Por Gustavo Guenzburger (UNIRIO)
Fiquei honrado e ao mesmo tempo surpreso com o convite que recebi para escrever este comentário no blog do Sociofilo sobre minha tese de doutorado (GUENZBURGER, 2015a). Afinal, não sou sociólogo, antropólogo, filósofo, economista e nem das ciências sociais. Sou artista, trabalhador e ativista da cultura, professor e pesquisador de teatro.
O convite certamente decorre do fato de minha pesquisa de doutorado ter levantado questões que interligam todos estes campos, ao tentar encontrar algumas das relações existentes entre a estética do teatro carioca e os seus mecanismos socioeconômicos. O ineditismo desse olhar trouxe benefícios e dificuldades à pesquisa. O benefício mais evidente é o próprio interesse que o trabalho suscita, tendo partes publicadas em algumas das principais revistas acadêmicas nas áreas de Letras e Teatro (GUENZBURGER, 2015b; 2016a e 2016b), e o patrocínio da FAPERJ para sua continuidade através de uma Bolsa do Programa Pós-doutorado Nota 10. Uma das maiores dificuldades, fora minha própria pouca formação no meio das ciências sociais e da economia, foi sem dúvida a da falta de fontes e de trabalhos anteriores com os quais o meu pudesse dialogar.
Se a sociologia dos fazeres artísticos e culturais só recentemente começa a se fixar como ramo de pesquisa no Brasil, a sociologia e a economia do teatro ainda são um verdadeiro livro de lacunas na academia brasileira. Curiosamente, essas lacunas tendem a aumentar à medida que os pesquisadores se afastam do passado teatral em direção ao estudo da cena contemporânea. Para este campo de pesquisa, as relações que se estabelecem entre estética e meio social são ainda mais esquecidas. Se a história do teatro brasileiro enxergou ligações diretas entre o lucro e os códigos rígidos da cena cômica da primeira metade do século XX, essas interações vão ficando borradas com a chegada da “modernidade” ao palco brasileiro. Diante da recente universalização do patrocínio ao teatro a partir de verbas governamentais, a pesquisa acadêmica simplesmente se voltou para o acontecimento teatral “em si”, a cena, a performance, seus pressupostos estéticos, poéticos e mais recentemente étnicos e éticos. Mas os mecanismos sociais que ligam o que está em cena ao modo de produção e recepção de um espetáculo patrocinado ou vencedor de um edital não são geralmente considerados para a pesquisa que se debruça sobre a produção teatral contemporânea. No caso carioca, onde a televisão exerceu e exerce uma força econômica e estética enorme em praticamente todas as formas teatrais, sua ausência nas discussões sobre estas formas denota também mais uma lacuna na pesquisa teatral, só comparável à cegueira quanto à onipresença do patrocínio e sua influência na própria estética teatral atual.
São estas as lacunas que minha tese de 2015 começou a rastrear e a mostrar. Mas elas ainda estão esperando para serem preenchidas por todos que quiserem compreender os fundamentos do teatro recente e contemporâneo carioca. Baseado em estudos de casos e em discussões teóricas, a perspectiva histórica da tese englobou, em primeiro lugar, as relações de mútua legitimação entre a indústria da televisão e o teatro carioca, dos anos 60 ao final da década de 80. A decadência desta simbiose e a decorrente crise de bilheteria do teatro “sério”, calcado nas estrelas da TV, é sucedida na sequência da tese pelo fortalecimento dos encenadores e do patrocínio. Na segunda metade dos anos 80, algumas das primeiras peças patrocinadas pelo sistema de mecenato de certa forma reagiram àquele momento de concorrência desigual com as novelas televisivas, ao proporem estéticas pós-modernas e autorreferenciais, baseadas na busca e na importação de novas linguagens e na criatividade do encenador. Embora as novas cenas ajudassem a criar uma autonomia artística para a parte mais experimental do teatro carioca, também inauguravam a lógica de financiamento e legitimação curatorial, cujo deslocamento de foco, do público para o patrocinador, aumentava ainda mais o problema das bilheterias no Rio de Janeiro.
