Da Série Verbetes
Blog do Sociofilo
Seção Cartografias da Crítica
Constelação Teoria Crítica Alemã: Origens, Frankfurt e Além
Rahel Jaeggi (Universidade Humboldt de Berlim)[1]
Tradução: André Magnelli & Alberto Luis Cordeiro de Farias
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A Relação de falta-relacional: Para a reconstrução de um motivo da filosofia social
A alienação é uma relação de falta-relacional [Beziehung der Beziehungslosigkeit].[2] Posto em uma formulação muito breve e muito abstrata, esse é o ponto de partida a partir do qual as reflexões se desenvolvem aqui. A alienação não indica, portanto, a ausência de uma relação, mas sim que ela mesma é uma relação, muito embora deficiente. Por outro lado, a superação da alienação não significa retornar a um ser-uno indiferenciado consigo mesmo e com o mundo, mas sim que ela é, novamente, uma relação [Beziehung]: uma relação de apropriação [Aneignungsverhältnis].
A ideia sistemática decisiva de minha reconstrução do motivo da alienação [na teoria social crítica] é tão somente a seguinte: a fim de tornar o conceito de alienação produtivo de novo, devemos lhe dar uma expressão formal. Em oposição a uma definição substancial do que se aliena nas relações de alienação, é o caráter dessa própria relação que deve ser investigado; o que o conceito de alienação nos permite diagnosticar são as diferentes formas de perturbação das relações de apropriação. Essas relações de apropriação devem ser entendidas aí como relações produtivas e como processos abertos, nos quais a apropriação sempre significa ambos: tanto a integração como a transformação do que é dado. A alienação é a distorção e a suspensão deste movimento de apropriação. É possível, então, fornecer uma análise consistente dos processos de alienação sem que se remeta a um “ponto arquimediano” além da alienação.
Com essa abordagem, eu irei argumentar então que é possível superar dois problemas com os quais a teoria da alienação frequentemente se confronta: por um lado, seu essencialismo e sua orientação perfeccionista em torno de uma representação da “essência”, da natureza do homem ou de um ideal concebido, de forma objetivista, de vida boa; por outro lado, o ideal de reconciliação – o ideal de uma unidade livre de tensão – que parece estar vinculado à crítica da alienação quando ela aparece como uma teoria da identidade ou uma teoria social. Quando se apresenta a alienação como sendo uma relação de apropriação perturbada ou inibida do mundo e do eu, tem-se por resultado a partir daí uma conexão esclarecedora entre liberdade e alienação. Na medida em que a liberdade pressupõe, nomeadamente, que se pode fazer o que se faz, e que as condições em que se faz são as suas próprias, a superação da alienação é uma pressuposição para a realização da liberdade.
A primeira parte desta investigação [que foi empreendida em meu livro Entfremdung, publicado em 2005] deve introduzir ao campo de problema que é marcado pelo conceito de alienação. [Aqui, no presente texto, eu abordo] as várias dimensões do conceito e do fenômeno da alienação – tal como a alienação se deixa desdobrar tanto na linguagem cotidiana como no tratamento filosófico do conceito. Isso é aprofundado [no capítulo 2 de meu livro] com a ajuda de uma consideração mais precisa dos pontos de partida teóricos da alienação e de como eles são alcançados tanto na teoria de Marx quanto na ontologia existencial de Heidegger. Nesse contexto, após revelado o potencial do conceito como um conceito fundamental de filosofia social, são discutidos [no capítulo 3 do mesmo livro] a sua estrutura, bem como a sua problemática. Finalmente, são esboçadas [no capítulo 4] as propostas de reconstrução tal como eu a desenvolvo ao longo [das partes II e III do mesmo livro].
