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Decodificando Hieróglifos Sociais. Notas sobre a efetividade filosófica da sociologia em Theodor Adorno, por Rodrigo Cordero

Blog do Sociofilo

Seção Cartografias da Crítica

Constelação Teoria Crítica Alemã: Origens, Frankfurt e Além

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Rodrigo Cordero Vega (Universidade Diego Portales, Chile)*

Tradução de Alberto Luis Cordeiro de Farias

Revisão de André Magnelli

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I

Uma das reivindicações mais centrais da tradição da teoria crítica que começa com Hegel e Marx é que uma “crítica da sociedade” não pode prosseguir sem uma “crítica dos conceitos”. A sugestão subjacente é que a análise concreta das relações sociais e contradições que moldam a vida humana em comum não deve ser dissociada da análise dos conceitos através dos quais se compreende essa realidade e se busca encarná-la. Pois os conceitos não são meras construções subjetivas externas à coisa representada, mas sim produtos materiais da forma como as relações sociais se organizam historicamente sob certas formas objetivas. É por esta razão que, para a teoria crítica, a compreensão empírica do mundo social envolve um “momento especulativo” inescapável, um ponto em que o pensamento de alguém não é apoiado pela segurança dos fatos [1]. Aqui, o “especulativo” não é “ornamentação problemática” que desvia nossa atenção de problemas sociais concretos e preocupações científicas reais em favor de questões filosóficas, é realmente a maneira de romper com a aparência da auto-evidência do mundo empírico e da ideia de que a realidade factual não passa de realidade factual [2].

Como é sabido, essa questão está sublinhada na análise de Marx sobre a sociedade capitalista. Em sua opinião, o verdadeiro desafio de compreender uma sociedade organizada em termos de troca de mercadorias reside no fato de que “transforma todo produto do trabalho em um hieróglifo social” [3]. O observador é, portanto, confrontado com coisas “supra-sensíveis” e “abstratas” que parecem ter uma vida própria e desafiar a compreensão imediata. Assim, a busca por decifrar o “segredo” de tais “hieróglifos sociais” é como ser forçado a ler uma língua estrangeira sem um dicionário, para apreender o significado das mercadorias seguindo seus traços como artefatos reais no mundo social em vez de subsumi-los a regras estabelecidas de interpretação. A sugestão chave de Marx é capturar o processo de dupla vinculação pelo qual as mercadorias se tornam princípios sumamente abstratos de coordenação social que reúnem coisas heterogêneas e, ao mesmo tempo, funcionam como fontes concretas de significado que produzem um senso de identidade enquanto intensificam as divisões sociais. De fato, as mercadorias não só expandem a conectividade social, independentemente e além das relações concretas entre indivíduos nas quais elas são produzidas; elas também moldam a textura das relações sociais, transformando o valor de troca na linguagem natural através da qual os atores lêem o mundo e sua experiência individual.

O enigma fundamental é como fundamentar uma “crítica da sociedade” convincente se a linguagem que nos permite nomear coisas e compreender eventos já está corrompida pelo intercâmbio capitalista e, então, como fundar uma “crítica de conceitos” sem recorrer a princípios transcendentais, categorias normativas ou definições idiossincráticas que se opõem à conceitualidade existente como simplesmente falsas. Essas preocupações estavam no centro dos debates da pós-guerra na teoria crítica e continuam a ressoar hoje, mesmo após a virada comunicativa introduzida por Jürgen Habermas se tornar a chave principal para enfrentar o dilema. No entanto, as tentativas imperiosas de “corrigir” os conhecidos déficits sociológicos e normativos da teoria crítica tendem a obscurecer uma das intuições mais originais da crítica dialética de Marx à economia política, a saber, a ideia de que, se na sociedade capitalista “os indivíduos são governados por abstrações” [4] a teoria crítica é então obrigada a se tornar um exame empiricamente fundamentado de como essas abstrações tornam-se historicamente válidas e praticamente verdadeiras nas relações sociais como princípios de visão e divisão do mundo. Para isso, a teoria crítica não pode sacrificar a capacidade de suscitar questões filosóficas que excedam o conjunto de métodos cientificamente válidos, nem empregar conceitos existentes como artefatos materiais para decodificar a configuração objetiva das relações sociais e divulgar possibilidades de formas de vida não reificadas [5]. A justificativa desta reivindicação é dupla.

