às coisas mais do que das coisas: linguagem formal ou linguagem ordinária; fenomenologia da consciência, da percepção, abertura para o ser; estruturas do inconsciente, estruturas dos mitos; normatividade e processos de subjetivação; autorreflexão e consciência crítica… E agora parece ser preciso que o pêndulo vá na direção do outro lado. Entretanto, essa razão não vale senão historicamente, mais precisamente no que concerne à situação contemporânea da redação dessa obra; ela não teria sido aceitável ou se tornará novamente necessário, passado algum tempo, a renovação de um pensamento sobre as condições da dádiva ou da representação das coisas. Essa razão histórica não é senão uma razão particular.

Mas existe ainda uma terceira razão. É preciso compreender que um pensamento anterior sobre as coisas jamais bloqueia a si mesmo ao nos revelar de modo definitivo nosso pensamento, nossa linguagem, nosso conhecimento como coisas iguais às coisas pensadas, ditas ou conhecidas; enquanto um pensamento anterior da relação com as coisas trai sistematicamente seu impulso inicial, que era visar às coisas mesmas. Esse pensamento perde seu objetivo no caminho, deixando a presa na sombra de seu próprio fuzil, não tendo mais por objeto senão os modos  perspectivos dessas coisas para a consciência, para a linguagem, para a representação ou para a ação. Em outros termos, um pensamento das coisas não promete nada que ele não possa dar conta, enquanto um pensamento segundo o pensamento das coisas, por exemplo, promete um acesso às coisas que ele barra no final, à medida que as coisas se afastam, trocando o objeto pelas condições de enunciação, de constituição desse objeto. E é bem aí que consiste uma razão universal.

Há argumentos pessoais e argumentos históricos, mas não somente, em favor da escolha que consiste em se interrogar, primeiro, sobre o que é “alguma coisa”, e não sobre a posição, a produção, a formulação dessa “alguma coisa”.

Deve-se então proclamar que realizaremos um “realismo”, pensando as coisas ao invés de nosso acesso a essas coisas? Não se trata certamente de um trabalho realista nesse sentido preciso de que o real será de imediato tratado como o possível, como o impossível, como o imaginário, como o virtual – nem melhor, nem menor, sem tratamento em favor de um dos lados. Não são as coisas reais que nos interessam, mais as coisas reais – e, desse modo, as outras coisas igualmente.

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Nesse sentido, nosso projeto decerto esposa uma determinada tendência contemporânea de elaborar, para utilizar os termos de Graham Harman, as “metafisicas orientadas pelo objeto” que se afastam das “filosofias do acesso”[1] e se mostram atraídas pelas “ontologias planas” das coisas.

A partir da releitura por DeLanda da obra de Deleuze, viu-se recentemente aparecer essa ideia de “ontologia plana”[2] a fim de qualificar pensamentos não hierarquizando as entidades do mundo em torno de substâncias ou a partir de princípios transcendentais, mas reconhecendo uma igual dignidade ontológica a tudo o que é individuado. Como em certos romances de Eric Chevillard, todas as diferenças entre as coisas, entre um átomo, uma morte, a rotundidade de um tronco de arvore, uma equipe de futebol, as leis da gravitação ou uma metade da palavra “digno” são sistematicamente reconduzidas a simples diferenças de intensidade suscetíveis de variação.

Esse tratado parte efetivamente na direção de uma busca por uma ontologia plana, ou melhor, por uma ontologia possível de um mundo plano, de um mundo do qual todo tipo de intensidade foi abstraída. O mundo que nós exploraremos no primeiro livro é aquele onde não importa qual coisa, stricto sensu, vale como uma outra. É um mundo que, no entanto, um relativista não aceita jamais habitar e levar até às ultimas consequências. Ao revelar o desafio, nós sustentaremos que determinação clássica – incluindo a de ser não contraditória, a de ser individuada, a de ter uma identidade ou uma unidade[3] – não se encontra compreendida no conceito mais amplo, mais vazio, mais formal possível de “coisa”. Nós consideraremos como não essencial tudo o que pode qualificar uma coisa, desde que se defina convenientemente o que a define enquanto coisa, e não enquanto coisa consistente, enquanto coisa individual, enquanto ela mesma que ela é uma coisa. Assim, nosso primeiro objeto será o ser das coisas não incondicionadas[4], não indeterminadas, mas des-determinadas. 

