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A ciência como sublimação: o desafio da objetividade na sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu, por Gabriel Peters

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Gabriel Peters (UFPE) 

O artigo investiga a resposta de Bourdieu a um problema clássico na epistemologia das ciências sociais: como é possível um conhecimento objetivo do mundo societário se os pontos de vista dos cientistas sociais são condicionados por seu pertencimento a esse mundo? O texto expõe sua tese de que a sociologia da sociologia, ao revelar os condicionantes sociais do pensamento sobre o social, possibilita uma margem de liberdade em relação a tais condicionantes. Longe de desembocar no relativismo pluriperspectivista, portanto, a sociologia reflexiva de Bourdieu é voltada à conquista da objetividade. O trabalho também mostra que sua noção de reflexividade se articula a uma concepção de objetividade científica como efeito “sublimado” da competição regrada entre agentes interessados que caracteriza o campo da ciência. Por fim, embora simpático à proposta de Bourdieu, o artigo é pontuado com considerações críticas sobre as tensões a ela inerentes: a) o reconhecimento do caráter “posicionado” das suas intervenções sociológicas versus a intenção de capturar o espaço inteiro dos pontos de vista sociocientíficos; b) a defesa de uma reflexividade sociológica calcada na dialética racional do campo científico versus a admissão de que as ciências sociais não possuem suficiente autonomia para levar essa dialética racional a cabo.

A façanha de Münchhausen

Conta o personagem mitômano Barão de Münchhausen que, certa vez, ele andava em seu cavalo quando, de repente, ambos começaram a afundar em solo pantanoso. Não tendo onde agarrar-se, o Barão estava prestes a se despedir desse mundo até que teve a brilhante ideia de se retirar do pântano, juntamente com seu cavalo, puxando-se pelos próprios cabelos. Em discussões de inspiração lukácsiana sobre a objetividade nas ciências sociais, Löwy (1991; 2000) recorreu engenhosamente a esta anedota para atacar a ideia de que o conhecimento objetivo sobre o mundo social poderia ser adquirido através de um mero esforço de controle consciente dos próprios preconceitos e “pré-noções” (Durkheim). A analogia proposta por Löwy sugere que tal injunção metodológica, segundo a qual o autocontrole psicológico seria suficiente para neutralizar os próprios vieses (cognitivos, valorativos, afetivos etc.) na caracterização científica do mundo societário, soa tão irrealista quando a façanha narrada pelo simpático mentiroso Münchhausen. 

(…) O presente texto explora a resposta de Pierre Bourdieu aos dilemas epistemológicos esquadrinhados por Löwy: se os pontos de vista sobre o mundo social são interessados, parciais e situados, essas propriedades não invalidam a própria pretensão a afirmar a verdade sobre esse mundo, incluindo-se a pretensão contida no enunciado de que “os pontos de vista sobre o mundo social são interessados, parciais e situados”? Existem tantos mundos sociais quantas forem as representações de mundo socialmente posicionadas? Como julgar a validade de pretensões distintas e frequentemente antagônicas ao conhecimento verdadeiro sobre o universo societário, considerando-se a aparente ausência de juízes que não sejam, eles próprios, partes interessadas na disputa pelo monopólio da representação legítima da realidade sócio-histórica?  

De Marx e Engels (1974) até epistemólogas feministas como Sandra Harding (1996) e Donna Haraway (1988), passando por Lukács (2003) e Mannheim (1936), o fato de que os “pontos de vista” sobre o mundo social são “vistas a partir de um ponto” (Bourdieu; Wacquant, 1992: 74) particular desse mesmo mundo tem sido enfatizado por diversas perspectivas. Debruçando-se sobre as condições de possibilidade de um saber genuíno acerca da vida societária, tais teorizações são obrigadas a confrontar o caráter social e historicamente posicionado do sujeito cognoscente nas ciências humanas:

