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A relação de estudantes e adultos com a matemática, por Carla Cristina Pompeu

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Resumo

Esse artigo advém de um estudo de doutorado que teve por objetivo analisar a relação que alunos jovens e adultos estabelecem com o conhecimento matemático, procurando entender os significados atribuídos a esse conhecimento e as dificuldades que emergem de tal relação. O foco da pesquisa foi analisar as experiências de sujeitos do ensino médio na modalidade de educação de jovens e adultos (EJA) de duas escolas da rede pública do estado de São Paulo e entender suas relações com a escola e com o saber matemático, o modo como mobilizam seus saberes no contexto de sala de aula, como se relacionam com o conhecimento matemático escolar e como negociam significados em matemática a partir das contribuições da sociologia pragmática. Por meio da análise de documentos oficiais da educação de adultos e do aprofundamento teórico em estudos da Educação e da Educação Matemática, além da observação de aulas de matemática, da aplicação de questionários e da realização de entrevistas individuais e de oficinas de resolução de problemas matemáticos, buscam-se compreender as especificidades da EJA e de seus sujeitos e de que modo se dá a relação dos alunos da EJA com a matemática. A compreensão da matemática como prática social insere-se na discussão de que este saber é concebido a partir das atividades sociais dos sujeitos, tendo, portanto, valores e significados diversos, de acordo com a situação. Fundamentada nas contribuições da sociologia pragmática, a análise dos sujeitos de pesquisa “em ação” revela as incertezas e os conflitos presentes nas aulas de matemática e a capacidade dos alunos da EJA em confrontar, negociar, validar e significar saberes de maneira única. A metodologia de pesquisa adotada foi a pesquisa qualitativa, com utilização de observações, questionários, entrevistas semiestruturadas e oficinas de resolução de problemas como instrumentos de coleta de dados. Os dados coletados revelaram realidades escolares ainda centradas num conceito de matemática procedimental, que não favorecem a interação entre alunos e entre alunos e professores. Oficinas de resolução de problemas matemáticos propostas não só propiciaram situações de interação entre alunos, mas se mostraram momentos profícuos de negociação, valorização e confrontação de saberes. Conclui-se que os alunos jovens e adultos se relacionam de maneira distinta com os saberes matemáticos, e apesar de não reconhecerem seus próprios saberes no contexto escolar trazem experiências matemáticas anteriores que muito podem contribuir para o processo de aprendizagem da matemática.

Palavras-chave: Educação de jovens e adultos. Relações com o saber matemático. Ensino de matemática. Ensino médio/EJA no estado de São Paulo.

Introdução

A proposta do presente estudo foi investigar a relação de alunos jovens e adultos com a Matemática. Especificamente, estudos como os de Bishop (1999), Trabal (2011) e Miguel e outros (2004) estão voltados para a relação dos sujeitos e suas dificuldades na aprendizagem da matemática, para o caráter situado da aprendizagem e para as dimensões sociais e culturais da matemática e de seu ensino. Tais estudos cumprem uma agenda de investigação na área de Educação Matemática que possibilita transcender os resultados de análises que se têm restringido à dinâmica interna do sistema didático constituído pela tríade aluno, professor e conhecimento matemático, como sistema autônomo.

Os sujeitos de pesquisa deste trabalho foram alunos da EJA e suas particularidades, observando-se as possibilidades de interação entre conhecimento escolar e cotidiano de cada sujeito, construído ao longo de suas experiências de vida extraescolar. O objetivo desta investigação foi analisar os significados atribuídos ao conhecimento matemático, pelos alunos, e as dificuldades que emergem dessa relação. Levando em conta a matemática como uma prática social (LAVE; WENGER, 1991) e sob influência da sociologia pragmática que estuda os sujeitos “em ação”, organizamos os dados coletados em categorias de análise. Essas categorias emergiram dos dados coletados a partir de eixos de interesses que foram centrados na questão de investigação: Como os alunos jovens e adultos se relacionam com a matemática e de que modo os contextos sociais e suas experiências modificam essa relação?

O artigo está organizado em cinco partes. Inicialmente discutimos a educação de jovens e adultos, seus entraves e possibilidades. Na segunda parte tratamos das experiências, práticas matemáticas e o papel dos sujeitos no contexto escolar, a partir das contribuições da sociologia pragmática. A metodologia escolhida, os instrumentos e procedimentos utilizados para a análise são expostos na terceira parte do texto.  Na quarta parte os dados são descritos, analisados e discutidos e, finalmente, são apresentadas as considerações finais e discutidas algumas implicações deste estudo no campo da educação e da educação matemática.

Educação de jovens e adultos

A educação de jovens e adultos é atualmente uma temática de grande interesse dos órgãos internacionais responsáveis por garantir e discutir o acesso à educação, cidadania e aos direitos humanos. Em todo o mundo, o número de jovens e adultos sem acesso à educação básica é ainda muito elevado e, portanto, como defende a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), a aprendizagem ao longo da vida e o direito à educação são alguns dos pilares para o exercício da cidadania e para a participação na sociedade (UNESCO, 1997). Desde logo, conferências internacionais de educação de adultos (Confintea) evidenciam a relevância do debate sobre o acesso à educação, os avanços tecnológicos e a crise econômica e social que afetam diretamente as pessoas com menor escolaridade.