“Um estranho no mundo que ele próprio fez”: o conceito e o fenômeno da alienação
O conceito de “alienação” refere-se a todo um conjunto de motivos interligados. Alienação significa indiferença e divisão interna, mas também impotência e falta-relacional, com respeito a si mesmo e a um mundo experimentado como indiferente e estranho. A alienação é a incapacidade de estabelecer uma relação com outros seres humanos, com as coisas, com as instituições sociais e, portanto, também – sendo a intuição fundamental do tema da alienação – a si mesmo. Um mundo alienado se apresenta aos indivíduos como sem sentido e sem significado, como rígido e empobrecido, como um mundo que não é “o seu”, ou seja, um mundo em que não se está “em casa” e sobre o qual não se tem influência. O sujeito alienado torna-se um estranho para si próprio; já não se experimenta como um “sujeito ativamente efetivo”, mas sim como um “objeto passivo” que está à mercê de forças que ele não conhece[3]. Pode-se falar de alienação “onde quer que os indivíduos não se reencontram [wiederfinden] em suas próprias ações” (HABERMAS, 1991)[4] ou onde quer que não possamos ser “Senhor sobre o Poder que nós mesmos somos” (como Heidegger poderia ter dito). O alienado, de acordo com o jovem Alasdair MacIntyre, é “um estranho no mundo que ele próprio fez”.[5]
O fenômeno da alienação
Mesmo em nossos primeiros encontros com o tema, podemos ver que a alienação é um conceito com “bordas borradas”. As “semelhanças familiares” e as sobreposições com outros conceitos como a “reificação”, a “inautenticidade” e a “anomia” dizem tanto sobre o campo de aplicação do conceito quanto sobre o emaranhamento recíproco entre os vários significados que ele assumiu anteriormente na linguagem cotidiana e na filosófica. Se o assim chamado “conteúdo experiencial” do conceito se alimenta das experiências históricas e sociais que encontraram expressão nele[6], também é o caso de que, como conceito filosófico, a alienação influenciou as interpretações do eu e do mundo de indivíduos e movimentos sociais. Nestas relações misturadas “impuras” é construído um campo vasto de fenómenos que se deixam associar ao conceito de alienação.[7]
1. Em conformidade com o uso linguístico, é “alienado” de si mesmo aquele que não se comporta “de modo próprio” [eigentlich], mas sim “artificialmente” [künstlich] e “de modo não genuíno” [unecht], ou aquele que é guiado por desejos que, em um aspecto determinado, não são “os seus próprios” [die eigenen], ou não são experimentados enquanto tais. Já de acordo com o diagnóstico crítico de Rousseau, trata-se então de alguém que vive “na opinião dos outros” em vez de “em si mesmo”. De acordo com isso, os papéis comportamentais e o conformismo social contam, por exemplo, como alienados ou inautênticos; mas pertencem também ao campo dos diagnósticos da alienação os discursos de crítica ao consumismo que versam sobre as “falsas necessidades”.
2. “Alienadas” são as relações que não existem por sua própria causa, assim como as atividades com as quais não se pode “identificar”. O trabalhador que pensa apenas em parar o tempo, o acadêmico que publica unicamente com vistas ao citation index, o médico que não pode esquecer por um momento da tabela de valores – todos eles estão alienados do que fazem. E alguém que cultiva uma amizade apenas porque serve a seus próprios interesses tem uma relação alienada com o seu parceiro.
3. O discurso da alienação caracteriza, além disso, a desvinculação [Herauslösung] dos enlaçamentos sociais. Nesse sentido, alguém pode se “alienar” do parceiro de vida ou da família, do local de origem ou de uma comunidade ou de um meio cultural. Mais especificamente, falamos de alienação quando alguém não pode se identificar – conceber como “seu” – as instituições sociais ou políticas nas quais ele vive. Isolamento social ou privatização individualista também podem ser considerados como sintomas de alienação. Ligeiramente romantizada, a alienação é por vezes entendida como um sinônimo de “desenraizamento” [Entwurzelung] e “apatricidade” [Heimatlosigkeit], que, no repertório dos críticos culturais conservadores, remontam à confusão ou ao anonimato das relações de vida modernas, ou à “artificialidade” de sua mediação midiática.
4. A despersonalização [Entpersönlichung] e a reificação [Versachlichung] das relações inter-humanas e das relações com o mundo, contam como alienadas na medida em que essas relações não são mais imediatas, mas sim mediadas (por exemplo, através do dinheiro), na medida em que não são “concretas”, mas “abstratas”, na medida em que não são inalienáveis [unveräußerlich], mas intercambiáveis. A mercantilização ou “comodificação” de áreas ou bens que antes não tinham a forma de mercado é, a este respeito, um exemplo do fenômeno da alienação. A afirmação de que a sociedade burguesa, “dominada pelo equivalente” (como Adorno poderia ter dito), destrói a singularidade das coisas e dos seres humanos, sua particularidade e sua insubstituibilidade, é um diagnóstico de crítica da alienação que se encontra mesmo além dos limites do marxismo.