A démarche pretende levar esse caminho às últimas consequências; e com isso comprovar que é possível descrever as qualidades não triviais de um mundo de coisas desprovidas de todas qualidades. Uma vez que a possibilidade da descrição de um tal mundo plano de coisas des-determinadas é admitida, é preciso ainda trazer a prova de sua necessidade, ou ao menos de sua utilidade.

O objetivo dessa des-determinação é dispor de um plano de corte de todos os embotamentos, de todas as ordens que desenham o relevo do universo físico, biológico, animal, humano, dos artefatos, das obras de arte, das redes econômicas da produção, da troca e do consumo, das diferenças de classe, de gênero, de idade.

Esse mundo plano deverá nos servir de intercalação necessária, de plano de referência em relação ao qual poderiam ser pensadas, discutidas, julgadas, as relações concretas de tudo o que possui um conteúdo determinado.

Em outros termos, longe de estetizar esse mundo formal de coisas des-determinadas que nós devemos tentar produzir, longe de considerá-lo como um porto seguro, um refúgio de solidão ontológica altiva diante de acumulação moderna e democrática de objetos, é preciso que compreendamos que a única possibilidade de afrontar pelo pensamento a platitude de coisas nos permitirá encontrarmo-nos entre os valores, as intensidades, as classes, a ordem, mas também o caos, a algazarra de tudo que se entre-compreende, que nós compreendemos e que nos compreende igualmente, sem nada acima ou abaixo. O plano de decoupagem das coisas sem qualidade não é nada senão a última tábua de salvação em que devemos nos colocar diante da avalanche de tudo o que se acumula, nos incha, obstrui sem parar o horizonte de conhecimento, de ação, e nós afasta do mundo, da totalidade do que é, que nós não ousamos e não sabemos mais representar.

Porque nós temos a impressão de que há um excesso de coisas – a ver, a saber, a levar em conta –, nosso pensamento, nossa vida, nossos atos acabam sendo paralisados pela apreensão de complexidade objetiva. Ela transborda os fatores, as redes, as posições relativas que se découpam, que se recortam, se encavalam, se contradizem como tantas injunções que o pensamento não pode mais seguir mantendo-se fiel ou coerente – para quem? para quê? Ele mal sabe responder.

O plano formal de pensamento visa dar ou dar novamente a possibilidade de restringir toda acumulação – de saber, de experiência, de ação – em prol de uma simplicidade, uma superfície pobre que autoriza a retomar isso ou aquilo como “alguma coisa”, nem mais nem menos.

Contrariamente às “ontologias planas” propostas até aqui, não nos contentaremos, contudo, com um plano de entidades individuadas e não hierarquizadas, recorrendo para isso aos conceitos de “interação” ou de “emergência” para explicar a aparição de totalidades e de estruturas organizacionais; nós associaremos à nossa ontologia formal do igual uma ontologia objetiva do desigual.

Se esse tratado aceita conceber a ontologia de um mundo plano, é com a única finalidade de, em um segundo momento, propor uma enciclopédia do universo e dos objetos em relevo, problemas práticos de decoupagem, de valorização de campos cosmológicos, biológicos, antropológicos, culturais, artísticos, sociais, históricos, econômicos, políticos. Longe de parar na descrição enganosa de um mundo formal no qual as diferenças entre as coisas teriam sido reduzidas a zero, essa obra visa à articulação dessa descrição de um mundo plano de coisas iguais com uma restituição conflituosa – entre universalismo e relativismo – de grandezas, de valores, de relevos, de variações, de interesses de objetos históricos acumulados sem fim e disputados por diversas posições de pensamento.