Primeiro, se a vida social nunca é um objeto totalmente transparente a nossos sentidos, a teoria social crítica requer conceitos articuladores para tornar inteligíveis as relações e contradições entre processos universais e experiências e objetos concretos. No entanto, existe sempre o perigo implícito de hipostasiar os conceitos como unidades auto-suficientes de significado que o teórico “pode ​​definir como as figuras da geometria” [6]. Isso está longe de ser uma questão de epistemologia formal. Isso tem a ver com encontrar formas de expressão adequadas para explicar a experiência humana socialmente incorporada e com um “estilo” de pensamento que visa sacudir a ilusão de um mundo ordenado e lógico projetado por categorias convencionais de conhecimento. Na visão de Adorno, o pensamento especulativo é precisamente o antídoto para o fetichismo filosófico que conserta os conceitos em proposições consistentes independentemente do que está além dos conceitos, mas existe dentro dos conceitos como seu conteúdo real (isto é, materialidade e experiência).

Em segundo lugar, se a vida social não é uma realidade puramente empírica que existe independentemente da conceitualidade, a teoria crítica exige que os conceitos examinados se tornem resultados contingentes das práticas histórico-sociais. A questão fundamental é compreender o processo de estabilização das relações sociais em abstrações que reivindicam autonomia e ainda organizam experiências concretas, como se a vida social fosse um todo unânime com bases seguras. Quando os conceitos começam a trabalhar sobre as cabeças das pessoas como fatos reais, a tarefa da crítica é colocar esses conceitos em movimento para revelar sua “natureza arbitrária” e mostrar que “eles se tornaram sob certas condições” [7] . Essa insistência em seguir o movimento especulativo dos conceitos através da própria vida social é o que permite o desbloqueio do momento da não-identidade entre as formas conceituais e a realidade social, o fosso constitutivo que mostra as inconsistências dos conceitos, bem como a impossibilidade de fechamento do mundo social.

No que se segue, gostaria de refletir sobre uma implicação fundamental desta dupla afirmação sobre formas conceituais na teoria social, a saber, que a distinção convencional entre pensamento conceitual e inquérito empírico é baseada em uma divisão ontológica insustentável que cria um “falso dilema” entre a sociologia e a filosofia [8]. Para isso, o foco da minha atenção será um ensaio tardio e pouco conhecido intitulado “Sociedade” [9], que no contexto das principais obras filosóficas de Adorno parece um texto menor preocupado principalmente com questões sociológicas. No entanto, seguirei aqui o conselho de Adorno para que se leia seus escritos fragmentários como “modelos de pensamento” de conceitos ou fenômenos específicos destinados a registrar e decodificar sua natureza socialmente mediada. Como ele escreve, “o todo vive apenas nos momentos individuais” [10]. Assim, eu gostaria de ler este ensaio como uma indicação da realidade da sociologia que Adorno coloca no cerne de seu projeto filosófico – ou, mais precisamente, como uma indicação de sua defesa inequívoca da realidade filosófica da sociologia para a crítica da sociedade contemporânea [ 11].

II

O ensaio “Sociedade” de Adorno não deve ser lido como uma descrição “passo a passo” do que a sociologia é ou deve ser, mas sim como um “modelo crítico” sobre os desafios que a sociologia enfrenta ao se aproximar do seu mais essencial e problemático conceito: o de sociedade. O ensaio oferece uma crítica do conhecimento sociológico, bem como uma crítica da sociedade. Ambos os momentos parecem condensados ​​em uma breve observação que Adorno faz em relação à realidade da sociologia: “a tarefa da sociologia hoje é compreender o incompreensível, o avanço dos seres humanos em direção ao inumano” [12]. Esta descrição perspicaz reúne três elementos que, quando tomados como proposições isoladas, levam a formas unilaterais de pensamento sociológico que imobilizam o conceito de sociedade tanto quanto empobrecem nossa compreensão da vida social: a idéia de compreensão básica (idealismo) da sociedade, a idéia de incompreensibilidade básica da sociedade (positivismo) e a ideia do fundamento humano da sociedade (humanismo).

