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Ser ou não ser afetado, por Frédéric Vandenberghe

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Debate sobre a virada afetiva

Ser ou não ser afetado

Frédéric Vandenberghe (IESP-UERJ)

Tradução Alberto Luis Cordeiro de Farias

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Juntamente com meu amigo e colega Diogo Corrêa, recentemente ministrei uma disciplina na pós-graduação do IESP-UERJ sobre as Viradas nas Ciências Humanas[1]. Reuni cerca de cinquenta viradas que ocorreram desde o anúncio bombástico de Richard Rorty de uma virada linguística em 1969, um apelo quase positivista a seus colegas na tradição analítica para transformar a filosofia em uma ciência rigorosa que utiliza o instrumentário da linguística para cassar o não-senso. A fórmula para fazer uma virada bem sucedida é bem conhecida: um livro editado com um longo ensaio programático, seguido de alguns capítulos que ilustram as diretrizes programáticas, seguido de uma promoção implacável da perspectiva sustentada em edições especiais de periódicos acadêmicos, um simpósio internacional e, finalmente, para coroar a coisa toda, um Manual de X. Enquanto a promoção de um paradigma (no sentido de Merton), tal como a sociologia analítica, a sociologia cultural, a sociologia moral, etc., pretende consolidar várias perspectivas em uma teoria geral de médio alcance, a propagação de uma virada não quer retardar a reflexão, mas acelerá-la. A lógica das “viradas, reviravoltas e cambalhotas” é a da subversão contínua, mais próxima do espírito das revoluções artísticas do que das científicas.

Começamos nosso curso com a mãe de todas as viradas: a virada linguística. Ela vem em três variantes: uma virada alemã (com Humboldt, Heidegger e Gadamer), uma francesa (com Saussure, Mauss e Lévi-Strauss) e uma analítica (com Frege e Wittgenstein). Juntamente com a linguística, as viradas culturais e interpretativas formam um único “bloco histórico”, mas bastante diversificado, que coloca em primeiro plano a abertura do mundo que as formas simbólicas permitem: as formas simbólicas constituem o mundo como dotado de sentido e estruturam as práticas sociais (percepção,  ação e sentimentos) que produzem ou reproduzem a sociedade. A constituição desta formação cultural é crucial para entender a seqüência de viradas que daí se segue. De fato, enquanto cada uma das sucessivas viradas radicalizará a virada linguística, levando aos excessos da desconstrução na filosofia, do construtivismo social nas ciências sociais e de uma série de pós-ismos (pós-modernismo, pós-estruturalismo, pós-colonialismo) nas humanidades, também reagirão contra a própria virada linguística e dela se afastarão progressivamente, tentando atingir as profundidades ancestrais de uma existência pré-humana.

Deslocando a atenção das “estruturas culturais”, as viradas praxeológicas inspiradas por Wittgenstein e Dewey, Merleau-Ponty e Garfinkel, Bourdieu e Giddens, se concentrarão em uma série de práticas anônimas, infra-discursivas, rotineiras, competentes, incorporadas e situadas que produzem e/ou reproduzem o mundo social. Ao ampliar os contextos locais, elas vão para a micro-escala e analisam os elementos (objetos, sujeitos, actantes) que configuram a situação de ação e permitem com que os atores realizem suas ações sem pensar demais.

Radicalizando a virada praxeológica, a virada afetiva reage ao pós-estruturalismo, ao construtivismo e aos estudos culturais rejeitando todas as formas de representação. Passando do molar ao nível molecular, ela se concentra em processos vitais que subjazem a consciência e que são, ao mesmo tempo, sub-individuais, íntimos e transpessoais. No nível molecular dos afetos e das sensações, encontra-se o pulsar da vida. A vida é animada tanto quanto a matéria. Ela flui, vibra e pulula. É contagiante. Move-se de um organismo para outro; ao afetá-los, faz com que se movam – como cardumes de peixes, multidões, modas, frenesis e pânicos.