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Foi isoladamente, sem ordem nem premeditação, que esses problemas teóricos de época, antes de tudo, nos apareceram: o estatuto dos componentes últimos da matéria e a forma última do universo, a alternativa entre presentismo e eternalismo em toda ontologia do tempo, a emergência do vivente, a querela entre a tentação vitalista e o reducionismo bioquímico, a decoupagem do vivente em espécies no quadro evolucionista, a diferença entre espécie humana e as outras espécies animais – dissolvida na particularidade pelo naturalismo, enrijecida na universalidade pelo humanismo. A essas temáticas de disputa quanto à decoupagem da matéria, do vivente no seio da matéria, da animalidade no seio do vivente, da humanidade no seio da animalidade, se acrescentam as querelas quanto à decoupagem de obras da humanidade, de seus artefatos, mas também de seus organismos que seguem intensidades, valores (o belo, o verdadeiro, o bem), classes (de origem, de ideia, de interesse social), gêneros (masculino e feminino) ou idades. Como decoupar em diferentes objetos uma continuidade, um devir? Como não transformar esses objetos em substâncias, compactá-los como se eles existissem em si? Como, inversamente, não dissolvê-los na pura acontecimentalidade, na potência, no devir? Como simplesmente conservar as coisas – nem excessivamente fechadas sobre si mesmas, nem excessivamente evanescentes?

Compreende-se que o problema é sempre o mesmo: que decoupemos o espaço-tempo cosmológico, a evolução do vivente, os humanos e os outros animais; que nós perguntemos o que distingue as obras de arte dos outros objetos, que nós classifiquemos as coisas por valores, gêneros, momentos, é preciso determinar a que preço um conceito de coisa – que não se congele em substância, que não se volatilize em pura potência – é ainda possível.

Como proceder?

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A aposta deste livro é a de não ser nem determinado por um conteúdo positivo, nem estruturado por uma forma analítica ou dialética de pensamento.

O preço a pagar por isso será, a primeira vista, uma ingenuidade, uma inocência e uma fragilidade consentida da démarche: desvinculada de qualquer papel positivo, sem reivindicar nem o Homem, nem a Sociedade, nem a História, nem a Natureza, o raciocínio não organizará de imediato o universo de todas as coisas seguindo um objeto eminente que os compreenderá em conjunto. Ele procurará sua própria arquitetura. Ele não proporá em um primeiro momento qualquer explicação satisfatória, narrativa em que tudo se ordenaria humanamente, naturalmente, socialmente, historicamente, etc. Aqui, as coisas não encontrarão jamais, em última instância, um repositório garantidor desse tipos – sem, contudo, permanecer no vazio.

Articulado por nenhuma lógica, não reconhecendo de imediato nem princípio de não contradição, nem condição a priori da racionalidade, o raciocínio assumirá também o risco de parecer, para um espírito analítico, inconsciente, inconsistente, sem estrutura ou incapaz de reconhecer aquilo que é implicitamente seu.

Enfim, ao recursar-se a ordenar dialeticamente contradições, a teoria assumira o risco de parecer aos olhos de um dialético recair em impasses, cair no relativismo, autorizar tudo e não importa o quê, mostrar-se inconsequente e – o pior de tudo – plana, porque recusa hierarquizar formalmente as coisas.

Em última instância, o que resiste à analise tão bem quanto à dialética, e que nos colocará na posição de bússola teórica, é a convicção de que nenhuma coisa é redutível a nada. Uma tal proposição significa ao mesmo tempo que nenhuma coisa pode ser absolutamente reduzida a nada, porque esta coisa seria morta, ultrapassada, falsa, imaginária, inexistente ou contraditória, por exemplo, e que nenhuma coisa não é absolutamente redutível a uma outra. Toda analítica reduz a possibilidade de ser alguma coisa com base em certas condições (lógicas, racionais, pragmáticas); toda dialética reduz a possibilidade de ser alguma coisa à sua mediação por uma outra coisa. Nós destacaremos, sobretudo, nosso vínculo ao que em toda coisa, em sua solidão, não se deixa jamais reduzir a qualquer outra coisa que seja. Essa irredutibilidade, que chamaremos de “acaso” de toda coisa, eixo de remissão consecutiva a uma analítica e a uma dialética, marca também a recusa de um pensamento positivo que reduz as coisas às únicas coisas naturais, ou sociais, ou históricas, etc.

Nós orientaremo-nos e esperamos orientar o leitor a partir dessa única ideia: : a de que nada do pensamento saia destruído ou reduzido a nada, mas, sobretudo, de que esteja consciente daquilo que dele, do pensamento, não pode ser destruído e do que ele jamais destruirá.

Esse livro buscará conservar o acaso ontológico de toda coisa, olhando cada disposição das coisas como um certo sentido de circulação do ser, legítimo à medida que não é impedido ou não cria obstáculos para si mesmo.