5. Alienação significa – um tema dominante já no tempo de Goethe – a perda do “homem total” [ganzen Menschen], que, através da divisão do trabalho e da especialização, conduz à fragmentação e ao estreitamento das atividades e, a partir de então, atrofia o potencial humano e as suas possibilidades de expressão. Nada mais do que uma “engrenagem da máquina”, é o trabalhador alienado desindividualizado [entindividualisiert], mera parte funcional no interior de eventos que não são para ele nem administráveis nem controláveis.
6. Como “alienadas” se deixam descrever finalmente as relações em que as instituições se apresentam como onipotentes ou como restrições “sistêmicas” sem qualquer margem de manobra para a ação: a alienação ou a reificação [Verdinglichung] significam então a ereção de uma autoindependência das relações [Verselbständigung von Verhältnissen] contra aqueles mesmos que as constituíram. O “casamento sem vida” [tote Ehe] é, nesse sentido, tanto um fenômeno da alienação quanto o estado de certos conselhos administrativos autônomos [Selbstverwaltungsgremien] democráticos; [o mesmo vale para] a perda de margem de manobra da ação contrária às condições econômicas de conjunto, bem como [para] a “gaiola de ferro” da burocracia do Estado de bem-estar.
7. Mas o “absurdo” também pode ser contado como um membro da família da alienação. As figuras literárias de Franz Kafka, de Samuel Beckett ou de Albert Camus são apenas os representantes mais proeminentes de experiências da mais completa desconexão e perda de sentido.
Teoria(s) da alienação – Crise na consciência do tempo
O que é, então, alienação? “Parece que sempre que ele sente que algo não é como deveria, ele o caracteriza em termos de alienação”.[8] Esta observação de Richard Schacht sobre Erich Fromm parece uma descrição adequada de como o conceito é freqüentemente usado (e não só por Fromm). No entanto, tão variados como os fenômenos acima mencionados, eles fornecem um esboço inicial do conceito de alienação. Uma relação alienada é uma relação deficiente que se tem consigo mesmo, com o mundo e com os outros. Indiferença, instrumentalização, reificação, absurdo, artificialidade, isolamento, falta de sentido, impotência – são diferentes caracterizações que resultam dessas relações e figuram tais déficits. Uma característica distintiva do conceito de alienação é que ele se refere não apenas à ausência de liberdade [Unfreiheit] e à impotência, mas também a um “empobrecimento” característico da relação com o eu e com o mundo (Esse é o modo pelo qual devemos entender o duplo significado da fórmula de Marx da alienação como uma “desrealização dupla” [doppelter Entwirklichung] do mundo e do ser humano: tornando-se irreal, o homem não se experimenta como “efetivo”; tornando-se irreal, o mundo é sem significado e indiferente). É a complexidade dessas inter-relações que fez da alienação o conceito-chave de um diagnóstico de crise da modernidade e um dos conceitos fundamentais da filosofia social.
Sendo a expressão de uma “crise na consciência do tempo” (Hegel), a discussão moderna sobre a alienação se estende desde Rousseau e Schiller, passando por Hegel, até Kierkegaard e Marx. Elevada à “doença da civilização par excellence”[9], a alienação se tornou, a partir do século XVIII em diante, uma cifra usada para notificar a “incerteza, fragmentação e divisão interna” nas relações dos seres humanos consigo mesmos e com o mundo que acompanhava o progresso da industrialização. Foi esse diagnóstico que Marx apreendeu em sua teoria de alienação e pôs em prática na sua crítica ao capitalismo. Se a “perda determinada dos homens modernos”[10], oriunda de Kierkegaard, molda a questão da filosofia existencialista do ser-si e perder-se [Selbstsein und Selbstverlust], então as experiências de indiferença e de estranheza radical [radikaler Fremdheit], descritas aqui, aparecem como nada menos do que uma distorção ontologicamente situada do mundo, da relação humana com o mundo e da relação do homem consigo mesmo – o que, apesar de todas as divergências do diagnóstico marxista, também tem algo em comum com ele. O diagnóstico da alienação (em sua forma moderna) – por exemplo, liberdade e autodeterminação – está sempre abarcado aí, bem como a sua redenção perdida. Entendida dessa maneira, a alienação não é apenas um problema da Modernidade, mas também um problema moderno.
