Indicação de Frédéric Vandenberghe
LE BART, Christian. L’individualisation. Paris, Presses de Sciences Po, 2008.
Neste semestre dei um curso sobre sociologia existencial. A ideia era de cruzar a sociologia existencial alemã (Heidegger, Jaspers e Ricoeur) com a sociologia francesa do individuo para lançar o conceito de ativismo existencial. Há muito tempo que a reflexão sobre o individualismo virou um tópico obrigatório nas ciências sociais francesas – das considerações clássicas de Tocqueville, Durkheim e Louis Dumont até as investigações mais recentes de Marcel, Castel, Heinich, Lahire, de Singly, Martuccelli e Ehrenberg. Tem muitos livros sobre a processo de individualização, mas, na minha opinião o melhor, de longe, é o de Christian Le Bart. Contra a ideia comum que o individuo nasce com a modernidade, a sócio-historia que Le Bart pratica mostra que não se pode falar de individualização no singular. Leitores de Hadot e Foucault sabem que já na antiguidade, especialmente no estoicismo e o epicurismo, se encontram filosofias do cuidado de si que cultivam o individualismo. Nos séculos XIV e XX, no Renascimento, o individuo reaparece na figura do artista e do príncipe. Mas, é verdade que é só com o Esclarecimento e ainda mais com a Revolução francesa, que realmente entramos na era do individuo. Na Democracia em América, Tocqueville lembra que o individualismo é uma palavra nova (ela foi inventada em 1826). O individuo é o produto não só do Cristianismo (veja Weber) e do capitalismo (veja Marx), mas também do desenvolvimento do Estado com sua burocracia e pedagogia. A sociologia pode ser considerada como uma tentativa para defender ao mesmo tempo o individualismo e o solidarismo, construindo coletivos como a classe ou a nação como substitutos das comunidades orgânicas do ancien Régime. Na esteira de Georg Simmel, Le Bart distingue dois individualismos, o individualismo genérico, abstrato, burguês da primeira modernidade – o “individualismo de 1789” – e o individualismo romântico da diferença da segunda modernidade – o “individualismo de 1968”. Nota-se que Simmel, o primeiro sociólogo da modernidade, aparece também nessa perspectiva como o primeiro sociólogo da modernidade. Enquanto Marx e Durkheim frisam a autonomia, a independência e a libertação da tradição, Simmel pensa a modernidade a partir da interdependência e da autenticidade. Exatamente um século depois da sua morte, chegamos numa situação na qual o processo da individualização tem progredido ate o ponto que só sobram indivíduos. A sociedade, as suas instituições e socializações, se evaporaram. Pelo bem, porque agora cada um tem a possibilidade de ser original, mas pelo mal também, porque a obrigação de ser singular, único e diferente, é angustiante. Como fazer sociedade com um bando de indivíduos? No limite, o individualismo é ontológico. A reconstrução da sociedade, porem, é um tarefa politica que termina no réveillon e recomeça no 1o de janeiro. Boas entradas!
Indicações de Gabriel Peters
SONTAG, Susan. Under the sign of Saturn. New York, Vintage Books, 1981.
[E.B.: Sob signo de Saturno. São Paulo, L & PM, 1986.]
É apropriado que uma ensaísta provocativa e polivalente como Susan Sontag desperte, em quem acompanha diferentes momentos da sua obra, uma variedade desconcertante de reações. No meu caso, estas cobrem todo o contínuo que vai do maravilhamento à indignação, para não falar nas misturas ambivalentes dessas sensações (p.ex., maravilhamento indignado ou indignação maravilhada). Se seu livro Diante da dor dos outros me pareceu delinear brilhantemente todo um programa de pesquisa, por exemplo, o tom oracular de suas polêmicas estéticas frequentemente me desagradou, e algumas de suas críticas me pareceram de uma injustiça atroz (e.g., seus ataques ao trabalho fotográfico de Diane Arbus).