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Representemo-nos diferentes circuitos possíveis de distribuição do ser, a fim de tornar a ideia mais imagética.

Um primeiro modelo consiste em conceber o ser circulando segundo certas coisas que não existem por si mesmas: predicados, acidentes. Convencionemos que a qualidade de uma entidade possa ser simbolizada por uma flecha que projeta o ser do qual ela é investida naquele da entidade que ela qualifica. Se eu me vinculo ao ser de uma certa vermelhidão, da textura de um pano em ganga, de um recorte de um estêncil em forma de ampulheta, eu posso imaginar três flechas produzindo o ser do vermelho, do pano em ganga, da forma de ampulheta em direção a uma quarta flecha: um vestido que se encontra vermelho, e em ganga, e em forma de ampulheta. Ora, o vestido não é predicado de nada, enquanto que o vermelho, o pano de ganga ou a forma de ampulheta são o vestido. Este fecha a circulação do ser sobre si mesmo, sobre si: no final de contas, a flecha do vestido não tende a nada além dela mesma. Nesse tipo de modelo substancial de distribuição do ser, o ser de certas entidades secundárias escorre na direção de entidades primeiras, as quais escorrem, por sua vez, em um circuito fechado. O circuito do ser é interrompido pelo em si que marca o limite necessário de sua circulação. Uma coisa, em sentido estrito, é então constituída pelo circuito de distribuição de um ser capaz de dar suporte a si mesmo e de seres que tem esse ser primeiro como suporte. Essas qualidades são como afluentes de um rio – a substância – destinado a ser seu próprio mar e sua própria fonte. Nesse modelo de decoupagem de coisas, que é essencialmente antigo e clássico (de Platão à Aristóteles, de Kant à Hegel), mas não somente (dado que se encontra subjacente no confucionismo e no Sâmkhya), há evidentemente hierarquização entre o que é empurrado na direção de alguma coisa outra que a si mesmo e essa outra coisa que lhe serve de suporte ontológico e que dá suporte ao seu próprio ser.

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Um segundo modelo consiste em distribuir o ser não mais substancialmente, mas vetorialmente. Concebe-se então trajetos de ser, identificados com acontecimentos, fatos, potências, intensidades ou intencionalidades: esses vetores de ser são primeiros e eles carregam e dão suporte ao ser, são mesmo capazes de deslocá-lo, mas sem jamais encontrar um ponto de interrupção, de limite, de consistência objetiva. O que está no mundo, em uma tal representação, é a diferença – e não a identidade – do trajeto, do devir, uma projeção contínua do ser que não desemboca jamais sobre o ser compacto, fechado em si mesmo: não há em si, o ser não é jamais uma flecha que reconduzirá a sua ponta à sua própria empenagem. Nada é encerrado, fechado, o plano ontológico é aberto e percorrido por vazamentos, forças, devires. Para dar conta da existência aparente das coisas, de entidades identificáveis e reidentificáveis, estáveis, esse modelo concebe a possibilidade de determinar figuras na interseção de diferentes trajetos. Essas figuras são fechadas, como um triângulo cujos três lados seriam a pluma de fumaça efêmera de três aviões percorrendo o céu. Um observador teria a impressão de perceber no céu um triangulo, uma figura determinada inscrita no cruzamento de três acontecimentos, três trajetos, contudo, divergentes. Considera-se então, nesse modelo vetorial, sobretudo moderno e contemporâneo (de Nietzsche ou Bergson até o evolucionismo), mas não apenas (em certas correntes de pensamento mexicanas, por exemplo), que uma coisa é um efeito secundário, uma construção ou uma ilusão no cruzamento de diversos acontecimentos, de vetores de ser.

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Todo domínio do saber, da cosmologia à sociologia (para decoupar acontecimentos espaço-temporais ou indivíduos nos campos), da biologia à psicologia (a fim de definir espécies no seio de processos evolutivos ou sujeitos entre os afetos, as ações e reações), tende a se apoiar, secretamente, sobre modelos de distribuição do ser material, social, biológico ou psicológico.

Ora, não deve nem pode apenas existir senão ontologias substanciais ou vetoriais.