Breve história da teoria da alienação
Pode-se dar uma história (muito) curta da teoria moderna da alienação, em uma de suas versões, da seguinte maneira:
1. Não o conceito, mas sim a coisa, encontra-se descrita nos escritos de Rousseau, que contêm todas as idéias-chave das quais o discurso da alienação – tomado em seu sentido filosófico-social) – é composto até hoje.[11] Rousseau começa seu “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens” (1755) com uma imagem impressionante:
Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do que a um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível[12].
A desfiguração de que Rousseau fala aqui é a deformação dos seres humanos pela sociedade: com a sua natureza dividida, alienada de suas próprias necessidades, sujeita aos ditames conformistas da sociedade, no seu desejo de reconhecimento [Geltungsdrang] e sua vaidade [Eitelkeit] dependente das opiniões dos outros, o homem social é uma pessoa artificial e desfigurada. A dependência mútua dos seres humanos civilizados, que, através do contato social, produz necessidades sem limites, bem como a orientação em função dos outros, leva simultaneamente , de acordo com Rousseau, à dominação e à perda de liberdade [Unfreiheit], à perda de autenticidade e à (auto-) alienação – em outras palavras, ela leva a uma condição posta diretamente contra a autonomia e autenticidade do estado da natureza, concebida como condição de autarquia.
Há assim duas ideias aparentemente opostas que tornaram o pensamento de Rousseau influente como uma teoria da alienação: por um lado, o desenvolvimento do ideal moderno de autenticidade como um acordo não perturbado [ungestörter Übereinstimmung] com “si” e com a própria “natureza”; e, por outro lado, a idéia da liberdade social, conforme expressa na formulação de Rousseau da principal tarefa do Contrato Social. Se, no Segundo Discurso, Rousseau descreve vividamente o caráter alienado do que são, neste contexto, os efeitos exclusivamente negativos da socialização, ele também estabelece, no Contrato Social, o ideal normativo de uma forma de socialização não alienada no mundo.
Sem querer negar as tensões internas ao trabalho de Rousseau, a conexão entre os dois aspectos pode ser explicada assim: o fosso entre o ser-si autêntico [authentischem Selbstsein] e a sociedade, que Rousseau articulou tão eloqüentemente, dá origem, de acordo com seus próprios pressupostos, a uma aporia que pode ser resolvida apenas estabelecendo-se uma condição em que os indivíduos vivam dentro das instituições sociais que podem experimentar como suas. Por um lado, o humano alienado descrito por Rousseau perde-se na medida em que estabelece relações com os outros: o humano natural “vive dentro de si mesmo; o homem sociável sempre fora de si mesmo”[13]. Por outro lado, o ser humano só pode recuperar-se através da sociedade. Uma vez que a restauração da autarquia do estado da natureza rousseauniano – e com ela uma liberdade que exige independência e desapego dos outros – vem a um “preço muito alto”[14] (o preço de perder as qualidades especificamente humanas, tais como a razão e a reflexividade), então a solução para o problema da alienação não pode residir na dissolução dos laços sociais, mas apenas na sua transformação. A dependência mútua dos indivíduos socializados, experimentados como alienantes, deve ser reconfigurada de acordo com a ideia, estabelecida no Contrato Social, de uma associação na qual cada indivíduo aliena [veräußert] todos os seus direitos à sociedade e assim se torna “tão livre como antes”. O que antes era heteronomia alienante torna-se sujeição à “própria lei”.
O pensamento de Rousseau, então, levou seus seguidores em duas direções. Por um lado, Rousseau (e especialmente o “rousseaunismo”) representa a forma continuamente recorrente de crítica à alienação que se afasta do “universal” e, abraçando um ideal de natureza infalível ou auto-suficiência primitiva, considera a socialidade e as instituições sociais como inerentemente alienadas. Por outro lado, ele é a inspiração não só para a idéia kantiana de autonomia [Selbstherrschaft], mas também para a concepção de Hegel acerca da “socialidade da liberdade” [Sozialität der Freiheit].