  1. Quais são as principais influências posicionais sobre o sujeito cognoscente? Classe? Raça? Gênero? Sexualidade? Postos no campo acadêmico?
  2. Que mecanismos sociopsicológicos respondem pelos vínculos entre visões do mundo coletivo e posições particulares nesse mundo? Interesses conscientes ou inconscientes derivados da posição social? Esquemas cognitivos oriundos de experiências socializadoras?
  3. Qual é o status epistemológico de tais influências? Os interesses estratégicos e as “categorias de entendimento” que os cientistas sociais devem à sua posição e trajetória de socialização seriam invariavelmente obstáculos a um conhecimento fidedigno do seu objeto? Ou as visões socialmente fundadas de mundo envolvem uma distribuição desigual de possibilidades de cegueira e lucidez?
  4. Finalmente, que consequências podemos extrair do vínculo entre posição no social e visão do social para o projeto de retratar acuradamente a realidade sócio-histórica? A identificação de um ponto de vista socialmente fundado que seria dotado de horizontes epistemológicos vantajosos em relação a outros (a resposta da “standpoint epistemology” de Lukács a Harding)? A síntese “relacionista” ou “pluriperspectivista” de pontos de vista diversos possibilitada por uma intelligentsia socialmente “flutuante” (como em Mannheim)?

Vejamos como Bourdieu enfrenta estas questões, desembocando em uma concepção de objetividade calcada no controle reflexivo de vieses posicionais através da “auto-objetivação” sociológica.

Pontos de vista como vistas de pontos

Segundo Bourdieu, o condicionamento posicional dos modos de apreensão do social opera tanto na dimensão cognitiva quanto na dimensão volitiva da subjetividade (Bourdieu, 2001a, p.18). Em outras palavras, as disposições intelectuais moldadas por uma trajetória posicionada no mundo social são tanto da ordem do entendimento (e.g. esquemas de percepção, formas de classificação) quanto da vontade (e.g. interesses estratégicos, simpatias e antipatias, preferências e aversões). Bourdieu aponta que as mais variadas etapas da pesquisa sobre a realidade societal – escolha do tema, formulação de problemáticas, referencial conceitual, métodos e técnicas utilizados etc. – são infiltradas pelas disposições subjetivas de um habitus associado à socialização do pesquisador ao longo de coordenadas de classe, etnicidade, gênero, sexualidade e assim por diante. A ênfase bourdieusiana sobre o caráter infradiscursivo do habitus (1983, p.46) chama a atenção para o feitio difusamente vivido de tais propensões do intelecto, as quais, muitas vezes, mesmo entre os profissionais do saber discursivo, se impõem primeiramente sob a forma de estados de ânimo (simpatias e antipatias, atrações e repulsões) que apenas encontram suas justificações racional-discursivas a posteriori (2005, p.55-56).  

Oferecendo uma tipologia de tais condicionamentos, Bourdieu retraça-os a três categorias. Em primeiro lugar, os pressupostos associados à socialização no espaço social mais amplo, os quais incluem traços de classe, raça e gênero por exemplo (Bourdieu, 1989, p.138). (…) A segunda gama de pressupostos cognitivos destacada por Bourdieu refere-se àqueles que um pensador deve à sua participação em determinado campo de produção simbólica (por exemplo, filosófico ou artístico), os quais incluem tanto as crenças constitutivas da doxa própria àquele jogo quanto aquelas atadas à posição particular do pensador nas relações internas ao campo. Em qualquer momento histórico, um campo de produção intelectual constitui um sistema de posições não apenas diferentes, mas diferenciais, isto é, definidas umas com relação às outras (Bourdieu, 2003, p.119-126). Segundo uma associação entre posições objetivas e disposições subjetivas válida para o conjunto dos campos, as visões de autores diversos no seio do campo conectam-se às suas divisões internas, relacionadas à posse desigual do capital de autoridade e legitimidade simbólicas específico ao campo. Em outras palavras, defender tal ou qual perspectiva em um campo de produção cultural é simultaneamente buscar uma posição de poder naquele espaço. 

(…) Finalmente, Bourdieu devota muitas de suas páginas às propensões cognitivas derivadas da situação de skholè ou otium inerente ao ofício do intelectual: a liberdade frente a pressões urgentes do mundo, a qual possibilita uma postura contemplativa diante dele e, assim, a própria existência dos campos de produção erudita (Bourdieu, 2001a). Como quaisquer outras disposições subjetivas, a dedicação a empreitadas intelectuais pelo homo scholasticus depende da instauração de certos ambientes sociais – nesse caso, aqueles que tornam possível uma atitude de contemplação do real, devidamente insulada das pressões da necessidade material e das urgências da prática cotidiana. Quando inconscientes quanto às limitações epistemológicas oriundas dessa situação socialmente excepcional, intelectuais tendem, inadvertidamente, a projetar sua relação contemplativa com o mundo nos próprios agentes que estudam. A principal manifestação desse “erro escolástico”, endêmico na filosofia e nas ciências sociais, consiste nas caracterizações intelectualistas das motivações do agente humano – por exemplo, nas teorias que fazem a ação remontar a um cálculo explícito de alternativas de conduta ou à obediência consciente a normas coletivas (Bourdieu; Wacquant, 1992, p.123). 