Toda decoupagem de coisas é acompanhada pela organização de um circuito de distribuição de ser. E se nós queremos decoupar as coisas em um mundo plano, a fim de cortar em pedaços a acumulação de objetos que nos impede de encontrar uma maneira de circular o ser das coisas que não seriam nem substanciais nem vetoriais, nós devemos encontrar um modo de deixar a circulação do ser das coisas que não seja nem substancial, nem vetorial. A substancialidade tende a compactar o ser no final do trajeto, sobredeterminando as coisas cheias de si mesmas, de coisas em si. Quanto à pura acontecimentalidade de vetores de ser, ela tende a dissolver, a disseminar o ser, e ela transforma coisas em efeitos, em ilusões, em realidades secundárias. Em outros termos, o conceito de coisa não é moldado nem pelo primeiro nem pelo segundo modelo. O primeiro produz uma coisa que é excessivamente coisa, que é “compacta”, enquanto o segundo gera uma coisa que não é suficientemente coisa, que não é senão uma construção, uma projeção volátil. Nossa ambição é a seguinte: conceber um modelo nem excessivamente, nem insuficientemente forte para nos representar coisas que estariam, sim, no mundo, mas sem, contudo, serem em si mesmas.

A única solução consiste em elaborar o seguinte trajeto: o ser entra em um laço cujo ser não é projetado em si, mas rejeitado de fora, de tal modo que uma flecha aponta do interior na direção de um círculo – a coisa – a partir do qual uma segunda flecha aponta na direção de fora.

O ser entra na coisa, o ser dela sai. E uma coisa não é senão a diferença entre o ser que entrou e o ser que saiu. Assim, o circuito do ser não se interrompe jamais. Na coisa, não há jamais a coisa ela mesma. E a coisa não está nela mesma, mas fora de si mesma. Ao mesmo tempo, o ser não é “polinizado” acontecimentalmente por vetores: ele possui um ponto de interrupção objetivo e as coisas que correspondem ao círculo que indica o desnível, a diferença, a não adequação entre a flecha de entrada e a flecha de saída são, sim, inscritas, impressas no mundo.

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Reinscrever as coisas no mundo, é sair, ao mesmo tempo, delas mesmas (enquanto substâncias) e de nós (enquanto sujeitos). É dispô-las fora de si (seu si, o nosso) no mundo. E o preço a pagar por essa disposição é uma circulação do ser que distingue sistematicamente dois sentidos das coisas: o que está na coisa e aquilo no que a coisa está, o que ela compreende e o que a compreende.

Tomemos um exemplo. Eis um bloco de ardósia negro, uma amostra retangular lançada onde se formam montanhas cheias de dobras. Que esse bloco seja uma coisa será contestado por poucas pessoas: evidentemente, pode-se sublinhar que é preciso uma subjetividade ativa para decoupar, distinguir esse bloco de matéria sobre o fundo de um solo poeirento, a fim de percebê-lo enquanto tal. Mas esse pedaço de ardósia possui certas qualidades, de coesão, de solidez, que permitem com que ele se destaque de seu ambiente, que seja manipulado, que seja transformado e que seja considerado tão simplesmente como “alguma coisa”. Do que ele é composto? Ele contém quartzo, minerais argilosos, mica, alguns traços de feldspato. E todos esses componentes possuem uma certa estrutura atômica. Mas, em um sentido mais amplo, entram também na constituição da pedra enquanto “coisa” sua forma retangular, as irregularidades de sua superfície, as porfirias vestidas de pirita, sua cor muito escura, seu grão fino, seu peso, sua fragilidade, dado que ela é extremamente fácil de quebrar, e todas as qualidades primeiras ou secundárias que nós podemos conhecer nela.

Nós diremos que é tudo o que está nesta coisa: todos os caminhos de ser que conduzem à constituição dessa ardósia negra em minha mão.

Ora, de tudo que está nessa ardósia não se deduz jamais aquilo em que ela está. Entre tudo o que a compõe, eu não encontrarei o posicionamento da ardósia no mundo, as relações nas quais ela está inscrita: o fato de que ela se encontra agora em minha mão, a função de arma que ela pode exercer se alguém me ataca, mas também seu lugar na paisagem, seu lugar na série de pedaços de ardósia disseminados ao longo desse vale. O que ela é, esta coisa única que existe no mundo, e que está em minha mão, ela é fora de si mesma. A ardósia pode, com efeito, entrar por sua vez na composição da ladeira de uma montanha, da fisionomia ou de uma coleção de rochas. Enquanto um todo, ela torna-se então a parte de outra coisa e não está mais em questão o que está na ardósia, mas aquilo em que essa ardósia está.