No Brasil, a educação de jovens e adultos sofreu importantes avanços nas últimas décadas, mas ainda segue sem planos de políticas públicas efetivas e vinculada a programas compensatórios, de reposição de escolaridade (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001). Embora as ações do Estado tenham fortalecido o papel secundário da EJA no âmbito das políticas públicas educacionais, a LDB foi importante na renomeação do ensino supletivo para educação de jovens e adultos, uma vez que o termo “educação” é mais amplo do que “ensino”, que se refere à mera instrução e não à formação (SOARES, 2006). Ainda assim, Haddad (1997) enfatiza o papel da EJA nas políticas educacionais e retrata os retrocessos ainda presentes no atual formato dos cursos de educação de jovens e adultos, em que as especificidades dos sujeitos não são reconhecidas e valorizadas. Além disso, a inclusão da EJA no Fundeb, no PNLD e no PNE foram conquistas importantes, muitas das quais persuadidas pelos fóruns estaduais da EJA, que, como defendido por Di Pierro (2010), trouxeram à tona o papel secundário da EJA nas políticas públicas nacionais.

Como afirma Freire (1987), a educação possibilita a compreensão crítica da realidade social, política e econômica e insere estes sujeitos da EJA num processo permanente de libertação, de conhecimento de si mesmo e de transformação pessoal e do mundo. Para tanto, a reinserção no mercado de trabalho e mesmo o acesso ao ensino superior podem não ser garantidos a partir da ampliação da escolaridade, porém, a experiência escolar pode proporcionar a ampliação de horizontes e perspectivas pessoais, capaz de modificar o presente vivido pelos sujeitos da EJA.

 Experiências, sujeitos e práticas matemáticas

Analisar como os estudantes de EJA produzem e se relacionam com os saberes matemáticos requer uma reflexão sobre o saber matemático e de que modo estes saberes são retratados ao longo deste trabalho. Tendo por referência as contribuições de Abreu (1995), a identificação da matemática como uma importante área do conhecimento é tão expressiva quanto sua certificação como objeto social, pelo fato de a produção de conhecimento matemático ser influenciada pelas atitudes, crenças e contextos socioculturais presentes na realidade em que a prática matemática foi construída e validada.

Práticas matemáticas

Miguel e outros (2004, p. 82) consideram a matemática como uma prática social que dispõe de “atividades sociais realizadas por um conjunto de indivíduos que produzem conhecimentos, e não apenas ao conjunto de conhecimentos produzidos por esses indivíduos em suas atividades”. Para tais autores, a matemática é concebida pelas atividades sociais dos sujeitos. Estamos de acordo, com Abreu (1995), Miguel e outros (2004) e Wanderer (2007), que identificam as diferentes matemáticas e as relações de poder impostas em processos de legitimação das práticas matemáticas. A denominação “práticas matemáticas” refere-se a práticas sociais vivenciadas pelos sujeitos que envolvam, de algum modo, produção, domínio ou ressignificação de saberes matemáticos; por exemplo, a matemática escolar, a matemática do trabalho etc. são práticas matemáticas significadas em situações e contextos distintos.

Assumir as práticas matemáticas como práticas sociais requer identificá-las não como algo puro e exato, mas como construções sociais que dependem das intervenções, representações, valores e contextos dos sujeitos. Aliás, conforme defendido por Lave e Wenger (1991), aprender requer interações com o mundo, de modo que a aprendizagem não está apenas situada na prática, mas é parte integrante da prática social geradora do mundo em que vivemos. Sendo a construção de saberes matemáticos dependente do contexto e das representações dos sujeitos, a análise da aprendizagem matemática requer considerar a situação em que este processo se desenvolve (LAVE; WNGER, 1991).

Sem deixar de considerar as estruturas de poder, a sociologia pragmática referenciou este estudo no que concerne às relações entre aluno e saber nas aulas de matemática e a relevância dos sujeitos “em ação”. Como afirma Vandenbergue (2006), a sociologia pragmática convida o observador a mergulhar no meio das ações e interações dos sujeitos, tendo acesso direto às observações da vida social in situ. Os alunos, quando analisados em ação e em situação, com referência aos estudos de Barthe e outros (2016), têm capacidade crítica para reagir diante de um cenário de opressão. Ainda de acordo com os autores, essa capacidade crítica difere de um sujeito participante de uma situação para outra, afinal, com relação aos sujeitos, “suas competências (e, portanto, suas disposições, hábitos, tendências à ação etc.) formam um sistema dinâmico e adaptativo” (BARTHE et al., 2016, p. 106).