Instrumentos sociológicos de auto-objetivação; ou galhos e cipós para sair do pântano

O reconhecimento desses condicionamentos socioestruturais que pesam sobre as visões de mundo de pesquisadores não leva Bourdieu ao relativismo epistemológico, isto é, a reduzir a validade dos produtos intelectuais, necessária e/ou completamente, às disposições implicadas nas localizações objetivas de seus produtores. O sociólogo francês também não abraça qualquer espécie de “standpoint epistemology” (Harding, 1996) segundo a qual certas posições estruturais seriam mais conducentes à lucidez sociológica do que outras. Em vez disso, sua proposta epistêmica retoma o compromisso com o controle metódico dos condicionamentos “libidinais” (lato sensu) e cognitivos que influenciam a atividade sociocientífica. No entanto, longe de reduzir tal controle à sinceridade de intenções ou ao mero esforço psicológico, Bourdieu propõe que ele advenha de uma objetivação sociológica das próprias condições sócio-históricas de produção da sociologia (Bourdieu, 1990, p.114).

Tal como Löwy, Bourdieu delineia um caminho de aquisição da objetividade científica que não se baseia na exortação psicologista ao autocontrole que inspirou, no primeiro, a divertida analogia münchhauseniana. A ideia mesma de que os pressupostos cognitivos que devemos à nossa trajetória de socialização, os quais estruturam impensadamente nossa percepção do mundo, poderiam ser acessados e controlados pela mera introspecção é lida por Bourdieu como sintoma magno do que ele denominou de visão escolástica: “a ilusão da onipotência do pensamento”, tentação contínua (para não dizer síndrome ocupacional) dos intelectuais (Bourdieu, 2001a, p.19). Em vez disso, ele propõe uma análise sociológica dos determinantes sócio-históricos que pesam sobre a própria sociologia, procedimento pensado como conducente a uma margem de liberdade possível em relação àqueles determinantes. Buscando distinguir sua modalidade de reflexividade sociológica da frouxa evocação intimista de vivências sociais, Bourdieu defendeu que as armadilhas da introspecção tinham de ser combatidas com todos os instrumentos de objetivação disponibilizados pela ciência social, tais como o levantamento estatístico, a investigação histórica e o registro etnográfico (op.cit., p.20).

Longe de cingir-se, por assim dizer, ao domínio exterior à pele do pesquisador, tal “objetivação do sujeito da objetivação” (Bourdieu, 1990, p.114) buscaria acessar, a partir de sua posição e trajetória no espaço societário, os seus pressupostos mais profundos de visão e intelecção do mundo social, tomados como traços desse mesmo mundo internalizados na sua subjetividade via socialização. A objetivação reflexiva de si que o sujeito cognoscente leva a cabo dirige-se, assim, ao conjunto das coações que moldam suas percepções mais ou menos espontâneas do mundo social, coações ao mesmo tempo objetivas (por exemplo, o grau de capital específico associado a uma posição no campo acadêmico) e subjetivas (p.ex., os esquemas cognitivos e interesses estratégicos atrelados à sua posição e tornados disposições). Foi com base nessas premissas epistemológicas que Bourdieu levou a cabo, sobretudo em Homo Academicus (2011), um estudo do próprio campo intelectual de forças e lutas em que ele estava imerso como um agente interessado.  

Segundo Bourdieu, tal objetivação dos pressupostos e limites, propensões e vieses, lacunas e parcialidades do seu pensamento ofereceria ao cientista social a chance de transcendê-los ao menos em certa medida, incrementando, assim, o grau de validade objetiva dos seus retratos de tal ou qual fenômeno societário. No que toca ao “problema de Münchhausen”, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera autoexploração ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia sublinhar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para escapar ao pântano de seus preconceitos sociocognitivos:

Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência (Bourdieu, 1988, p.5-6).

A crítica à sociologia “bourdivina”

Segundo vários de seus críticos, há uma tensão inerente aos apelos de Bourdieu em prol da reflexividade…

Artigo publicado em Sociologias (UFRGS), 19, 45, 2017, p. 314-347.  Clique aqui para ler o artigo inteiro. 

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