A virada afetiva é uma abordagem pós-pós-estruturalista da vida social, animal e orgânica que remete à belle époque – e, em última análise, a Spinoza. Para reatualizar a Lebensphilosophie, ela se baseia em Darwin e em Nietzsche. Deleuze vibra continuamente como pano de fundo. A prática de resgatar figuras perdidas do passado faz com que a teoria do afeto, ao mesmo tempo, esteja na moda e seja atemporal. Às vezes, a teoria dos sistemas e as ciências cognitivas, a psicanálise, o pós-feminismo e a teoria queer, bem como a parapsicologia, são misturadas com com Bergson, James, Tarde, Simmel, Whitehead, Simondon e Latour. O resultado desse amálgama varia, do sublime ao “pato-lógico”. Enquanto os textos do The Affect Theory Reader, editado por Seigworth e Gregg (2010), sensibilizaram-me profundamente, os textos de The Affective Turn, editado por Patricia Ticineto Clough (2007), não me produziram grande interesse. No melhor dos casos, os textos que nos abrem para o mundo dos afetos nos fazem entender que é preciso ser afetado adequadamente para que se tenha acesso ao universo de afetos. De fato, na medida em que os afetos nos afetam, eles intensificam a sensação – é excitante ser excitado, é emocionante ser emocionado por ressonâncias afetivas que circulam. No pior dos casos, os textos lhe atingem como uma verborragia estilosa, politicamente correta, pretensiosa e pseudocientífica. Paradoxalmente, enquanto os textos invocam afetos, eles são, eles próprios, sem sentimento. Talvez seja melhor, para começar, ficarmos com os protagonistas do movimento afetivo: Bryan Massumi, Manuel De Landa, Teresa Brennan, Nigel Thrift e Lisa Blackmann. Em todo caso, dois textos são leituras fundamentais: The Autonomy of Affect de Bryan Massumi (2002) e Shame in the Cybernetic Fold: Reading Silvan Tomkins de Eve Sedgwick e Adam Frank (1995).

Para a sociologia das emoções mainstream que segue as pistas de Erving Goffman, Norbert Elias, Randall Collins ou Rom Harré, a teoria dos afetos é, num primeiro momento, bastante desafiador[2]. Por três razões. Em primeiro lugar, o ímpeto da teoria dos afetos vem da filosofia. Não obstante a sua invocação de dados puros, ela não é de modo algum empírica. Embora ela tenha indubitavelmente implicações para a sociologia, a teoria dos afetos não envolve necessariamente a sociologia. Ela não usa seus conceitos centrais (poder, estratificação, socialização, instituição, interação, etc.). Como uma radicalização da teoria da prática, a teoria dos afetos opera no nível ontológico. Ela tenta compreender conceitualmente o que excede os conceitos – sensações, fluxos, ondulações, pulsações e ritmos que geram as práticas que produzem ações, emoções, representações, bem como interações, grupos, comunidades, sociedades e outras coisas que os sociólogos estudam. Conseqüentemente, a teoria dos afetos não pode ser simplesmente transportada da filosofia para as ciências sociais por atacado. Aqui como em outros casos, é necessário cautela. O empirismo transcendental deleuziano, o empirismo radical de James e a evolução criativa de Bergson são interessantes para repensar o mundo, mas não se aplicam diretamente ao mundo social.

Da mesma forma, enquanto os afetos guardam semelhanças com as emoções, eles também são bastante diferentes delas. Eles não são socialmente construídos por scripts culturais e não variam seja culturalmente, seja historicamente. Eles operam em um nível mais profundo, situado abaixo do social, do humano e do pessoal. Eles são vitais e viscerais. Como fluxos anônimos de energia pulsante, os afetos são intensidades, virtualidades, tendências e potencialidades que podem ser vagamente sentidas, mas que operam globalmente abaixo do limiar da consciência. A consciência é, na verdade, uma pequena janela de tempo – “quinze segundos no máximo”, como diz Nigel Thrift (2008: 6). Muito pequena para capturar as sensações que são sentidas, embora não percebidas, durante, no máximo, dois segundos. Os afetos e as emoções interferem continuamente. São formações paralelas. Os afetos podem afetar as emoções, as emoções podem desencadear a reflexão, a reflexão pode afetar de alguma forma os afetos. De que forma, no entanto, permanece obscuro. É tanto uma questão conceitual quanto empírica, embora eu duvide que a sociologia das emoções esteja pronta para enfrentar essas questões.