Sujeitos da EJA

No intuito de investigar as relações entre sujeito e saber matemático, classificar os sujeitos em grupos culturais, sociais ou qualquer outro tipo de organização poderia impossibilitar discussões relevantes acerca das especificidades destes sujeitos. Boltanski e Thévenot (1991) propõem o reconhecimento dos sujeitos como reflexivos, com competências para criticar e agir, de modo que, para exercerem suas capacidades de reflexão e crítica, baseiam-se em regimes de justificação que direcionam suas ações. Corrêa e Dias (2016) evidenciam a recusa dos sociólogos pragmáticos em aceitar uma visão global da integração social, como se houvesse uma única explicação das ações dos sujeitos, por isso a proposta de “um mundo plural não apenas no sentido das tradições e concepções de justiça, mas também em relação às suas modalidades de ação e de engajamento” (CORRÊA; DIAS, 2016, p. 83). Esse mundo plural é composto por modos de justificação ou regimes de justificação, que conduzem as ações dos sujeitos em momentos de disputa. Os autores destacam o regime de justiça como o principal regime de grandeza, já que é nele que os sujeitos sociais fazem uso da palavra e problematizam os fundamentos do vínculo social. Campos (2009, p. 16) reforça:

[…] uma mesma escolha pode ser justificada a partir de ordens de grandeza diferentes. Para Boltanski, por exemplo, uma denúncia pública tem mais chances de ser ouvida caso consiga se des-singularizar, isto é, fazer referência a princípios de justiça mais relacionados ao coletivo. Meu argumento é que esta capacidade de des-singularização – bem como a capacidade de des-coletivização – são influenciadas pelas modalidades reflexivas e pelos contextos sociais.

Corrêa e Dias (2016) admitem que os sujeitos justificam e legitimam suas ações apoiados em regimes de grandeza[1], de modo que uma mesma ação possa ser justificada com base em diferentes regimes de grandeza e com diferentes justificações, que podem ser particulares de cada sujeito. Corrêa e Dias (2016, p. 71) asseguram que a proposta de análise a partir das ações dos sujeitos consegue “dar conta da pluralidade de relações que as pessoas estabelecem com as regras e os valores, e das transições e adaptações que se passam ao longo das situações cotidianas”. Ao contrário das discussões aqui levantadas, em que o sujeito é o principal protagonista no que se refere a suas práticas sociais, a o diagnóstico feito por Monteiro, Mendes e Guimarães (2012) acerca dos documentos oficias para EJA revelam a não legitimação dos sujeitos e a necessidade de assegurar-lhes uma escola que lhes represente, já que “os discursos veiculados nos documentos tendem a forjar um sujeito-aluno da EJA, de forma homogênea – como se fosse possível delimitá-lo dentro de certos critérios estanques e cristalizados, negando suas diferenças e diversidades” (MONTEIRO; MENDES; GUIMARÃES, 2012, p. 125). A valorização da diversidade e da capacidade dos sujeitos é requisito essencial em se tratando do estudo de relações e interações entre alunos e práticas matemáticas.

Experiências e interações sociais

As experiências escolares combinam lógicas de ação de diferentes contextos, portanto, como defende Douek (2007), é possível perceber a busca de significado e ferramentas interpretativas, por parte dos alunos, para desenvolver suas tarefas matemáticas no contexto escolar. A autora enfatiza que os conhecimentos de referência dos alunos, que os auxiliam a dar sentido à atividade matemática, nem sempre correspondem a saberes matemáticos institucionalizados. Para Douek (2007), ainda que estejam a desenvolver atividades matemáticas escolares, os saberes produzidos em instituições como a escola, por exemplo, costumam ser insuficientes. Esse sistema de reconhecimento de outros saberes por meio de argumentação e demonstração matemática nem sempre acontece e, muitas vezes, implica situações de imposição e disputa (TRABAL, 2011).

Os momentos de conflito, negociação, (in)validação, disputa e consenso fazem parte das aulas de matemática. A educação matemática “é influenciada por este funcionamento que se desenvolve na classe e pela construção dos conhecimentos matemáticos daí resultantes” (BEDNARZ, 2003, p. 48). Analisar as relações do sujeito com os saberes matemáticos a partir de suas experiências e interações intensifica a necessidade de refletir acerca do contexto em que estas experiências e relações com o saber são efetivadas.

Quando sugere a discussão da educação matemática como processo social, Bishop (1999) enfatiza a importância de aspectos macrossociais e microssociais ao propor uma educação mais eficiente. Para o autor, não existem alunos iguais, pois o sujeito atribui valores pessoais ao processo educativo, pelo fato de toda comunicação ser influenciada pela personalidade do indivíduo. É possível, pois, reafirmar que todo sujeito, ainda que faça parte de grupos sociais e culturais específicos, de dada escola ou sociedade, participa da experiência educativa de uma forma muito particular (BISHOP, 1999).

A sociologia pragmática reforça a análise dos sujeitos em ação como possibilidade de investigação dos modos de agir dos atores[2]. Nessa perspectiva, é a partir das tensões e contradições que devem ser apreendidos os sujeitos em ação, assim como os julgamentos feitos sobre eles por seus parceiros (BARTHE et al., 2016). Como afirma Trabal (2012), a sociologia pragmática não considera apenas a ação imediata do sujeito, mas leva em conta também os horizontes temporais dos agentes que sejam pertinentes com o desenvolvimento da atividade. De acordo com o mesmo autor, os pesquisadores devem esforçar-se em estudar as formas pelas quais ocorrem, exprimem-se, discutem-se e se gerem entidades que surgem e desaparecem, como se estivessem investigando um mundo incerto (TRABAL, 2012, p. 188). Quanto à aprendizagem da matemática, deve-se considerar que os sujeitos não atribuem valores e sentidos únicos aos saberes matemáticos; afinal, cada nova situação fará com que o sujeito tenha uma experiência matemática única.