2. Coube a Hegel, porém, conceituar a notória ideia de “auto-realização (filosófica) no universal”. Embora para ele, também, a modernidade seja caracterizada pela alienação – a fragmentação da consciência moderna, a separação entre “particular” e “universal” nos relacionamentos dentro de uma sociedade civil ameaçada pela desintegração -, ele toma como o núcleo do problema não a perda de si do indivíduo através da sociedade, mas sim a divisão entre indivíduo e sociedade. Para Hegel, a alienação (ou divisão interna) é uma eticidade deficiente [defizitäre Sittlichkeit], a “perda da universalidade ética” [sittlicher Allgemeinheit]. Quando a “eticidade” não deve significar a integração ética substantiva em tipos comunitários pré-modernos (a eticidade integrada eticamente [die etisch integrierte Sittlichkeit] das polis pré-modernas), mas tão somente o “direito dos indivíduos à sua particularidade”, então o anti-atomismo de Hegel baseia-se na ideia de que os indivíduos sempre se encontram já em relações [in Beziehungen][15], cuja “realização” [Realisierung] (em vários sentidos) é um pressuposto de sua liberdade.
Onde Hegel aborda o conjunto de problemas delineados por Rousseau, ele transforma o ponto de partida deste último ao conceber a liberdade como eticidade [Sittlichkeit] e a eticidade como liberdade: nos tornamos livres nas e através das instituições superindividuais [überindividuellen Institutionen] que primeiro permitem que nos realizemos como indivíduos. O ideal (ainda atomístico) de autenticidade de Rousseau é substituído, por meio do conceito, por uma auto-realização que se realiza, primeiramente, como uma identificação com as instituições da vida ética. Embora, de um lado, haja o esforço teórico de Hegel em superar o ideal de autarquia da liberdade [Autarkieideals von Freiheit], de outro lado, ele pretende incorporar a ideia (kantiana) de autonomia [Selbstherrschaft]: ele busca as condições para a recuperação das instituições superindividuais. Tematizado sob o nome de “Bildung”, o processo através do qual os indivíduos trabalham para sair das relações de dependência para poderem construir – como parte de seus próprios pressupostos – suas próprias relações sociais.[16]
3. As duas vertentes “pós-hegelianas” da teoria da alienação se encontram em Kierkegaard e Marx, com um projeto de antropologização de Hegel.[17] Com certeza, a orientação virulenta do final do século XIX em direção à “existência efetiva” e ao “humano efetivo e ativo” os conduz em diferentes direções: a direção de Marx em relação à economia contrasta com a preocupação de Kierkegaard com as dimensões éticas da existência humana. A atenção que a teoria da alienação dedica aos problemas da divisão interna, da indiferença e da perda da referência com o eu e o mundo leva ambos ao motivo da apropriação prática. Assim como Kierkegaard entende o “tornar-se-si” [Selbstwerdung] em termos de apropriar-se de suas próprias ações e de sua própria história – como um processo de “tomar-se prático”, e, por isso, como uma apreensão ativa de conjuntos estranhos -, assim também, para Marx, a ideia de uma apropriação produtiva do mundo e de si mesmo atua como o contra-modelo da alienação.
O padrão referencial ético-eticista [sittlich-ethische Zielbestimmung] de Kierkegaard consiste em se tornar um “humano singular”, um “singular singularizado” [vereinzelter Einzelner] contra a esfera pública conformista que tende a existir na sociedade burguesa. A abordagem de Marx caracteriza-se pela compreensão da apropriação da própria essência humana em termos de uma apropriação do “ser-genérico” [Gattungswesen] (onde o “ser-genérico”, conceito de Feuerbach, pode ser entendido como uma versão naturalizada da visão hegeliana da eticidade). Assim, tanto os pontos iniciais como os finais da crítica existencialista da alienação divergem principalmente daqueles da “linha-Hegel-Marx”, na medida em que a alienação é entendida, no último caso, como alienação do mundo social, enquanto que, no primeiro caso, a condição de estar imerso em um mundo público é considerada como fonte de alienação, entendida como a perda de autenticidade do sujeito em face dele como “nivelamento” (Kierkegaard) ou como “Reino do homem” [Herrschaft des Man] (Heidegger). No entanto, existem múltiplos pontos de sobreposição entre essas duas vertentes da teoria da alienação (e não apenas em relação à sua recepção histórica): o diagnóstico de divisão interna de Hegel enfoca o fato de que os indivíduos não poderem se reencontrar nas instituições sociais e políticas; a análise de Marx da alienação nos Manuscritos de 1844 argumenta que, no trabalho alienado, somos incapazes de apropriar-nos da nossa própria atividade, seus produtos e as condições da produção comunitária; a concepção de alienação de inspiração existencialista aponta para os obstáculos estruturais à capacidade dos indivíduos de entenderem o mundo como seu próprio e de se entenderem como sujeitos que moldam esse mundo.