Como espero mostrar, o problema de cada uma dessas posições individuais é a visão limitada dos elementos sociais que as condicionam como descrições da sociedade. Se seguirmos a lógica dialética da observação de Adorno, a questão chave é que, apesar de a sociedade existente tornar-se uma realidade cada vez mais incompreensível para nós (um “hieróglifo social”, nas palavras de Marx), pode ser feita compreensível e, portanto, um objeto de crítica se seguirmos o movimento concreto através do qual as relações sociais se tornam uma totalidade abstrata que une as coisas enquanto as separa. Esta é a tarefa da sociologia das mediações de Adorno: privar as coisas de sua reivindicação de conclusão. Deixe-me explicar esta ideia com mais detalhes.

O fato de que a sociedade é um termo que se refere a um modo de existência coletivo dependente em consequência de formas de sociação, faz dela o objeto de todo tipo de disputa sobre o que a sociedade realmente é, como deve ser e se ela realmente existe. Um objetivo central do ensaio de Adorno é defender o conceito de sociedade contra acusações habituais de ser um “resíduo filosófico no desenvolvimento da ciência” [13]. Para ele, a sociedade é uma categoria essencial da análise sociológica, mas também é um conceito impossível, uma vez que “não pode ser definido como um conceito no sentido lógico atual, nem demonstrado empiricamente” [14]. A ideia de uma “sociologia sem sociedade” o atingiu como um fracasso científico, pois negligencia as conexões objetivas que mantêm a vida dos indivíduos enquanto sucumbem a uma imagem da vida social como a mera soma de “mônadas” individuais desconectadas dos processos gerais [15]. O ponto do argumento de Adorno, no entanto, não é afirmar que a sociedade é “o conceito supremo da sociologia” e uma realidade superior sob a qual tudo que é particular é subsumido. Na sua opinião, tanto a dissolução do conceito de sociedade como a reificação do conceito produzem o mesmo efeito: transforma a sociedade em algo absoluto e incompreensível, inacessível ao conhecimento e à crítica sociológica.

O que essencialmente falta nestas posições é a ideia de que a “sociedade”, estritamente falando, é um relacionamento “mediado e mediador”: isso significa que os seres humanos, situações e instituições individuais são constituídos pela sociedade, mas também a sociedade é constituída e moldada por eles. A categoria de “mediação” sugere pelo menos duas coisas: primeiro, a sociedade é configurada por elementos aparentemente não relacionados que o conceito coloca em relação dentro de si mesmo (social/não-social, universal/particular, ideal/material, objetivo/subjetivo); segundo, que cada um desses elementos não idênticos são constituídos em relação uns aos outros. Para traçar essas mediações, o pensamento sociológico é compelido a operar conceitualmente, mas com a condição de que não pode depender da suficiência das definições subjetivas e da coerência que elas parecem projetar na sociedade.

Adorno é extremamente crítico à visão idealista que dá por certo que a sociedade pode ser compreendida, pois depende da capacidade dos indivíduos para a interpretação racional e a criação de significado. Isso pressupõe que o significado social é transparente e compreensível para os indivíduos como seu próprio produto, mas ao custo de desconhecer [misrecognizing] tudo na sociedade que resiste às definições conceituais e é inacessível à experiência subjetiva direta (ou seja, coisas que são realmente incompreensíveis). Para enfatizar este ponto, Adorno lembra uma das lições mais importantes que ele aprendeu de Nietzsche: a saber, que os conceitos em que processos sociais inteiros e experiências históricas são “semioticamente concentrados”, desafiam definições exatas porque “somente o que não tem história pode ser definido” [16]. A sociedade é precisamente um desses conceitos que, ao invés de serem “fixados em uma terminologia arbitrária” em benefício da precisão, tem de “ser implantado dialeticamente” [17]. Deste ponto de vista, os conceitos não são “ferramentas classificatórias” que ajudam a medir as regularidades sociais, mas sim as “constelações” de elementos aparentemente dispersos na realidade; um campo móvel de tensões entre o possível e o real [18]. Assim, todos os conceitos envolvem um processo de formação e mudança de conceito que pode ser determinado examinando as tendências conceituais contidas nos fenômenos sociais. O movimento do conceito de sociedade, em particular, “só pode ser determinado se percorrer os próprios fatos [sociais] a tendência que ultrapassa eles. Essa é a função [especulativa] da filosofia na pesquisa social empírica” [19].