Escolha metodológica

A revisão bibliográfica, a análise de documentos oficiais da educação básica (currículos, parâmetros, documentos de regulamentação etc.) e a pesquisa de campo foram escolhidas por possibilitarem maior reflexão e análise das relações de alunos da EJA com o saber matemático. A pesquisa qualitativa tem como foco entender e analisar dados e discursos, dependendo sempre da relação observador/observado (D’AMBROSIO, 2004). A coleta de dados, neste caso, é feita por meio de observações, entrevistas e/ou análises de documentos, uma vez que “o processo de condução da pesquisa é essencialmente indutivo, isto é, o pesquisador coleta e organiza os dados com o objetivo de construir conceitos, pressuposições ou teorias, ao invés de, dedutivamente, derivar hipóteses a serem testadas” (GODOY, 2005, p. 82).

Nesta pesquisa foram propostos como instrumentos de coleta de dados: a observação participante, dois questionários, sendo um socioeconômico e um que tratou dos saberes matemáticos dos sujeitos, entrevistas semiestruturadas e oficinas de resolução de problemas matemáticos. Além disso, a análise de documentos oficiais acerca do ensino de matemática, do currículo do ensino médio e da EJA foi relevante para a construção e apreciação dos dados coletados. Além dos questionários, entrevistas e observações, foram elaboradas quatro oficinas de resolução de problemas matemáticos, sempre organizando os alunos em grupos, visando que as interações entre eles estimulassem discussões, compartilhamento de estratégias, argumentação e discussão. Diferentes problemas fizeram parte das oficinas na tentativa de compreender como os alunos se relacionavam com situações matemáticas distintas.

Os dados inicialmente analisados sinalizaram respostas e discursos comuns entre os sujeitos investigados, que deram origem às categorias de análise que serão aqui apresentadas. Segundo Patton (1980), as categorias de análise devem surgir de maneira indutiva, articuladas ao programa e aos objetivos da pesquisa.

Contextos investigados

Foram selecionadas duas instituições públicas de ensino que fazem parte do quadro de escolas da SEE-SP (Secretaria Educação do Estado de São Paulo), localizadas em dois municípios: uma na cidade de São Paulo e outra no município de Indaiatuba. A escolha por instituições localizadas em municípios distintos deve-se ao interesse de analisar dois contextos distintos de aprendizagem diversos, seja pela localização da escola, pelo seu contexto social, histórico ou cultural. Com o intuito de preservar o anonimato de alunos e instituições pesquisadas, foram nomeadas como “Escola A” a instituição localizada no município de Indaiatuba e “Escola B” a do município de São Paulo. Os alunos serão diferenciados pela letra que representa o instrumento de coleta de dados –  (O) para observação, (E) para entrevista, (Q) para questionário e (G) para grupos das oficinas[3] – seguidos da letra que representa a escola a quem correspondem, A ou B, e um número que representará apenas a ordem em que seus dados foram transcritos, ou seja, EA1, G1A3, OB5 e QB11. No que se refere aos alunos, a sala de aula selecionada na Escola A foi uma turma de ensino médio da EJA, 2º módulo/termo, com 45 alunos matriculados. Já na escola B, a análise foi feita com uma sala do 1º módulo/termo do ensino médio da EJA, composta por 47 alunos matriculados.

Análise dos dados

A partir da confrontação e análise dos dados foi possível organizá-los em três grandes eixos de interesse baseados nos objetivos iniciais e nos dados coletados, de modo que cada eixo de interesse foi composto por duas categorias de análise. O quadro a seguir apresenta os eixos de interesse e categorias de análise a eles relacionadas e que serão discutidas em seguida.

Quadro 1 – Eixos de interesse e categorias de análise:

 

Relação dos alunos com a escola e com o saber matemático
Relação com a escola (1) Relação com o saber matemático (2)
Representações e concepções dos sujeitos acerca do saber matemático e de si mesmos
Concepções dos alunos sobre si mesmos (3) Concepções sobre a matemática e sua aprendizagem (4)
Interações dos sujeitos no contexto escolar
Negociação de saberes (5) Conflitos (6)

Fonte: a autora, com base em dados da pesquisa.

Relação dos alunos com a escola e com o saber matemático

Entender as relações dos sujeitos com a escola e com o saber evidencia a tarefa de analisar qual o papel da escola e do saber matemático nos contextos investigados. Durante as observações, foi possível perceber a natureza diversa da relação que os alunos estabelecem com a escola, além da complexidade deste espaço e as representações dos sujeitos no que diz respeito à instituição.

Categoria (1): Relação com a escola

A relação do aluno com a escola inclui suas representações sobre o contexto escolar e os processos envolvidos nesse contexto. Ao analisar alunos da EJA no contexto escolar, é possível refletir sobre os prováveis motivos que os levaram à escola, quando se considera a palavra dos alunos como referência principal. O retorno aos estudos e à instituição escolar ocorre por diferentes motivos e evidencia importantes questões quanto ao acesso ao saber escolar, aos espaços de socialização e às concepções sobre a escola. As experiências anteriores, de fracasso e abandono, fazem com que muitos dos alunos, como exposto na escola A, retornem aos estudos por pressão social e pela possibilidade de “melhorar de vida” e “conseguir um bom emprego”. Na Escola B, tais conflitos são mais perceptíveis quando observados o comportamento e os relatos dos alunos. O aluno OB9 afirmou: “Meu pai me encheu o saco e disse que, se eu não voltasse pra escola, eu tinha de arrumar trabalho e sair de casa. Eu trabalho, mas como não tem carteira assinada, não dou muito dinheiro em casa, eles ficam reclamando” (OB9).