Uma multidão de coisas está nela, e ela mesma pode entrar na composição de uma multidão de outras coisas. A ardósia negra não é, portanto, em si. Ela não é uma substância da qual são predicadas diversas qualidades (seu peso, sua cor). Ela também não é uma entidade efêmera, existindo em si, construída por meu pensamento, por meus sentidos, pela minha ação, a partir de acontecimentos, de devires (uma certa variação de densidade da matéria, dos efeitos de transformações geológicas, a trajetória de raios luminosos). Não, a ardósia negra é a relação, inscrita no mundo, entre o ser que nela entra e o ser que dela sai, e que entra, por sua vez, em outra coisa (no solo, na paisagem, nas classes de outros objetos, na minha percepção, no mundo em geral).

A coisa não sendo nada além do que a diferença entre o que está na coisa e aquilo em que essa coisa está, não há coisas pensáveis enquanto se preserva esse duplo sentido. Por exemplo, todos os pensamentos reducionistas que pretendem deduzir o que é tal ou tal coisa a partir do que a compõe não chegam a dissolver a coisa mesma da qual elas pretendiam dar conta. Nós tentaremos realizar exatamente o contrário: preservar as coisas enquanto diferenças preciosas inscritas nos circuitos de distribuição do ser do mundo. Para assim fazer, nós nos empenharemos em descobrir o sentido que circula entre as coisas, entre o que as compõe e o que elas compõem, em nós, fora de nós, com ou sem nós.

***

Esse sentido que nós reivindicamos, que o pensamento procura, não é a salvação, isto é, a possibilidade de conservar de si o essencial, o necessário ou o autêntico, depois do fim da vida ou em nossa existência social deteriorada.

Certos pensamentos procuram a salvação. Aqui, não se procurará nada para se redimir: nem a alma, nem a pessoa, nem o corpo, nem o pensamento, nem uma comunidade, nem o proletariado. Coisa entre as coisas, o pensamento desse tratado não tentará se salvar nem as salvar: entre coisas, não há salvação.

Mas o sentido de busca que nós nos colocaremos não se deixará, no entanto, reduzir a uma simples significação, a um jogo de linguagem, a um corpo de usos, a um sistema de normas. Aquele que reivindica um sentido das coisas e que se remete à descrição de sua significação, ao modo como nós nomeamos, como nós usamos as coisas, nossas práticas linguísticas, sociais, culturais, se sentirá decepcionado: a promessa do pensamento não é cumprida. Eu procuro um sentido das coisas fora de nós, e eis-me aqui remetido ao que tem lugar entre nós.

A salvação é a esperança de retirar-se das coisas (de escapar à nadificação, à morte, ao esquecimento, ao inautêntico, à alienação, à reificação); a significação, é a decepção de não chegar jamais a abstrair as coisas da relação que nós entretemos com elas. A salvação nos retira das coisas, a significação impede as coisas de sair de nós.

Ora, eu não quero uma salvação da minha alma, nem do meu corpo, nem dos seres humanos, nem das minhas ideias ou da minha individualidade; eu não pergunto a significação (linguística, cultural, histórica), a nossa maneira de nos referirmos a isso, de construí-las, de utilizá-las, de trocá-las, de colocá-las entre nós, por e para nós significativas. Não, eu procuro simplesmente um sentido das coisas – que isso seja eu, você ou um pedaço de ardósia negra.

Este sentido nem totalmente existencial nem totalmente semiótico que nós chamamos de nossos desejos, em verdade, é simplesmente a possibilidade de passar de uma coisa a outra. É a possibilidade, é a necessidade de jamais encontrar-se reduzido a uma coisa que será uma outra, que não estaria dentro de nenhuma outra, que não existiria em e por si mesma – que chamemos isso de matéria, Natureza, História, sociedade, Deus ou indivíduo. Como se se pudesse reduzir a ardósia negra a uma coisa material ou a uma coisa natural ou uma coisa social. Como se se pudesse, em seguida, considerar a matéria, a Natureza ou a sociedade como coisas sem fora, absolutas, permanecendo em si mesmas. Esse espectro do “compacto”, que será o adversário de toda aventura de pensamento, não se dissipa senão com uma condição: para que toda coisa tenha um sentido, é preciso que ela tenha dois. A Natureza ou a História enquanto coisas compreenderão, portanto, uma multidão de coisas (primeiro sentido), mas elas são, por sua vez, compreendidas por outra coisa além delas mesmas (segundo sentido).