Agora, a própria possibilidade de resgatar esse momento especulativo na sociologia exige, por outro lado, reintroduzir o momento sociológico nas práticas especulativas. Adorno expressa o problema da seguinte forma:

A reflexão filosófica deve fraturar o chamado “trem de pensamento” que espera pensar de forma irrefutável. Os pensamentos que são verdadeiros devem se renovar incessantemente na experiência do assunto. . . Pensar filosoficamente significa pensar intermitências tanto quanto ser interrompido pelo que não é o próprio pensamento [20].

 

O problema para Adorno é que a filosofia não pode se refugiar na subjetividade transcendental como fundamento do conhecimento verdadeiro nem confiar na “autarquia dos conceitos” para delinear as margens da realidade. Para preservar a autonomia do pensamento, a dignidade do trabalho intelectual e o poder da reflexão crítica, a filosofia não pode deixar de “incorporar dentro de si a realidade social e política e sua dinâmica” [21]. Ou seja, se a sociologia empírica requer a mediação conceitual do objeto, o pensamento filosófico deve impregnar-se de fatos, os elementos não conceituais que constituem, senão, excedem a conceitualidade. É por isso que, afinal, “compreender” o mundo social é sempre uma luta aberta e persistente com o objeto, nunca um trabalho acabado [22].

III

Isso me leva ao segundo aspecto da observação inicial de Adorno – a ideia de que a sociedade é algo “incompreensível”. Se as abordagens hermenêuticas e fenomenológicas depositam demasiada confiança na experiência subjetiva e no poder interpretativo dos conceitos como meios para apreender o mundo social, a atitude positivista radical defende uma espécie de ascetismo conceitual que ignora a reflexão teórica em favor da descrição metódica de objetos empíricos existentes (o que quer que esses objetos possam ser), como se fossem fatos brutos, pode-se medir sem conceitos e especulações. Ao fazê-lo, a visão positivista invoca “o que aparece” como o padrão normativo do conhecimento verdadeiro, deixando intactos os fenômenos que não são imediatamente perceptíveis, mas que são cruciais para a compreensão da configuração da sociedade [23].

Dito isso, a reflexão sociológica de Adorno sobre o “incompreensível” refere-se não só a um obstáculo epistemológico dado às definições que os sociólogos costumam empregar para descrever a vida social ou a complexidade funcional da sociedade que mostra que, aparentemente, “tudo está relacionado com o resto”. A noção de “incompreensível” procura capturar o diagnóstico que Adorno compartilha com Marx: que o modo de vida capitalista transfigura as relações sociais em formas cada vez mais abstratas que subsumem as nuances qualitativas, particularidades e diferenças da ação humana sob a lógica identitária da troca de mercadorias. A realidade social torna-se realmente “incompreensível”, uma vez que os próprios indivíduos têm uma capacidade limitada para dar sentido às conexões reais entre sua experiência e os elementos sistêmicos da sociedade em que vivem; isto é assim porque a expansão da forma-mercadoria como modelo de relações sociais transforma a sociedade em uma entidade totalista separada da experiência vivida diariamente. Assim, a abstração da sociedade (que se torna um conceito, uma abstração real) ocorre “não tanto no pensamento científico”, mas na mesma forma em que as relações sociais são historicamente organizadas: “algo como um ‘conceito’ está implícito na sociedade na sua forma objetiva” [24].

Essa proposição trabalha contra a tentação positivista de ver o mundo social como um objeto puramente empírico desprovido de conceitos, pois a realidade factual em si é conceitualmente constituída. Essas formas conceituais podem não ser imediatamente acessíveis através da coleta de “descobertas empíricas”, mas são reais na medida em que habitam e circulam através de idéias subjetivas, formas de autocompreensão, normas e práticas. E, no entanto, essa proposição também trabalha contra a tentação idealista de usar conceitos como meras representações externas e construções racionais do intelecto humano, pois a vida social produz suas próprias formas de abstração. Assim, na medida em que os conceitos contribuem para dar forma à nossa experiência de realidade social, não são substâncias fixas com bases sólidas, mas documentos que se registram e condensam os traços dos processos histórico-sociais.

Isso equivale a uma reconsideração radical de conceitos como formas sociais complexas que são ambos meios de pensamento sociológico e objetos de pesquisa sociológica. A partir desta perspectiva, para abordar as contradições da sociedade capitalista, a sociologia crítica tem que se basear em conceitos para “dar um nome” ao que mantém as coisas juntas (a configuração objetiva das relações sociais) [25], mas também deve examinar as idéias, conceitos e teorias que os próprios atores empregam para dar sentido ao mundo (a configuração subjetiva das relações sociais). Como sugeri no início deste post, esta é precisamente uma das maiores contribuições da crítica de Marx à economia política: elaborar um modo de investigação social em que a crítica especulativa dos conceitos é um momento fundamental e inevitável da crítica da sociedade.