Seja na Escola A seja na Escola B, a partir das falas e exposições dos alunos, foi possível concluir que as relações com o outro são relevantes para a formação dos sujeitos da EJA. O “convívio com gente diferente”, ter acesso a “conhecimento e coisas novas” e sentir-se “importante” são alguns dos apontamentos feitos pelos alunos, que demonstram estar na escola por estes e tantos outros motivos. Para cada um desses sujeitos, a escola tem significados diferentes. Quando a escola se torna um espaço de convívio harmonioso e convidativo, os sujeitos sentem-se parte dela e fazem desse espaço um espaço também seu; já quando a escola parece um território desconhecido e impositivo, os sujeitos a rejeitam e se fecham para os saberes e relações que esse contexto pode oferecer.

Categoria (2): Relação com o saber matemático

A desvalorização do saber matemático não produzido na escola faz parte da fala do aluno G1A3, que durante a resolução da primeira oficina questiona a proposta: “Pode até sem usar matemática? Pode de cabeça e sem fórmula? Que estranho”. A valorização excessiva do saber matemático escolar diante de outras práticas matemáticas faz com que os próprios sujeitos desvalorizem seus saberes e experiências. O enaltecimento do saber escolar diante dos saberes não escolares está presente na fala do aluno EA5, que diz: “minha experiência de vida me ajuda na escola, me ajuda a tomar decisões, mas não me ajuda a tirar notas. Pra tirar notas tenho de saber a matéria, saber fazer como o professor, e isso é o mais difícil”.

O reconhecimento da importância e utilidade da matemática foi perceptível nos relatos, entrevistas e falas dos alunos. Embora muitos tenham reconhecido a utilização das operações elementares em práticas fora da escola, esses conteúdos foram quase os únicos reconhecidos pelos alunos como utilizados em situações não escolares. A relevância da contextualização transforma a aprendizagem da matemática e possibilita que a compreensão do mundo e das atividades exercidas nele tenha outro sentido e significado para quem aprende. A excessiva valorização do saber escolar prejudica as relações dos alunos com o saber matemático, impedindo que eles se reconheçam como responsáveis pela produção de saberes e parte relevante do processo de ensino-aprendizagem.

Representações e concepções dos sujeitos acerca do saber matemático e de si mesmos

As concepções e representações dos alunos jovens e adultos, os resultados oriundos de suas experimentações em meio aos problemas vivenciados no contexto escolar foram relevantes para a compreensão das práticas sociais. Os dados coletados foram organizados em duas categorias. A primeira trata das Concepções dos alunos sobre si mesmos (3) e a segunda aborda as Concepções sobre a matemática e sua aprendizagem (4).

Categoria (3): Concepções sobre si mesmos

A partir do questionário sobre a Matemática, foi possível analisar como os alunos compreendem o êxito e o fracasso nessa área. Quando questionados sobre a possibilidade de qualquer pessoa ter facilidade em matemática, a resposta mais frequente entre os alunos de ambas as escolas foi afirmativa, mas vinculada ao esforço e dedicação do próprio aluno. Em todas as questões sobre êxito ou fracasso em matemática, o tema esforço e dedicação esteve presente nas argumentações dos alunos.

Nas duas escolas ficou claro que os alunos acreditam que “ser bom em matemática” está relacionado à dedicação do aluno ou a uma facilidade com números e algoritmos. A concepção de que são os estudantes os únicos responsáveis por seu sucesso ou fracasso com o saber matemático reforça a responsabilidade da escola pelo aumento e legitimação das desigualdades sociais.

A maioria dos alunos tem a concepção de que fracassar em matemática condicionará sua colocação no mercado de trabalho: “já fracassei uma vez. Já larguei a escola, fui trabalhar. Agora preciso me dedicar pra conseguir ir bem. Ter um diploma. Se eu não conseguir fazer essas coisas aqui, resolver esses problemas aqui, eu não consigo um emprego” (EA5). A valorização excessiva da matemática escolar e a preocupação de não concluírem os estudos faz parte dos relatos dos alunos das duas escolas pesquisadas.

Em diferentes situações com os alunos jovens e adultos investigados, a questão da dificuldade em matemática esteve direcionada e relacionada ao sujeito que aprende. A partir dos questionários, grande parte dos alunos participantes da Escola A informaram não serem bons em matemática. A resposta de alguns alunos trazia razões diversas para não aprender, mas sempre relacionadas com a responsabilidade do próprio sujeito por sua aprendizagem. Justificativas como “sou dedicado, mas não entra na minha mente” (QA5) ou “mesmo me dedicando eu não consigo […] parece que minha cabeça não funciona” (QA12) demonstram que o aluno isenta a escola, o professor e todos os instrumentos que influenciam o processo de aprendizagem e reforça seu papel como o único sujeito capaz de mudar sua condição e relação com o saber matemático escolar.