Em terceiro lugar, embora a teoria dos afetos seja uma ramificação radical dos estudos culturais, ela não é cultural, mas material; não é social, mas animal; não é histórica, mas vital. A transição do pós-estruturalismo para o materialismo vitalista é uma tentativa de minar a virada lingüística com suas representações, mediações e categorizações da experiência. A virada afetiva é uma tentativa de retornar à experiência não-mediada, imediata e pura. Conscientemente, põe a matéria de volta no materialismo cultural, o corpo de volta nas práticas e o espírito de volta na vida. Esse materialismo que se volta contra os excessos da des/construção e do construtivismo, reanima a vida. A matéria morta ganha vida, as estruturas são dissolvidas em processos, processos em fluxos, fluxos em uma dança cósmica de energias. Ao contrário das emoções, que são construídas social, cultural e historicamente na linguagem, os afetos são materiais – circulam em corpos biológicos (animais e humanos) como excitações e sensações corporais. Os afetos não são culturais, mas naturalizados, o que levanta o problema de como os cientistas sociais vão mensurá-los.

A virada afetiva desafia alguns dos pressupostos básicos da teoria social. Mas a teoria social, por sua vez, está em condições de questionar alguns dos pressupostos básicos da teoria dos afetos. Vejo dois problemas: um ideológico e um científico.

O problema ideológico tem a ver com uma duvidosa reatualização das profundezas irracionais da Lebensphilosophie, da parapsicologia e do misticismo. Em princípio, nenhum problema em retorna a Spinoza, Darwin e Nietzsche. As filosofias de Gabriel Tarde, William James e Henri Bergson também têm seus atrativos. Mas, e se alguém invoca esses personagens honoráveis, o que vamos fazer  com  outros como Oswald Spengler, Othmar Spann e Ludwig Klages, que adotaram posições semelhantes e cujo trabalho foi completamente desacreditado pelo fascismo? O que faremos com o conservadorismo de Tarde, Le Bon e outros psicólogos das massas? E supondo que se queira evitar a ressurreição do fascismo, como é que se vai manter longe as iscas do misticismo cósmico e as sirenes do panpsiquismo que se destacam no vitalismo neoanimista de hoje? Da mesma forma, se alguém invoca espíritos, encantos, vozes, energias, telepatia, hipnose, transe, imitação, mimesis e outros fantasmas que animam os bazares esotéricos contemporâneos, onde se traça a linha entre filosofia e parapsicologia, sociologia e soteriologia? Se a mensagem é o meio, então, alguém também pode sair do armário e transformar a ciência em uma sessão onde videntes, sensitivos e outros caçadores de sensações serão capazes de roubar o show.

O problema científico vem da natureza infraconsciente, transpessoal e molecular dos afetos e das sensações. Eles não podem ser percebidos pelos olhos ou tocados pelas mãos. Como eventos sinestésicos, eles podem ser ouvidos, sentidos ou pressentidos de alguma maneira por nossos sensores corporais como forças vitais que continuamente pulsam e fluem para a frente e para baixo, abaixo e ao longo das portas da percepção. Para serem cientificamente percebidas, essas forças anônimas têm que ser naturalizadas em termos neurofisiológicos (Massumi) ou endocrinológicos (Brennan) e operacionalizadas para que possam ser devidamente detectadas e registradas por dispositivos tecnológicos de “inscrição” (tomografias, eletrodos, testes galvânicos, etc.). Neste ponto, as formas pré-históricas de animismo que vêm das profundezas da vida são tecnicamente unidas às instalações de alta tecnologia da pós-modernidade. O infra-humano e o pós-humano são fundidos em uma filosofia pseudocientífica e pós-moderna que evoca alguns dos seus conhecimentos da física quântica, da biologia molecular e da matemática dos fractais. Deleuze não está longe, mas tampouco Bourdieu. Como o campo de posições, o campo das pulsações energéticas é também um campo de forças. Construído pelo cientista como um constructo que explica senso comum e sentimentos comuns por algo que transcende a percepção comum, é metafisicamente aprimorado e sequestrado por filósofos especulativos que anseiam por algo que seria ao mesmo tempo transpessoal e íntimo.