Se a sociedade não pode ser conhecida e observada com independência de seus conceitos, a sociologia deve tornar-se “especulativa” no melhor sentido da palavra – isto é, tem que abraçar conceitos “para alcançar além dos conceitos” [26]. Tem que capturar o processo pelo qual a realidade social adquire a aparência conceitual de ser algo em si mesma, tanto quanto a forma como os conceitos alcançam a existência empírica na realidade social. O fato de que esse trabalho sociológico não pode ser alcançado sem reflexões especulativas não significa que “o poder de pensar seja suficiente para compreender a totalidade do real” [27]. Significa, sim, que, se a sociologia restringir o seu “direito à especulação”, ela simplesmente “deteriora-se na técnica de especialistas sem conceito em meio ao conceito” [28]. Em outras palavras, a sociologia não só restringe sua capacidade de suscitar questões que excedem o conjunto de métodos cientificamente válidos e categorias pré-estruturadas, mas também sua capacidade de realmente dizer algo importante sobre a condição presente do mundo social e dos humanos que o habitam.

IV

O terceiro e último aspecto envolvido na tarefa sociológica de chegar a um acordo com o “incompreensível” é a preocupação normativa subjacente à vontade cognitiva de “compreender” a vida social. A observação inicial de Adorno continuaria sendo uma afirmação formal se restrita ao “compreender o incompreensível”; o que a salva disso é o conteúdo fenomenal ao qual se chama explicitamente: “o avanço dos seres humanos para o desumano”. Esta frase diz respeito ao processo pelo qual os elementos humanos da subjetividade e da vida coletiva se desumanizaram devido ao modo como a vida social é funcionalmente organizada na sociedade capitalista, mesmo na medida em que ameaça o próprio conceito de humanidade. A inclusão do “problema da humanidade” na definição de Adorno sobre a tarefa e o problema da sociologia é claramente a intenção de debater a ideia de que os seres humanos constituem a realidade e os fundamentos essenciais da sociedade. O problema com esta suposição é que ele fixa a forma e conteúdo da sociedade de acordo com um princípio normativo isento de processos sócio-históricos. Assume-se que a sociedade já é humana e deve permanecer humana, sem poder relacionar nossas concepções de humanidade com as condições reais que moldam nossa existência física corporativa humana concreta.

Daí a preocupação normativa da sociologia com “o avanço dos seres humanos em direção ao inumano” não ter nada a ver com a adoção de uma definição normativista do mundo social tirada de um dicionário. É, antes, uma disposição para criar solidariedade com os vivos. Para a luta da sociologia consiste em ler o mundo social “sem um dicionário” [29]: isto é, aprender e compreender o processo através do qual o conceito de humanidade se concretiza enquanto se sufoca pela forma das relações sociais existentes. Para fazer isso, argumenta Adorno, somos obrigados a ancorar o conhecimento nas próprias experiências que agitam as normas estabelecidas e formas cognitivas: isto é, a experiência da crise e do sofrimento humano. É precisamente nesse sentido que podemos interpretar a afirmação forte de Adorno de que “dar voz ao sofrimento é uma condição de toda a verdade” [30].

A questão-chave é por que esse deve ser o caso e quais são as implicações para o conhecimento  e a escrita sociológicas. Afinal, o corpo humano e a experiência do sofrimento referem-se ao domínio de processos somáticos e subjetividade interna que desafiam a comunicação direta e dificilmente são “compreensíveis” para o olhar sociológico. Ainda assim, Adorno argumenta que o sofrimento é uma condição da verdade, uma vez que o que o indivíduo experimenta subjetivamente é efetivamente mediado objetivamente pelas condições sociais. Podemos não sentir e viver o mesmo, mas as experiências individuais de sofrimento podem ser consideradas como “objetividade [social] que pesa sobre o assunto” [31] e, portanto, como indícios de fenômenos sociais. De certa forma, “a sociedade se torna diretamente perceptível quando dói” [32]. Adorno reconhece que isso pode parecer um pouco exagerado, mas, tendo em conta os exageros metafísicos que a realidade social impõe à existência humana, ela conta como uma descrição ética e responsável.