As dificuldades em aprender matemática estão vinculadas, em grande parte, ao fato de os alunos acreditarem não ter “memória”, não ser “bom com números e cálculos”, “não ser esforçado o suficiente” etc. A caracterização da matemática escolar como uma ciência procedimental e sem relação com o mundo impossibilita o acesso desses jovens e adultos da EJA aos saberes escolares.

Categoria (4): Concepções sobre a matemática e sua aprendizagem

O primeiro fato relacionado às concepções dos alunos sobre a Matemática é a noção, na maioria dos casos analisados, de que o saber matemático se resume ao saber matemático escolar. Em diferentes situações de observação, contato direto com os alunos durante as entrevistas e acompanhamento das interações dos alunos nas oficinas de resolução de problemas, ficou evidente que muitos reconhecem como Matemática apenas aquela praticada no contexto escolar.

Que a instrumentalização desses alunos com ferramentas matemáticas escolares seja necessária é inegável, já que o alcance de generalização e compreensão do mundo a partir dos distintos saberes é uma das razões de acesso e permanência de todos à escola. Contudo, esse processo de generalização pode ocorrer de modo a relacionar saberes e valorizar experiências matemáticas que possam enriquecer a aprendizagem e tornar esse sistema mais consciente. Com relação às dificuldades em Matemática, durante as oficinas os alunos justificaram a falta de treino ou conhecimento das regras, como neste excerto da Oficina 1, na Escola A:

– G3A6: Professora, como a gente vai fazer assim, sem nunca ter feito nada parecido?

– Pesquisadora: A ideia é que em cada oficina vocês tenham mesmo problemas diversificados. Para que a gente possa discutir depois sobre as dificuldades, facilidades em uma ou outra questão.

– G3A6: É que daí fica difícil fazer assim, sem nunca ter feito, sem conhecer as regras. A gente tá acostumado a ver um modelo antes.

Tanto as dificuldades quanto as facilidades identificadas pelos alunos, em Matemática, estão vinculadas à ideia de uma matemática de memorização, repleta de regras e procedimentos, em que é possível ter êxito apenas com treinos e repetições.

Interações e conflitos nas aulas de matemática

Esse eixo de interesse surgiu da necessidade de compreender as interações entre os sujeitos nos momentos das aulas de matemática. Tais momentos, a partir da reflexão e análise dos dados e das contribuições da sociologia pragmática, puderam ser caracterizados como momentos de incerteza. Os dados analisados destacaram duas categorias. A primeira diz respeito à Negociação de saberes matemáticos (5), destacando como os sujeitos significam ou ressignificam seus saberes em situações conflituosas. A outra categoria de análise refere-se aos Conflitos (6) presentes em situações de aula, tanto dos sujeitos consigo mesmos quanto dos sujeitos com os saberes matemáticos e/ou entre os sujeitos e seus pares.

Categoria (5) Negociação de saberes matemáticos

Os momentos de aula evidenciaram diferentes situações de significação e ressignificação de saberes. As aulas observadas no início da investigação demonstraram que os alunos não reconheciam os saberes matemáticos praticados pelo professor como saberes que tinham sentido e significado para eles. No decorrer das oficinas notou-se que, quando os alunos se preocupam com a utilização de procedimentos antes tratados na escola, sem a real compreensão do problema, os erros são maiores. Dar significado aos saberes produzidos, a partir de experiências e práticas matemáticas diversificadas das utilizadas na escola, foi o caminho escolhido por esse grupo durante a resolução do Problema 1[4] da Oficina 3:

[…]

– G4B2: No gráfico tem de 83 e 2007. São quantos anos de diferença. 93, 2003, 2007. 24. E aumentou quanto as espécies?

– G4B5: Espécie é o tipo de animal? Como onça, tartaruga, cachorro?

– G4B2: Isso, são os animais em extinção. Faz aí na calculadora, 461 menos 239.

– G4B5: Mas vamos fazer menos pra quê?

– G4B2: Pra descobrir quanto aumentou daqui até aqui.

– G4B4: Dá 222.

– G4B2: Então, em 24 anos aumentou 222 espécies. Agora a gente tem de descobrir quanto mais vai aumentar.

– G4B5: Mas sempre vai aumentar o mesmo tanto? Não entendi.

– G4B2: Aqui tá mostrando que sim, olha. Mas acho que isso aqui é só uma ideia. Por que é difícil prever essas coisas, né? Hoje podem matar mais ou morrer mais bicho por causa da falta de água, do calor. Acho que fazem essas coisas mais pra controle, mas não tem como saber.

– G4B1: Que é isso. Tem um monte de gente que fica trabalhando com isso lá no [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis] Ibama. Acho que devem saber, sim. Senão, pra que tanta gente que trabalha pra isso?

– G4B2: Não sei. Mas, e se a gente dividir 222 por 24?

– G4B3: Mas por que você pensou em divisão?

– G4B2: Se em 24 anos tem 222 duas espécies, se a gente dividir descobre quantas têm em cada ano. Eu acho, não tenho muita certeza, mas acho que podemos fazer assim.

– G4B4: Dá 9,25.

– G4B3: Mas não pode dar número quebrado.