***

Se quiséssemos reduzir esse empreendimento a uma equação, esta seria a seguinte: como ao mesmo tempo encontrar o universal e conservar o sentido do relativo? O preço desse duplo vínculo ao universalismo e ao sentido do relativo será o abandono do devir extático tanto quanto das coisas plenas de si mesmas. Será preciso conceber coisas vazias de si mesmas, sem identidade e des-determinadas de um lado, e coisas cheias umas das outras, ordenadas enciclopedicamente, de outro. Será preciso aprender a ver duplamente, como forma e como objeto, para que o pensamento avance – um passo formal, outro objetivo, e assim por diante.

A estrutura do tratado indicará como pensar a partir desses dois pontos de apoio: se queremos bem colocar de lado a coda, que marca a queda do conjunto, todo o tratado consiste em dois livros que se combinam e correspondem exatamente a dezesseis capítulos. O livro I, formal, apela ao leitor uma certa confiança: voluntariamente desprovido de referências ou citações oriundas da História da filosofia, embora abordando questões clássicas (o Um, o Todo, o Ser, por exemplo), ele mistura proposições afirmativas, numeradas, discussões argumentadas em toda página e descrições à parte a respeito do mundo plano. O livro II, objetivo, repousa sobre as formas desse primeiro livro; mas ele coloca à prova a ocasião de diversos objetos determinados, ordenados – das estruturas do universo à morte do indivíduo, passando pela definição do vivente, da animalidade, da arte ou da economia – adotando um aspecto voluntário mais discursivo, fortificado pelas referências explícitas e muito menos raras.

Seguindo essa maneira sobretudo formal ou sobretudo objetiva de se referir espontaneamente às coisas, sintam-se livres, portanto, para ler esse tratado em um sentido ou em outro, para no final dar novamente um sentido ao caminho do pensamento.  

* A tradução refere-se à introdução (pps. 7-21) do tratado filosófico de Tristan Garcia, Formes et objeto. Um traité des choses, publicado na Collection Methaphysiques da Puf, a editora Presses Universitaires de France. 

Notas:

[1] Quer dizer: os pensamentos que reconhecem ‘que a filosofia não pode ter outra coisa além de nosso acesso às coisas”, Graham Harman, Tool-being: Heidegger and the metaphysics of Objects, Chicago, Open Court Publishing, 2002, p. 123. Quentin Meillassoux prefere falar de ‘correlacionismo’ para qualificar a primazia teórica acordada à relação entre o pensamento (ou qualquer outra posição orientada: conscience, percepção, intuição, ‘carne’ merleau-pontienne) e seu correlato, em detrimento dos termos em relação. Ver Quentin Meilaussoux, Après la finitude, Paris, Le Seuil, 2006.  

[2] Manuel De Landa, Intensive Science and Virtual Philosophy, London, Continuum, 2002, p. 47.

[3] Todo o tratado tenderá, portanto, a infringir o célebre slogan de Quine, ‘nenhuma entidade sem identidade’, tanto quanto o comentário de Leibniz endereçada à Arnauld segundo a qual ‘o que não é verdadeiramente um ser não é também verdadeiramente um ser’. O objetivo dessa obra é demonstrar em ato, pela construção de um modelo coerente, que se deve e se pode ter alguma ‘coisa’ de menos determinada que tal entidade identificável ou que um ser um: cada ‘coisa’ enquanto tal está ‘sozinha no mundo’, e não é comparável ou comparada com outras coisas. Nós defenderemos, pois, que a solidão é menos que a unidade, menos que a identidade e que ela não implica o aceite – nem também a recusa – do princípio de não contradição.

[4]  Uma vez que é incondicionado, na tradição idealista alemã, por exemplo no primeiro Schelling, o que não pode ser transformado em coisa. A coisa (das Ding) é condicionada (be-dingt) por uma outra coisa além dela mesma.

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