Pois bem. Com exceção de uma sensacional polêmica estético-política contra a cineasta (outrora) nazista Leni Riefenstahl, os ensaios coligidos em Under the sign of Saturn são geniais exercícios de admiração. Trata-se, mais precisamente, de uma coleção de perfis intelectuais, magnificamente bem escritos, de um punhado de autores apreciados por Sontag: Paul Goodman, Walter Benjamin, Antonin Artaud, Roland Barthes, Hans-Jurgen Sybeberg e Elias Canetti. A referência a Saturno, signo astrológico da melancolia, aparece no ensaio sobre Benjamin, mas poderia se aplicar, em maior ou menor medida, a todos os membros desse grupo. Sontag tende a pintá-los como temperamentos melancólicos, que preservaram teimosamente os casulos solitários nos quais puderam dedicar-se a uma vida intelectual independente, perseguindo interesses que seus contemporâneos julgavam idiossincráticos. Creio que não é preciso recorrer a especulações psicanalíticas selvagens para se concluir que, devido a esse e a outros traços, a galeria de heróis sontaguianos é reveladora do próprio ethos intelectual que Sontag cultivou corajosamente ao longo de toda a sua carreira.
Veja-se, por exemplo, os elogios que ela dirige a (um certo) Paul Goodman no pequeno ensaio de abertura do livro. Ela celebra o interesse de Goodman por uma variedade estonteante de temáticas, interesse propenso a parecer inaceitável “diletantismo” em face de habituais escrúpulos acadêmicos (“seu assim chamado amadorismo é idêntico ao seu gênio” [p.8]). Como quem colhe legitimidade para suas próprias experimentações em múltiplos gêneros expressivos, tais quais o romance e a direção teatral, Sontag também presta tributo à ousadia do poeta-dramaturgo-ensaísta Goodman. Como fez a própria Sontag, ele aventurou-se para além do ensaio de crítica social, forma em virtude da qual já havia angariado tanto prestígio. Graças às liberdades propiciadas pelo gênero ensaístico, a autora estadunidense também interpõe valiosas considerações pessoais em suas discussões dos autores por ela analisados. Para continuar no texto sobre Goodman: no mesmo ensaio em que exprime admiração pela sua obra multifacetada, ela confessa que, ainda que o tenha encontrado pessoalmente diversas vezes, não gostava dele, pela razão muito compreensível de que sentia que ele não gostava dela (p.5). Quem quer que tenha se desapontado ao conhecer de viva voz um ídolo bibliográfico, seja porque ele é melhor no papel (revisado e editado), seja porque ele não devota a nós nem um pingo da curiosidade que devotamos a ele, bem entende Sontag. E faz toda a diferença que um ensaio literário arranje espaço para que a autora compartilhe conosco sua confissão de humaníssima vulnerabilidade à opinião de um “role model” mais velho, ainda mais se contrabalançada pelo reconhecimento equânime do que sua obra continua tendo de valioso, a despeito da grosseria do seu autor em pessoa.
Como esse breve comentário não é uma resenha, não direi muito sobre os outros ensaios. As pinceladas admiradoras com que Sontag pinta os retratos biográfico-intelectuais de Benjamin, Barthes ou Canetti são entremeadas, já disse acima, com uma polêmica implacável contra Leni Riefenstahl. A ensaísta reconhece, é claro, que o juízo da qualidade estética não deve estar subordinado a critérios políticos exteriores…a não ser diante de obras que, como o cinema de autocongratulação nazi, já realizaram tal subordinação na sua própria feitura. Nas palavras de Sontag, um filme como “O triunfo da vontade nega…em sua concepção mesma…a possibilidade de que a cineasta tenha uma concepção estética que independa da propaganda” (p.79).
Quanto ao ensaio sobre a genialidade louca de Antonin Artaud, o mais longo do livro, confesso que considero-o muito melhor do que qualquer coisa que tenha lido a respeito do pensamento artaudiano em, digamos, Foucault ou Deleuze. Na melhor tradição do virtuosismo ensaístico, Sontag não chega ao idealizador do “teatro da crueldade” diretamente, mas mediante cercos sucessivos: a “morte do autor” na ressaca do modernismo estético, a relação de amor-e-ódio com os surrealistas, a biografia tortuosa, a radicalidade de seu programa teatral, xamanismo, drogas, transe, contracultura…Aliás, houve um tempo em que, na minha ingenuidade narcísica, achei que tinha sido o primeiro a deparar com paralelos fenomenológicos entre as experiências de radical “estranhamento do mundo” na esquizofrenia, de um lado, e no gnosticismo antigo, de outro. Eis que, em seu ensaio sobre Artaud, a autora de “Sob o signo de Saturno” já havia notado o parentesco e, claro, escrito sobre ele de maneira maravilhosamente perspicaz. Dá para entender o que quero dizer com “indignação maravilhada”?
BAKEWELL, Sarah. How to live; or a Life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer. New York, Other Press, 2011.
[E.B.: Como viver; ou uma Biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta. Rio de Janeiro, Objetiva, 2012.]