O sofrimento torna-se assim para Adorno uma base não conceitual de conhecimento, como “o menor vestígio de sofrimento sem sentido no mundo empírico… diz que sabemos que o sofrimento não deve ser, que as coisas devem ser diferentes” [33]. Por um lado, isso significa que a experiência corporal do sofrimento registra e encarna o avanço progressivo dos seres humanos em condições desumanas das quais os indivíduos dependem e que “constituem seu conceito” como seres humanos [34]. Por outro lado, isso significa que esse processo pode ser percebido nos processos sociais, se reconhecermos que os elementos humanos ainda palpitam no que se tornou desumano – objetivado, desde que os próprios seres humanos ainda possam pensar, agir e falar. Na visão de Adorno, a luta da sociologia para “compreender” torna-se então a luta pelo conceito de humano, a luta para expressá-lo. Aqui “o conceito de ser humano é o que importa em última análise”, afirma, não porque tenhamos que garantir um lugar para um humanismo que eleve o homem como um padrão absoluto contra a variedade de formas anti-humanistas de ocultar a reificação e o sofrimento. Isso importa porque os verdadeiros “seres humanos são necessários para transformar o estado petrificado das coisas” [35]. Para enfrentar essa luta, a sociologia não pode se recusar a trabalhar com conceitos, na medida em que há coisas que são sociologicamente precisamente porque não podem ser empiricamente articuladas.

“Uma vez que reconheçamos isso”, conclui Adorno em uma conferência poucos meses antes da sua morte:

o termo “filosofia”, que alguns nos repreende como se fosse uma vergonha, deixa de causar horror e se revela como condição e objetivo de uma ciência que quer ser algo mais do que simples servo tecnológico para a tecnocracia [36].

O verdadeiro horror realmente vive na dissimulação da “persistência não diminuída do sofrimento” [37].

V

Nessa perspectiva, podemos ver por que a distinção entre sociologia e filosofia nos confronta com um “falso dilema”. Se a compreensão do mundo social consiste em produzir conhecimento sobre o estado atual das coisas e como elas se tornaram o que são, a reivindicação científica do conhecimento pela sociologia não pode deixar de se envolver em questões filosóficas. Para conhecer o social, inevitavelmente, somos levados a examinar e tornar instável a autoconfiança de conceitos que reivindicam pleno acesso ao real, ao mesmo tempo em que mostra que a sociedade não é um todo unânime com bases seguras, mas um espaço que desenha sua vida de relações humanamente dignas.

Essas breves observações não só nos convidam a considerar a efetividade sociológica da filosofia especulativa de Adorno, mas, o mais importante, são um argumento para confiar mais na efetividade filosófica da sociologia.

Notas

* Rodrigo Cordero Vega é Doutor em Sociologia (University of Warwick, Reino Unido, 2011), Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade Diego Portales (Santiago, Chile) e Pesquisador Visitante na New School (NY). Seus trabalhos situam-se na intersecção da história conceitual, da teoria crítica e da sociologia política, com foco temático nas relações entre crise, crítica e negatividade; poder, ideologia e práticas de invenção/mudança conceitual; neoliberalismo, direito e reprogramação social. Suas referências teóricas são principalmente Hegel, Marx, Adorno, Arendt, Foucault e Rose. O texto ora traduzido e publicado no Blog do Sociofilo é originalmente o Epílogo do livro Crisis and Critique: On the Fragile Foundations of Social Life (Routledge, 2017). Agradecemos a Rodrigo Cordero a autorização para tradução e publicação do material.

1 Theodor W. Adorno, Negative Dialectics, trans. E. B. Ashton (London and New York: Routledge, 2005).

2 Theodor W. Adorno, Hegel: Three Studies, trans. Shierry Weber Nicholsen (Cam­bridge, MA: MIT, 1993), 3.

3 Karl Marx, Capital, Vol. 1, A Critique of Political Economy, trans. Ben Fowkes (London: Penguin, 1976), 167.

4 Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy, trans. Martin Nicolaus (London: Penguin, 1973), 164.

5 Samir Gandesha, “The Aesthetic Dignity of Words: Adorno’s Philosophy of Lan­guage,” New German Critique 33 (2006): 137–158.