Na década de 90, o surgimento de uma rede municipal de teatros na zona sul e centro e de lonas culturais em áreas mais pobres, junto com o fortalecimento dos Sistemas SESC/SESI de cultura, tentou acompanhar o interesse de novas gerações e novas camadas da população por um fazer teatral cada vez mais precário, cujo número de profissionais registrados se expandia na proporção inversa de seu público pagante de classe média. Esta ampliação é ainda reforçada social e geograficamente pelo surgimento de novas formas de produção, ligadas a movimentos sociais e ONG’s atuantes em favelas e periferias, cuja valorização e legitimação até aquele momento, no entanto, diziam mais respeito à sua função social e formativa do que propriamente artística ou criativa.
A partir dos anos 90, aos poucos a novidade midiática dos “grandes encenadores” foi perdendo fôlego na cena experimental da zona sul do Rio, e a tarefa de descobrir novas linguagens foi sendo gradativamente dividida com os grupos e companhias desta área da cidade. Desde a década anterior, eles surgiam como alternativa ao esgotamento do mercado do teatro por bilheteria e como contraponto artístico ao sistema de estrelato televisivo, cuja lógica midiática passaria a reger também o mecenato incentivado pela Lei Rouanet.
Na virada para o século 21, artistas e produtores das duas maiores capitais do país reagiram a este quadro de mercantilização nacional do teatro. São Paulo e Rio de Janeiro conquistaram neste período suas primeiras políticas de fomento calcadas em editais públicos anuais. Gestadas em movimentos sociais de natureza muito distintas, estas políticas se desenvolveram também diversamente numa cidade e na outra. Em São Paulo, o movimento Arte Contra a Barbárie conseguiu consolidar em sua Lei de Fomento ao Teatro toda uma lógica de continuidade, territorialização e pesquisa de linguagem dos grupos. No Rio, onde os editais nunca se transformaram em leis e ficaram por isso dependendo da boa vontade ou da politicagem de prefeitos, os grupos acabariam por seguir a lógica dos produtores ao tornarem-se bons captadores e concorrentes em editais. Apesar de melhorados através dos anos, os editais cariocas até hoje contemplam preferencialmente projetos eventuais pelo critério de inovação da encenação, sem compromisso com a continuidade ou a territorialidade do trabalho.
Dentro deste quadro histórico e de uma perspectiva sociológica, o que minha pesquisa de doutorado identificou sobre a parte do teatro carioca produzida nas redes públicas dos teatros da zona sul e do centro – com verbas geralmente obtidas em editais de fomento e que se liga de uma forma ou de outra à pesquisa de novas linguagens cênicas – foram forças que a empurram na direção do que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) chamaram de “o novo espírito do capitalismo”. O que esse mercado restrito espera de um aspirante, para poder aceitá-lo, é que ele seja um artista-empreendedor, capaz de aproveitar as oportunidades do mercado e de projetar com clareza suas obras antes de criá-las, demonstrar o ineditismo e a criatividade de seu trabalho antes mesmo de ele existir; que trabalhe bem em equipes cujos integrantes podem ser trocados a cada nova empreitada; um artista capaz de forjar sua própria rede de relacionamentos e de divulgação, indispensáveis neste meio individualista e extremamente competitivo, que funciona por projetos, e no qual as maiores barreiras a serem vencidas são a do anonimato e a da falta de contatos e comunicação.
Em termos estéticos, foi explorada na tese uma possibilidade artística que poderia ser distintiva na cena carioca contemporânea: a renovação da linguagem cênica no Rio de Janeiro parece, muitas vezes, deixar de lado o próprio trabalho de atuação.
Em uma certa vertente da cena carioca, diretores, dramaturgos e grupos focalizam cada vez mais sua criatividade na invenção de novos e inusitados dispositivos cênicos, que podem incluir formas impensadas de narrar, de iluminar, de desconstruir estereótipos, de usar um palco ou de não usá-lo, de criar cenários mutantes, projetados, microfonados e sampleados ou não, de filmar a peça ou encenar o filme, de improvisar, fazer talk show, aula sobre a própria peça, ficção científica, peça virtual ou troca de sexo dos personagens. No entanto, muitas vezes não se espera ou se exige que o trabalho dos atores acompanhe as inversões de perspectiva desta miríade de dispositivos, mas simplesmente que os intérpretes se movimentem entre eles e os integrem com a maior naturalidade possível, podendo ser, inclusive, falando ao celular, tomando whisky ou fumando um cigarro. No Rio de Janeiro, o compromisso com uma verdade plausível, trivial e, muitas vezes, bem-comportada das personagens ou figuras do palco parece conviver bem com as mais ousadas e criativas invenções cênicas. Alguns dos mais qualificados e arrojados espetáculos que estiveram em cartaz no Rio ultimamente podem ser vistos com maior ou menor precisão por este ângulo.