Hora de sair do armário: sou um leitor ávido de livros de autoajuda. Quando relato o fato a meus colegas de academia – e refiro-me aqui aos que praticam levantamento de bibliografia mais do que de peso -, encontro frequentemente reações de espanto e perplexidade. Em resposta, mas sem acalentar maiores esperanças de dissuadi-los da desconfiança quanto ao meu bom (sic) senso, defendo que o campo da “autoajuda”, a bem da verdade, não é monolítico. Não há dúvida de que a face mais visível dessa literatura é justamente aquela que suscita, com toda razão, a insatisfação de meus colegas. Embora eu saiba lhufas dos debates técnicos sobre física quântica, por exemplo, pesquisei o suficiente para saber que as vozes científicas mais competentes me dirão que o princípio da incerteza NÃO implica que controlamos o universo com nossos pensamentos – supondo, é claro, que seja preciso recorrer à física quântica para se chegar a uma conclusão que a vida joga em nossa cara todos os dias. Também consigo perceber o papel ideológico de certa literatura que promove o empreendedorismo de si, o qual cabe muito bem a uma era em que a responsabilidade pela resolução de problemas sistêmicos (p.ex., desemprego) é lançada sobre ombros individuais, de modo que “sucessos” e “fracassos” deixam de ser vistos como questões estruturais e são reduzidos ao “mérito” puro da pessoa isolada.
No entanto, sobra a sensação de que muita coisa escapa, total ou parcialmente, a essa grade crítica. Como lidar com tradições intelectuais que pensam a filosofia, antes de tudo, como aprendizado da “arte de viver”? Que qualificação deve receber um livro de “filosofia” de Sêneca, por exemplo, que não trata diretamente de problemas ontológicos ou epistemológicos, mas de como podemos manejar a raiva…ou o medo…ou a inveja? E o que dizer de outro membro ilustre na galeria da filosofia ocidental que entremeia reflexões metafísicas com relatos do seu gosto por melões ou das suas doídas indigestões?
Ainda que a fenomenologia da indigestão não seja, de fato, um assunto do meu interesse, essa apresentação autoral de si não como um intelecto puro, mas como um ser feito de carne e vísceras, foi um dos muitos atrativos que encontrei nos Ensaios de Montaigne. Eis um sujeito que filosofa e partilha um sem-número de insights sobre a psique humana enquanto me interpela pessoalmente, à maneira de um amigo que conversa comigo sem maiores amarras – e, como se não bastasse, com uma voz que fala além do túmulo, atravessando séculos para chegar a mim(zinho).
Se os Ensaios podem ser facilmente enfrentados sem maiores preparativos didáticos – pelo menos em comparação, digamos, com a Crítica da razão pura ou com a Fenomenologia do espírito -, não há dúvida de que nosso aprendizado e fruição do pensamento exploratório do velho Montaigne se beneficia de uma contextualização histórica e biográfica. Em Como viver, Sarah Bakewell apresenta brilhantemente as ideias de Montaigne, interpolando-as não apenas com aspectos de sua biografia, mas também com as reverberações que os Ensaios produziram nos últimos quatro séculos sobre autores tão diversos quanto Nietzsche e Virginia Woolf. Bakewell pinta Montaigne como um autor que reflete sobre os modos mais construtivos pelos quais podemos manejar nossos sofrimentos (o luto, a dor física, a consciência de nossa finitude) e obter, assim, um pouco mais de felicidade. Chame-se isto de “autoajuda” ou de qualquer outra coisa, é difícil pensar em um gênero de escrita mais importante para estes seres bizarros que somos, criaturas com mentes capazes de especular sobre a eternidade, mas alojadas em corpo finito de mamífero. Em Como viver, Montaigne encontra em Sarah Bakewell uma comentadora dign(íssim)a da sua inteligência, sensibilidade e sabedoria.
JOHNSON, Steven. De onde vêm as boas ideias. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010.
Meu primeiro interesse sobre este livro do jornalista Steven Johnson foi estilístico. Buscando tornar minha prosa mais enxuta, e assim lutando sofridamente contra a prolixidade espontânea que adquiri ao longo de uns dez anos de bourdiologia, encontrava-me eu(zinho) atrás de autores capazes de transmitir ideias acadêmicas em um estilo fluido e, se possível, atraente.