6 Adorno, Hegel, 98.

7 Adorno, Negative Dialectics, 52.

8 Theodor W. Adorno, Filosofía y Sociología, trans. Mariana Dimópulos (Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2015).

9 Theodor W. Adorno, “Society,” in Critical Theory and Society: A Reader, eds. Stephen Eric Bronner and Douglas Kellner (New York and London: Routledge, 1989), 267–275. Esse artigo foi originalmente publicado em 1965.

10 Adorno, Hegel, 91.

11 Embora o trabalho de Adorno seja altamente considerado na filosofia e discutido como parte do cânone da teoria crítica, teve uma recepção e valorização bastante limitada dentro da sociologia. Muitos parecem ter tomado partido da interpretação de Habermas de que os escritos do pós-guerra de Adorno abandonam as idéias racionais do conhecimento sociológico em favor de uma metafísica da negatividade e dos impulsos miméticos da arte; ver Jürgen Habermas, “Conceptions of Modernity: A Look Back at Two Traditions,” in The Postnational Constellation, ed. and trans. Max Pensky (Cambridge: Polity, 2001), 142; Jürgen Habermas, Theory of Communicative Action, vol. 1, trans. Thomas McCarthy (Cam­bridge: Polity, 1991), 339–402. A remarkable exception to this trend is Gillian Rose’s classic introductory study of Adorno; ver Gillian Rose, The Melancholy Science: An Introduction to the Thought of Theodor W. Adorno (London: Verso, 2014). Para tentativas recentes de reconsiderar a atualidade do pensamento sociológico de Adorno, ver Axel Honneth, “A Physiognomy of the Capitalist Form of Life: A Sketch of Adorno’s Social Theory,” Constellations 12, no. 1 (2005): 50–64; Matthias Benzer, The Soci­ology of Theodor Adorno (Cambridge: Cambridge University Press, 2001).

12 Adorno, “Society,” 270.

13 Theodor W. Adorno, “Sociology and Empirical Research,” in The Positivist Dispute in German Sociology, trans. Glyn Adey and David Frisby (London: Heinemann, 1977), 68.

14 Adorno, “Society,” 269.

15 Theodor W. Adorno, Introduction to Sociology, trans. Edmund Jephcott (Cambridge: Polity, 2002); Theodor W. Adorno, “Society,” in Aspects of Sociology (Boston: Beacon, 1973), 16–33. Esse artigo foi originalmente publicado em 1956.

16 Friedrich Nietzsche, On the Genealogy of Morality, trans. Carol Diethe (Cambridge: Cambridge University Press), 53; Adorno, “Society,” 267.

17 Adorno, “Society,” 269.

18 Adorno, “Sociology and Empirical Research,” 69.

19 Ibid., 86.

20 Theodor W. Adorno, “Notes on Philosophical Thinking,” in Critical Models: Inter­ventions and Catchwords, trans. Henry Pickford (New York: Columbia University Press, 2005), 131–132.

21 Theodor W. Adorno, “Why Still Philosophy,” in Critical Models: Interventions and Catchwords, trans. Henry Pickford (New York: Columbia University Press, 2005), 14.

22 Rose, The Melancholy Science.

23 Adorno, “Society,” 270.

24 Adorno, Introduction to Sociology, 32.

25 Adorno, “Sociology and Empirical Research,” 68.

26 Theodor W. Adorno, Lectures on Negative Dialectics, ed. Rolf Tiedemann, trans. Rodney Livingstone (Cambridge: Polity, 2008), 95.

27 Theodor W. Adorno, “The Actuality of Philosophy,” Telos 31 (1977): 120.

28 Adorno, Negative Dialectics, 29.

29 Theodor W. Adorno, “The Essay as Form,” in Notes to Literature, vol. 1, ed. Rolf Tiedemann, trans. Shierry Weber Nicholson (New York: Columbia University Press, 1991), 13.

30 Adorno, Negative Dialectics, 17.

31 Ibid., 18.

32 Adorno, Introduction to Sociology, 36.

33 Adorno, Negative Dialectics, 203.

34 Adorno, “Sociology and Empirical Research,” 86.

35 Theodor W. Adorno, “Sociedad,” in Epistemología y ciencias sociales, trans. Vicente Gómez (Madrid: Cátedra, 1965/2001), 17 [tradução do autor].

36 Ibid., 100.

37 Adorno, “Why Still Philosophy,” 14.

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