4. No século XX, a discussão sobre a alienação (e, portanto, sobre o legado filosófico-social do pensamento de Marx) desempenhou um papel proeminente em várias vertentes do marxismo ocidental. Isso criou a possibilidade de uma dimensão normativa da crítica social que fosse de fundamental importância para o desenvolvimento de uma teoria crítica do capitalismo avançado. Já na década de 1920, sem conhecer o relato da alienação dos Manuscritos de 1844[18], Georg Lukács ampliou a análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria em uma teoria de alienação ou reificação, em seu conhecido ensaio “Reificação e a Consciência do Proletariado”.[19] Aqui, com sua tese central da “universalidade da forma-mercadoria” como característica distintiva da sociedade moderna, a teoria da reificação tornou-se uma teoria da sociedade capitalista moderna em todas as suas manifestações. A influência da teoria de racionalização de Max Weber e o diagnóstico da reificação [Versachlichung] de Georg Simmel levaram Lukács a uma visão ligeiramente diferente da de Marx, que considerava salientar os fenômenos de indiferença, objetivação, quantificação e abstração que, com a disseminação da economia de mercado capitalista, caracterizam todas as relações e as formas de expressão da sociedade burguesa. A imagem da gaiola de ferro de Weber, na qual os humanos estão presos por uma sociedade capitalista burocratizada; a descrição de Simmel da “tragédia da cultura”, na qual os produtos da liberdade humana assumem uma existência independente como algo objetivo sobre e contra o ser humano; sua análise de como, com a propagação da economia monetária, a liberdade se transformou em perda de significado – todas elas capturaram frutiferamente os fenômenos que Lukács viu à época como “no ar”. A interseção de temas marxistas e existencialistas foi uma característica distintiva do pensamento de Lukács[20], e é fácil ver que essa combinação teórica foi crucial para o desenvolvimento da Teoria Crítica, e que até hoje permanece crucial para o conceito de alienação em suas várias formas.[21]
Referências bibliográficas
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Notas
[1] O presente texto é uma tradução do cap.1. do livro: JAEGGI, Rahel. Entfremdung. Zur Aktualität eines sozialphilosophischen Problems. Berlin: Suhrkamp, 2016 (1a edição 2005). Agradecemos fortemente à Rahel Jaeggi pela autorização da publicação. O texto foi vertido ao português primeiramente, com competência, a partir da tradução inglesa (Alienation. New York: Columbia University Press, 2014) por Alberto Luis Cordeiro de Farias, tendo em vista a realização de uma ulterior revisão feita por André Magnelli com o cotejo do original alemão. Contudo, ao longo da revisão, muitos foram os problemas com a tradução inglesa, a tal ponto que a revisão abandonou o texto em inglês e deteve-se inteiramente no original, podendo ser vista enfim como uma tradução direta do alemão.
[2] O tradutor para a edição em inglês verteu como “relation of relationlessness”. Para acompanhar o sentido da expressão em alemão, joga claramente com os sufixos “ness” e “less”, no primeiro caso para acentuar a ideia de relação como um estado, uma qualidade no processo de alienação; e, no segundo caso, para acentuar uma falta. Na ausência de cognato para o português, optamos por traduzir como “relação de falta-relacional” a fim de mantermos os sentidos fundamentais do conceito pela autora: o de uma relação incompleta, em que falta, por assim dizer, a própria “relacionalidade” da relação.
[3] ISRAEL, Joachim; MAASS, Hans-Joachim. Der Begriff Entfremdung: Zur Verdinglichung des Menschen in der bürokratischen Gesellschaft. Reinbek: Rowohlt, 1985.
[4] HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik, Suhrkamp, Frankfurt am Main 1991, p.48.
[5] MacINTYRE, Alasdair. Marxism: An Interpretation. London: SCM, 1953, 23.
[6] Eu pego esta expressão [“conteúdo experiencial”] de Oskar Negt e Alexander Kluge. Ele se refere a conceitos que tornam as experiências possíveis e que, por sua vez, dão vida àqueles mesmos conceitos. Cf. NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. Öffentlichkeit und Erfahrung. Frankfurt: Suhrkamp, 1972.