– G4B2: Faz esse número por 4, pra gente saber nos próximos quatro anos.

– G4B4: Dá 37.

– G4B2: Eu acho que pode ser quebrado porque aqui é uma aproximação. Mais ou menos isso por ano, porque às vezes um ano pode ser mais e outro, menos.

– G4B5: Então a resposta é 37?

– G4B2: Vai aumentar 37. Então fica 461 mais 37.

– G4B4: 498.

– G4B2: Eu posso escrever. Você não entendeu, J.?

– G4B5: Não, entendi. Sou um pouco mais devagar, mas vou escrever aqui pra tentar em casa de novo.

– G4B2: Vou colocar a resposta.

O papel do aluno G4B2 é essencial dentro do grupo nos momentos de tomada de decisão. Desde o início, o aluno demonstrou compreender o gráfico, e os procedimentos por ele adotados tinham sentido e significado para ele. Os questionamentos dos alunos G4B3 e G4B5 demonstram também o interesse pelo saber matemático ali mobilizado pelo G4B2. David e outros (2013) afirmam ser a matemática escolar uma prática que envolve diferentes matemáticas produzidas em contextos diversos, por isso reforçam a necessidade de dar sentido às atividades escolares a partir de situações que tenham significado ao aluno. Como argumentam os mesmos autores, tornar a prática matemática mais significativa aos sujeitos da escola não significa tornar a matemática escolar unicamente restrita aos saberes matemáticos cotidianos e, tampouco, estritamente acadêmica.

Categoria (6) Conflitos

A viabilidade de compartilhamento, negociação e significação de saberes, conforme Cabrita (2000), faz da aula de matemática um espaço de promoção de novas estratégias, de igualdade de oportunidades e de redução da exclusão social. Esta categoria, de fato, refere-se aos conflitos, disputas e incertezas presentes em situações de interação entre os sujeitos nas aulas de matemática investigadas.

As aulas de matemática analisadas despertaram situações de conflito e controvérsia e o modo como cada sujeito reage a isso fez parte do nosso interesse de análise, na tentativa de compreender as relações entre o sujeito e o saber. O aluno EB5, durante a entrevista ele revelou que suas dificuldades eram relacionadas a seu modo de ver a matemática: “é assim, professora. Eu venho pra escola, tento entender o que a professora passa e fazer o passo a passo, mas não tem jeito, não entra na cabeça. Parece que eu não nasci pra escola mesmo. Parece que o que entra na minha cabeça é só do meu jeito. E meu jeito não é esse aqui” (EB5). Questionado sobre como resolve esse conflito, o aluno diz que continua insistindo em copiar e seguir as regras da escola, “mas uma hora não dá. Sempre fico na minha, tento fazer tudo, mas dá vontade de desistir” (EB5). O relato desse aluno demonstra as injunções do contexto escolar, em que os alunos são obrigados a abrir mão de seus saberes para ter acesso a um saber escolar, mais valorizado. A tentativa em compreender a matemática praticada na escola e de “adequação” ao contexto escolar influenciam o modo como o aluno se vê na escola e como reage a ela.

O conflito entre os sujeitos e os saberes escolares e não escolares revelam distintas tomadas de decisão quando se trata de ter êxito em matemática. Durante a Oficina 1, os alunos do Grupo 5 da Escola A revelaram ser capazes de, utilizando ferramentas matemáticas não diretamente relacionadas aos procedimentos já trabalhados pelo professor, resolver o Problema 2[5]; no entanto, a insegurança pela utilização dessas novas ferramentas fez com que optassem pela utilização da fórmula da PA:

– G5A1: Esse exercício 2 parece mais fácil, vamos tentar.

– G5A2: Quer saber quantas passagens vendeu até julho. Como usar a fórmula aqui?

– G5A3: Olha, em janeiro tinha 33.000 passagens, em fevereiro 34.500 e em março 3.600.

– G5A1: Então a razão é quanto tá aumentando.

– G5A2: Nem sei o que é razão. Mas o que dá pra saber é que de março até julho vai aumentar mais quatro vezes 1.500. Então vai aumentar 6 mil passagens até julho.

– G5A4: Não entendi.

– G5A3: Então é só somar tudo com 6 mil. Soma 33 mil, 34.500, 3.600 e mais esses 6 mil.

– G5A1: Não. Não precisa somar todos os meses. Ela só quer o do mês de julho.

– G5A2: Então seria 3.600 mais 6 mil?

– G5A1: Isso. Fácil assim. 42 mil passagens. Dá pra fazer de cabeça.

– G5A4: Dá mesmo.

– G5A3: Então agora você entendeu? Duvido.

– G5A4: Tô copiando.

– G5A3: Vou tentar fazer com PA. Ela não vai aceitar de cabeça. Tem um exemplo aqui no caderno. Acho que assim a gente garante que tá certo.