Por parte dos intérpretes do palco experimental, muitas vezes a prática do estilo natural em um espetáculo de linguagem “ousada” ou “contemporânea” pode ser impulsionada e legitimada pela ideologia da atuação pós-dramática ou da performance. A teoria de valorização da opacidade performativa, que pregaria o fim do objetivo de ficcionalizar um personagem, pode abrir espaço ou se misturar ao expediente pasteurizador da indústria audiovisual, na qual os intérpretes são normalmente incentivados por várias circunstâncias, principalmente na teledramaturgia do horário das 17 às 21 horas, a “não interpretarem”, a viverem seus papéis como se fossem eles mesmos, em um reality show – a se colocarem em cena como as pessoas normais de classe média que são.
É verdade que muitas vezes as encenações tiram proveito de uma descontextualização proposital, criada pela inserção destas figuras medianas em arranjos ou propostas cênicas nada naturais, provocando fricções cujo estranhamento pode estar virando uma marca carioca para a pesquisa de linguagem.
Todavia, também será necessário levar em conta o fato de que este expediente, ao fazer uso de figuras humanas e de técnicas inspiradas ou próximas à padronização da indústria audiovisual, pode estar embutindo um gosto por certo tipo de autorrepresentação, que privilegia a estupefação da figura humana “normal” – com modos burgueses brancos e em geral da zona sul – diante de um mundo desmantelado ou enlouquecido, cuja complexidade está muito além de sua compreensão. Isso explicaria pela via da delimitação sociocultural a (quase) ausência de outro tipo de representação de sujeito neste nicho do teatro carioca. Entretanto, essa explicação sociológica tem alcance parcial, já que a interdição de subjetividades não parece ser um fenômeno restrito ao Rio de Janeiro, mas observável em boa parte do teatro produzido e consumido pela classe média brasileira, principalmente a partir do momento em que outros estratos sociais também começaram a se manifestar teatralmente.
No Rio, a cidade que começa do outro lado do Túnel Rebouças, que vai além da curva da Avenida Brasil, ou que adentra o interior de qualquer favela; suas opressões, encarceramentos, torturas, chacinas, analfabetismos funcionais e subalternidades parecem ser ao mesmo tempo nosso ponto cego e nosso tabu teatral. Seus estereótipos podem até ser amplamente comercializados pela televisão e pelo cinema desde os anos 1990 (PEREIRA, 2005), mas para os palcos dos teatros públicos do centro e zona sul, que abrigam as experiências cênicas consideradas “contemporâneas”, essa outra cidade continua em geral invisível, e seus habitantes ainda negados enquanto sujeitos. Essa dificuldade em representar o “outro”, que pode provocar a desconexão entre o teatro e a esfera pública da sociedade (BALME, 2014), diz respeito aos meios de produção, mas também às possibilidades e limites da inovação estética no âmbito do experimento teatral. Por isso, também faz parte das inquietações da pesquisa no pós-doutorado.
Por sua vez, este aparente paradoxo teatral carioca, formado pela conjunção da inovação cênica com o naturalismo atorial, pode estar em ressonância com o longo diálogo estético que o experimentalismo da cidade mantém com as duas forças sociais que mais influenciam a vida profissional de seus artistas: o patrocínio e a televisão. Pelo menos é isso que sugerem os dados e conclusões levantados até aqui pela presente pesquisa.
Se, pela via da concorrência artística e da libertação dos grilhões da bilheteria, o patrocínio pode estimular a constante reinvenção da cena contemporânea, a televisão poderia, pela via da conformação a um paradigma onipresente de sucesso, “bom gosto” e moderação expressiva, exercer uma barreira a novas experimentações atoriais, chegando a constituir uma tendência de castração criativa ao trabalho do intérprete carioca. Embora a naturalidade em cena possa ajudar o ator na difícil tarefa de se legitimar junto ao público e ao métier de um mercado competitivo e parcialmente parametrado pela normatização audiovisual, corre o risco de retirar desse mesmo artista a capacidade política de criar novas formas corporais para representar o ser humano. O ator que se rende à padronização do natural teria que delegar essa tarefa ao encenador. Mas será que no teatro a encenação seria capaz de criar, sozinha, novas visões possíveis de humanidade?