[7] Como Raymond Geuss diz, todos os conceitos filosóficos interessantes são “impuros”: GEUSS, Raymond. Glück und Politik: Potsdamer Vorlesungen. Berlin: Berliner Wissenschafts-Verlag, 2004, p. 56.
[8] SCHACHT, Richard. Alienation. Garden City, NY: Doubleday, 1970. p. 116.
[9] Cf. NICOLAUS, Helmut. Hegels Theorie der Entfremdung. Heidelberg: Manutius, 1995. p. 27.
[10] THEUNISSEN, Michael. Selbstverwirklichung und Allgemeinheit : Zur Kritik des gegenwartigen Bewusstseins. Berlin: De Gruyter, 1981.
[11] Não existe qualquer discordância a este respeito entre os intérpretes de Rousseau. Assim, Hans Barth descreve Rousseau como um teórico da alienação avant la lettre (BARTH, Hans. Wahrheit und Ideologie . Frankfurt: Suhrkamp, 1974. p. 105). E, de acordo com Bronislaw Baczko: “O termo hegeliano-marxista [alienação] corresponde precisamente à condição para a qual Rousseau não tem qualquer nome, mas que ele constantemente descreveu.” (BACZKO, Bronislaw. Rousseau: Einsamkeit und Gemeinschaft . Vienna: Europa, 1970. p. 27).
[12] ROUSSEAU, Jean-Jacques. The Discourses and Other Early Political Writings. Trans. Victor Gourevitch. New York: Cambridge University Press, 1997. p. 124.
[13] Ibid., 187.
[14] Frederick Neuhouser traz-nos, de modo deveras decisivo, em sua interpretação de Rousseau. NEUHOUSER, Frederick. Foundations of Hegel’s Social Theory: Actualizing Freedom. Cambridge: Harvard University Press, 2000. p. 55–81.
[15] Para uma discussão do atomismo em filosofia social, ver TAYLOR, Charles. Human Agency and Language: Philosophical Papers 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 211–229.
[16] Estou falando aqui do tratamento hegeliano da alienação enquanto uma problemática de diagnóstico do tempo. Seu conceito de alienação, por outro lado, exibe a seguinte estrutura filosófica, aparece igualmente em Marx: a alienação como autoalienação do Espírito, que é incapaz de reconhecer seus próprios produtos enquanto tais. Todavia, o conceito não é necessariamente – neste nível – concebido de modo pejorativo ou ainda normativo. Ver Nicolaus, Hegels Theorie der Entfremdung, que analisa as várias dimensões da teoria da alienação de Hegel.
[17] LÖWITH, Karl. From Hegel to Nietzsche. New York: Anchor, 1967. p. 135–39.
[18] O Manuscrito de 1844 apareceu primeiro no Marx-Engels-Gesamtausgabe em 1932 e foi bem recebido imediatamente, com entusiasmo, por Herbert Marcuse, que os viu como revelando enfim as fundações filosóficas da crítica da economia política e da teoria da revolução de Marx.
[19] LUKÁCS, Georg. History and Class Consciousness : Studies in Marxist Dialectics. London: Merlin, 1971.
[20] O próprio Lukács realizou comentários a este respeito em 1967: “Para perceber o impacto do livro neste tempo, e também a sua relevância hoje, nós devemos considerar um problema que ultrapassa em sua importância todas as questões de detalhe. É a questão da alienação, que, pela primeira vez desde Marx, é tratada como central para a crítica revolucionária do capitalismo (…) É claro, o problema estava no ar naquele tempo.” (LUKÁCS, Georg. History and Class Consciousness : Studies in Marxist Dialectics. London: Merlin, 1971, p. xxii). Ele assinala de modo explícito a próxima conexão entre sua visão e a discussão existencialista da alienação ao mencionar aqui tanto o aparecimento de Ser e Tempo (1927) e a discussão francesa do pós-guerra, quanto também ao notar que “a alienação do home é um problema crucial da era em que nós vivemos e é reconhecida como tal tanto pelos pensadores burgueses quanto pelos proletários, por comentadores tanto de direita quanto de esquerda” (ibid., p. xxii)
[21] É lógico que a tentativa em grande amplitude de Habermas para refundar a teoria crítica e reformulá-la usando o paradigma da ação comunicativa leva a uma reconstrução da teoria da reificação: assim, a tese da colonização do mundo da vida transforma uma das intuições centrais da teoria crítica desde Marx.
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