O aluno G5A1 manifesta compreensão sobre o significado de razão de uma progressão aritmética e, além disso, consegue relacionar conceitos matemáticos escolares sobre PA com outros não diretamente relacionados a essa temática. Entretanto, ele é o único a reconhecer conceitos escolares no problema proposto, por isso o grupo utiliza recursos matemáticos distintos para resolver o problema. Embora o aluno G5A4 seja o único que expõe dúvidas sobre o método utilizado para a resolução, o aluno G5A3 acredita que a resolução entregue não seria válida se não utilizasse as fórmulas da PA. A generalização e a capacidade de utilização de diferentes recursos e ferramentas matemáticas numa mesma situação-problema poderiam enriquecer ainda mais o processo de ensino-aprendizagem e possibilitar aos sujeitos terem acesso efetivo ao saber matemático escolar. A situação acima descrita, muito embora tenha evidenciado que um dos alunos relaciona e estabelece significados aos distintos conceitos matemáticos, está envolvida por um cenário de controvérsias, em que os alunos se veem obrigados a utilizar a matemática escolar para terem seus saberes validados.

Considerações Finais

Os estudos realizados ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa revelaram questões importantes no que se refere à educação de jovens e adultos, à matemática e ao contexto escolar. Os dados coletados nas duas instituições paulistas revelaram ser a diplomação o principal motivo de retorno à escola, especialmente pela inserção ou recolocação no mercado de trabalho. Embora possamos concluir que o mercado de trabalho é predominante na justificativa de retorno à escola, é dever do Estado garantir o acesso ao saber escolar de qualidade. A ideia de que a EJA é uma oportunidade e não um direito ao acesso à educação impede que esses jovens e adultos das duas escolas pesquisadas percebam que o comprometimento da formação matemática de cada aluno está relacionado à estrutura escolar, a hierarquização dos saberes e a falta de discussão de um currículo mais flexível e efetivo.

Como afirma Trabal (2011), os momentos de disputa e crítica fazem parte da escola e, em particular, das aulas de matemática analisadas, uma vez que o ato pedagógico violenta o estudante quando pede que, durante a atividade científica, este renuncie a seu modo de conhecimento habitual, e impõe a ele um saber dito como válido no espaço escolar. Os conflitos, contradições e negociações presentes nas aulas de matemática modificam os modos do sujeito de se relacionar e de compreender o saber matemático escolar. Os sujeitos da EJA retornam à escola com saberes e experiências matemáticas produzidas em contextos de trabalho, de compras, de casa, entre tantos contextos em que cada um foi capaz de produzir e mobilizar saberes matemáticos e fazer uso deles em situações diárias da vida em sociedade.

Os alunos desta pesquisa manifestaram concepções muito difundidas em relação ao saber matemático escolar, como sendo um saber “para poucos”, “muito difícil”, “para pessoas inteligentes ou esforçadas” etc. Mas no geral, o que foi percebido com as oficinas foi um cenário contrário a tais concepções, já que os momentos de negociação de significados matemáticos e de validação de saberes revelaram a capacidade desses sujeitos em se relacionar com os diversos saberes, em muitos casos resistindo ou vencendo a resistência. O reconhecimento do valor social da matemática é perceptível e inegável; porém, o modo como este saber é difundido nas instituições escolares e, em particular, nas instituições investigadas têm contribuído para a ampliação da privação destes alunos aos saberes matemáticos escolares.

Como afirma Freire (1994, p. 192): “Não é possível atuar em favor da igualdade, do respeito aos direitos à voz, à participação, à reinvenção do mundo, num regime que negue a liberdade de trabalhar, de comer, de falar, de criticar, de ler, de discordar, de ir e vir, a liberdade de ser”. A valorização dos diferentes saberes em distintos contextos de produção de conhecimento pode proporcionar a estes alunos jovens e adultos novas experiências e um novo olhar sobre seu pertencimento à comunidade escolar.

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Notas

[1] Boltanski e Thévenot (1991) reconhecem quatro regimes de grandeza, que surgem da necessidade do sujeito em realçar equivalências entre diferentes ações: o de justiça; o de violência; o de rotina; e o de ágape. Para saber mais sobre as definições de regimes e ordens de grandezas e de cite, ver Boltanski e Thévenot (1991).

[2] Segundo Boltanski (1990), a sociologia pragmática refere-se aos atores em ação e em nenhum momento utiliza o termo “sujeito”. Ainda assim, como essa teoria se preocupa com os modos de agir de cada ator e não apenas com as atividades dentro de um grupo social, será utilizado no decorrer do texto o termo “sujeito social”, como proposto por Charlot (2000).

[3] Para as oficinas utilizaremos a letra G (grupo) seguida do número que designará o grupo em que o aluno está inserido, a letra referente à escola (A ou B) e mais o número do aluno neste grupo, ou seja, G1A2, G5B6 etc.

[4] Problema 1: O gráfico, obtido a partir de dados do Ministério do Meio Ambiente, mostra o crescimento do número de espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção. Se mantida, pelos próximos anos, a tendência de crescimento mostrada no gráfico, o número de espécies ameaçadas de extinção em 2011 será igual a:

  1. a) 465 b) 493 c) 498    d) 538    e) 699

[5] Problema 2: O número mensal de passagens de uma determinada empresa aérea aumentou no ano passado nas seguintes condições: em janeiro foram vendidas 33.000 passagens; em fevereiro, 34.500; em março, 36.000. Esse padrão de crescimento se manteve para os meses subsequentes. Quantas passagens foram vendidas por essa empresa em julho do ano passado?

  1. a) 38.000 b) 40.500 c) 41.000        d) 42.000        e) 48.000

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