A lógica do novo espírito do teatro carioca parece não permitir que o potencial de libertação artística do patrocínio, que atua sobre as amarras criativas da encenação, se estenda ao trabalho dos intérpretes. Afinal, quem patrocina os atores e atrizes? No Rio, cada vez mais, os editais públicos financiam espetáculos enquanto empreendimentos individuais de prazo determinado, que assim podem e devem cumprir sua função renovadora de descobrir novos caminhos pela via da encenação. Mas não há por aqui políticas públicas que contemplem a lógica de longo prazo da criação e da sobrevivência dos artistas do palco. Com rendas de bilheterias praticamente nulas, cachês por empreitadas, precários e intermitentes, cada vez mais os atores do circuito das redes públicas de teatro se voltam para seu principal horizonte de profissionalização: a televisão. Algumas exceções conseguem assumir os dois ofícios e, mais raramente ainda, separar bem as suas demandas estéticas diversas, tirando ainda um proveito legitimador e midiático dessa dupla atividade.
No entanto, o exemplo desses “bem-sucedidos” parece reforçar e legitimar um modelo do caminho de sucesso a seguir, que vai desde o teatro alternativo carioca até o Projac/Globo ou a Record, passando por gradações e variações do mercado atorial, uma vez que a rede teatral da zona sul promete ser ainda o melhor e mais disponível mostruário para contratação de mão-de-obra de bom nível para essas emissoras, sediadas na cidade. E, junto a esta perspectiva real de profissionalização, os exemplos dos que alcançaram o sucesso também ajudam a difundir os modos de atuação necessários para obtê-lo, reforçando assim o caráter paradigmático do estilo a seguir.
Mas a verdade é que a grande maioria dos atores em atividade no Rio de Janeiro compõe a massa semiamadora dos que nunca entrarão para o meio profissionalizado da televisão, a não ser para servirem eventualmente de mão-de-obra de reserva para pequenas “pontas”. Dentre estes, há aqueles que, por não desistirem do teatro de jeito nenhum, assumem outras profissões concomitantes ao ofício intermitente do palco. Talvez seja curiosamente nestes casos, nos quais a diletantização poderia significar uma maior liberdade para a pesquisa de novas linguagens atoriais, que o paradigma profissional da televisão acabe se fazendo em geral mais presente. Contida no próprio horizonte de expectativas das plateias e dos agentes do meio teatral, a pressão que a estética da atuação televisiva exerce sobre um ator experimental inseguro e à deriva no mercado teatral, ansioso por demonstrar seu profissionalismo, pode acabar representando uma força subliminar e conservadora em seu trabalho.
Essa tendência de conservadorismo formal do ator – que aparece como uma das hipóteses a serem desenvolvidas e verificadas na presente pesquisa de pós-doutorado – pode aumentar ainda mais se houver na plateia um diretor ou produtor de elenco, que estaria ali justamente para avaliar a possibilidade técnica de alguns para trabalharem nos estúdios. Essa difícil medida de profissionalismo inclui carisma, “brilho no olhar”, capacidade de empolgar o espectador e, principalmente, saber diluir tudo isso em um jeito natural e cotidiano de falar, gesticular e se mover no palco.
Reconhecendo o potencial inovador da cena experimental carioca e o papel que os diversos fomentos têm neste processo, minha pesquisa parte da premissa de que, apesar disso, uma política pública unicamente direcionada a projetos de encenação não atacaria o problema da sobrevivência dos atores e atrizes dentro deste nicho. Estes ficariam expostos, portanto, à pressão do campo profissional da indústria televisiva, cujo paradigma naturalista de atuação acabaria interferindo assim fortemente em seu trabalho artístico. Mas esse não seria um movimento de causa e efeito, e sim de diálogo e influências em múltiplas direções. Os artistas cariocas tiveram, e continuam tendo, maior ou menor participação na formulação das políticas públicas que apontam seu teatro para a direção do evento. Quando não participam, eles estão optando por se colocarem de acordo com as regras vigentes. De uma certa maneira, as visões do teatro por projetos, do artista como empreendedor e do ator multimídia e multimeios parecem fazer parte do imaginário de um novo espírito teatral carioca, capaz de conciliar ideologicamente o experimentalismo teatral à práxis do empreendedorismo. O resultado artístico desse jogo de forças aparece sugerido na hipótese de pesquisa como uma possibilidade esquizofrênica de representações de mundo extremamente criativas e inovadoras em uma cena que poderia ser habitada, ao mesmo tempo, por representações corporais conservadoras e normatizadas do ser humano.