Finalmente, para concluir, deixe-me voltar ao início – para o curso que ministrei com o meu ex-aluno Diogo Corrêa. Diogo assumiu todas as viradas nas ciências humanas e acabou incorporando as barreiras, bloqueios e trancamentos produzidos pelas viradas vitalista e animista, ontológica e especulativa, por completo. Ele acabou do outro lado do ser humano – para além da representação simbólica e da mediação; abaixo da correlação e da construção. O esquema grandioso dos planos de ser que ele construiu é montado como uma cascata[3]. Entra-se no domínio do humano pelo topo e, deslizando do humano para o animal e deste para os planaltos vegetais da existência, eventualmente acaba-se em um pântano cósmico que se sente como um oceano. No entanto, as partes superior e inferior são as mesmas. Como leitor de Lévi-Strauss e Viveiros de Castro, ele sabe que é a respeito disso que, em última instância, tratam todos os mitos humanos. Como leitor de Merleau-Ponty, ele também sabe que o simbólico e o real, o sensual e o cultural, o afetivo e o emocional estão entrelaçados como em um quiasma. Não há parte superior e inferior. Apenas a experiência humana. Na medida em que isso é e permanece humano, é sempre, invariavelmente e necessariamente, mediado pela cultura, sociedade e história.

Referências bibliográficas

BACHMANN-MEDICK, D. (2016) Cultural Turns: New Orientations in the Study of Culture. Doris Bachmann- Medick. Berlin: De Gruyter.

COLLINS, R. (2004) Interaction Ritual Chains. Princeton: Princeton University Press.

CLOUGH, P. (2007) The Affective Turn. Theorizing the Social. Durham: Duke University Press.

MASSUMI, B. (2002) “The Autonomy of Affect”, in: Parables for the Virtual: Movement, Affect, Sensation. Durham: Duke University Press.

SEDGWICK, E. K. & FRANK, A. (1995) ‘Shame in the cybernetic fold: reading Silvan Tomkins’, in: Shame and Its Sisters: A Silvan Tomkins Reader. Durham: Duke University.

SEDGWICK, G. & GREGG, M. eds. (2010) The Affect Theory Reader. Durham: Duke University Press.

SUSEN, S. (2015) The ‘Postmodern Turn’ in the Social Sciences. London: Palgrave Macmillan.

THRIFT, N. (2008) Non-Representational Theory. Space. Politics. Affect. London: Routledge.

Notas

[1] Para uma visão geral de algumas viradas, ver Bachmann-Medick, 2016 e Susen, 2015. O programa da disciplina ministrada no IESP_UERJ pode ser consultado no Blog do Sociofilo, espaço na blogosfera do núcleo de teoria social e filosofia das ciências sociais por mim coordenado: https://blogdolabemus.com/2016/08/27/as-viradas-nas-ciencias-humanas/

[2] Com sua teoria pragmática das cadeias rituais de interação, Randall Collins é tanto uma figura de proa da sociologia das emoções quanto uma ponte para a teoria dos afetos. Sua energia emocional corresponde a ondas de fluxos afetivos que aumentam e diminuem à medida que absorvem as energias do meio ambiente.

[3] Cf. o post de Diogo Silva Corrêa, Sobre afetos e a virada afetiva, presente no próprio Blog do Sociofilo: https://blogdolabemus.com/2017/10/26/sobre-afetos-e-a-virada-afetiva-por-diogo-silva-correa/

1 comentário em “Ser ou não ser afetado, por Frédéric Vandenberghe

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