Durante o doutorado, os estudos de sociologia teatral realizados em estágio sanduíche na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris III) me ajudaram a desenhar e a embasar o presente quadro hipotético. Na França, pude entender que até hoje as teorias de Pierre Bourdieu estão muito presentes na sociologia da cultura e dos hábitos culturais dos franceses, seja para serem continuadas ou contestadas, levando esta disciplina para a direção dos estudos das interações e delimitações sociais através do gosto. Por outro lado, os primeiros estudos a tentarem aproximar a sociologia às mudanças estéticas recentes no teatro francês têm preterido a ideia de distinção de Bourdieu, em favor dos olhares de Luc Boltanski, Laurent Thévenot e Ève Chiapello, na intenção de refletir sobre o desencanto dos diversos setores das artes cênicas quanto ao seu engajamento, seja este político (HAMIDI-KIM, 2011), ou no mundo do trabalho e do patrocínio governamental à cultura (URRUTIAGUER, 2014). No caso do teatro carioca do circuito público e experimental da zona sul/centro, a ideia de um novo espírito do capitalismo, enquanto “ideologia que justifica o engajamento no capitalismo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 39), pareceu, até aqui, bastante apropriada também para começarmos finalmente a discutir a recente adaptação dos artistas a uma nova ordem de produção “por projetos”, que conciliaria ideologicamente experimentalismo e empreendedorismo. Nesta “cidadela por projetos” do teatro carioca, os diversos agentes tendem a possuir pouco vínculo entre si no tempo, ao se engajarem na extrema competitividade de um mercado de empreitadas, de certa forma forjado também por eles junto ao poder público. Este mercado de verbas públicas precário, desigual e intermitente reflete a própria falta de organização coletiva dos artistas e é recheado de incongruências nos seus sistemas de julgamento e legitimação. Tal mercado se caracteriza pela valorização de novas linguagens, pela concentração sócio-geográfica, pela identificação encenador/empreendedor e pela dependência financeira junto a sistemas curatoriais sobrecarregados tais como Sesc, Sesi, algumas empresas estatais, Funarte, Fomento Municipal, etc.
Mas será necessário procurarmos também, nesta cena carioca, a presença dos mecanismos distintivos descritos pela sociologia crítica de Bourdieu (2011) na mistura contemporânea, aqui proposta, de encenação cosmopolita com atuação localizada pelo naturalismo televisivo. Se observados sob a ótica de Bourdieu, tanto o cosmopolitismo inovador do dispositivo cênico quanto a moderação atorial naturalista, redutora do ser humano ao “ser mediano” (muitas vezes branco, de zona sul), poderiam hipoteticamente compor a expressão de um palco sem razões urgentes para desejar o aumento de sua diminuta plateia, mas, ao contrário, com interesse em delimitar cada vez mais o seu perfil. Mecanismos autorreferenciais da encenação contemporânea, estabelecidos nos últimos 30 anos no Rio, junto com o sistema de legitimação midiático-curatorial que determina os patrocínios, poderiam estar conjugados aí com um dispositivo – naturalista – de autorrepresentação corporal de um certo estrato sócio-cultural, em um processo de distinção social que atravessaria a estética, a produção e o consumo do teatro. A ligação entre o sentimento de pertencimento a uma classe – com todas as disputas e compromissos éticos e estéticos que isto pressupõe – e o sistema de legitimações dos diversos mercados de patrocínio parecem ser um campo importante, ainda a ser estudado, no caso do Rio de Janeiro. Na mirada histórica de meu doutorado, tal processo de distinção aparece nas relações entre a emergência de um mercado de patrocínios de empresas privadas e o fortalecimento da encenação contemporânea no Rio de Janeiro a partir dos anos 80. A eclosão de novas linguagens para a cena carioca esteve imbricada em uma mudança global na maneira de se pensar o teatro, mais descompromissado em relação às discussões da sociedade, e que assumiu a sensibilidade como único canal de atuação política possível para o artista. Esta vertente “pós-política” (HAMIDI-KIM, 2011) do teatro contemporâneo é mundialmente estudada enquanto consequência natural do desencantamento do artista pós-moderno perante as velhas narrativas totalizantes, ou como uma virada na relação entre política e arte, que teria resultado no enfraquecimento do drama enquanto forma e na valorização política de aspectos cênicos e performativos (LEHMANN, 2007).
Nesta discussão sobre o sentido do político na arte teatral contemporânea, globalmente dependente de subvenções ou mecenatos, é que as tensões entre filosofia e sociologia (NORDMANN, 2007) mais se justificam na tese e na pesquisa do presente pós-doutorado. A influência que a arte teatral pode exercer na partilha do sensível – que, segundo Jacques Rancière (2009), define quem pode tomar parte da política no mundo – está hoje no cerne de muitos questionamentos sobre as relações entre teatro e sociedade. O que argumentei em minha tese de 2015 é que as novas maneiras de se partilhar o dinheiro público ou privado entre os espetáculos também estão implicadas na forma com que estes propõem ao mundo uma nova partilha do sensível.
Agora em 2017, assistimos no Rio de Janeiro ao desmonte de todas as políticas de fomento ao teatro na cidade: o sistema Sesc é sucateado por uma gestão corrupta e contestada na justiça, a Secretaria Estadual de Cultura é entregue às mãos de um político do PMDB sem ligação com o meio cultural e o edital municipal de fomento de 2016 ainda se encontra em situação de calote. Diante do que parece ser uma tendência nacional impulsionada pela crise política e econômica, a pesquisa de pós-doutorado é obrigada a atentar para um quadro social que pode estar sendo abruptamente modificado. Poderá uma arte que nas últimas décadas adaptou seus meios de produção às verbas governamentais sobreviver ou se reinventar sem elas? Em São Paulo o congelamento da verba para 2017 das leis de fomento gerou uma grande união e movimentação de trabalhadores da cultura e de artistas de diferentes realidades sociais, segmentos artísticos e territórios da cidade. Como atravessar essa encruzilhada no Rio de Janeiro, onde o “novo” espírito teatral e sua lógica individualista dificulta qualquer ação coletiva? Alguns movimentos da cultura carioca, como o Reage, Artista!, Diálogos em Circo e Fórum Carioca de Arte Pública, já estão também interferindo nas esferas públicas, no debate legislativo, propondo leis, emendando o orçamento municipal para a cultura. Mas parece que, para resistir ao desmonte de seus recursos, o teatro carioca até hoje (mal) fomentado precisará antes se desfazer de alguns de seus próprios mecanismos concentradores e elitistas, para assim incorporar e legitimar outros agentes, outras geografias, outras realidades sociais, estéticas e de produção. Talvez só a partir desta maior abrangência, é que outros modos de atuação política poderão surgir e conseguir para o teatro do Rio o reconhecimento necessário à sua sobrevivência enquanto arte, profissão e ferramenta de transformação da sociedade.
Bibliografia
BALME, C. The Theatrical public sphere. Cambridge University Press, 2014.
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2011.
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URRUTIAGUER, D. Les mondes du théâtre: désenchantement politique et économie des conventions. Paris: Harmattan, 2014.
Parabéns Gustavo
Li atentamente seu artigo e fiquei surpreso com a profundidade de sua análise fática e a correlação desses fatos com a inexistência de políticas sócio culturais explicitas. Normalmente chamamos de politicas(policies) um conjunto de propósitos estabelecido por quem detém o poder de interferir na realidade, objetivando criar um futuro que atenda seus interesses de mando, comando e desmando. O Poder sempre se reproduz por meio de políticas. Daí eu me pergunto: a não explicitação de uma política sócio cultural pode ser considerada uma politica com intencionalidade? Qual seria? Vamos nos encontrar, diante de um “vinum bonum” para que você possa me esclarecer alguns aspectos nebulosos para um engenheiro psico- dramatista, estudante de filosofia com desinformação multicultural.
Ruy