Diga-se de passagem que me refiro ao sentido mais comum da palavra “atraente”, pois ainda atribuo teimosamente essa característica ao estilo do Bourdieu maduro (p.ex., o das lindas e melancólicas Meditações Pascalianas). Só precisei me render às evidências repetidas do quão minoritário é meu juízo a esse respeito, como nos diversos saraus de poesia em que tentei declamar a maravilhosa passagem sobre “estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes”, mas tive de parar porque as pessoas jogaram tomates em mim…
Não fujamos do tópico. Johnson acabou se revelando não apenas um modelo valioso de escrita, mas também uma fonte de insights substantivos acerca de um dos meus muitos temas natimortos de tese de doutorado: as fontes sociopsicológicas da criatividade na arte e na ciência. Não me surpreendeu a descoberta posterior de que ele havia escrito um livro sobre a ideia de “emergência” na análise de sistemas complexos (biológicos e/ou sociais), pois, em De onde vêm as boas ideias, o homem esbarra por conta própria, repetidas vezes, em ensinamentos já presentes no velho Durkheim. Ao partir da ideia de que inovações são produtos emergentes da combinação de “ingredientes” materiais e ideativos disponíveis em um ambiente sociocultural, Johnson analisa aqueles ambientes mais propícios à produção da novidade em termos do que um durkheimiano teria chamado de “densidade dinâmica”: a intensidade dos intercâmbios comunicativos internos a uma configuração coletiva.
A tese recebe uma ilustração poderosa do conhecido fenômeno dos “loci dos gênios”, isto é, da concentração de criadores geniais em determinados cenários sócio-históricos. A presença desproporcional de inovadores excepcionais em tais contextos não é genérica, mas condicionada a domínios específicos de criação – por exemplo, a filosofia na Atenas do séculos V e IV a.c (Sócrates, Platão, Aristóteles), a pintura e a escultura na Itália da Renascença (Leonardo, Michelangelo, Donatello, Rafael [para ficar apenas nas tartarugas ninja]), o teatro na Inglaterra do período elisabetano (Shakespeare, Marlowe, Ben Johnson), a música na Viena dos séculos XVIII e XIX (Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert, Brahms) e assim por diante. O fenômeno torna espetacularmente implausível qualquer explicação unilateral e simplória da “genialidade” como efeito de “talentos inatos” e “dons naturais”. (Ademais, e desnecessaríssimo dizer, os atributos compartilhados de gênero, raça, etnicidade etc. das pessoas acima listadas só tornam maior a relevância de fatores sociológicos na análise de criadores historicamente consagrados).
Se o livro tem o mérito de trazer uma sensibilidade “sociológica” a um campo dominado por mitos individualistas dos “grandes criadores”, ele tem a virtude de não substituir tais mitos pela mitologia coletivista de um “espírito do tempo” do qual brotariam as realizações coletivas. Em vez de substituir uma visão unilateralmente individualista por uma visão unilateralmente coletivista da inventividade, Johnson parte de contextos sócio-históricos para explicar por que alguns indivíduos ali imersos tiveram oportunidades historicamente extraordinárias para inovar – isto é, para acessar, apreender, combinar e recombinar materiais (p.ex., pincel, microscópio, telescópio) e ideias (programas artísticos, postulados científicos, teoremas matemáticos) em produtos originais. Não se trata, portanto, de dizer que a concentração anormal de realizações inventivas manifesta a criatividade da própria rede, mas de mostrar como as propriedades da rede oferecem oportunidades máximas para o florescimento inventivo de indivíduos a ela conectados.
Indicações de Lucas Faial
TRILLING, Lionel. Sincerity and Authenticity. Oxford, Oxford University Press, 1972.
Há muito a ser dito a favor de uma boa crítica literária. Um bom exercício da crítica é capaz de abrir as vias de compreensão de obras aparentemente herméticas, de desestabilizar as leituras correntes de um livro consagrado, e em certos casos, de dar a um livro, seu autor ou autora, um lugar na história. Mas também é possível, através da boa crítica literária, fazer boa teoria social. A equação não é simples, e nem muito bem-vinda para certos críticos literários ou teóricos sociais, mas trata-se de através da investigação da forma estética desvelar os contornos da forma social que a antecede, a modela, mas não a determina integralmente. O exercício de Lionel Trilling, no livro Sincerity and Authenticity, demonstra a potência dessa abordagem. O livro é baseado numa série de aulas ministradas em Harvard no ano de 1970, e viria a ser publicado em 1972. Começando no diálogo de Diderot com o sobrinho do compositor Rameau em Le Neveau Rameau, junto da leitura de Hegel que consagra tal texto como paradigma da situação cultural e espiritual moderna em Fenomenologia do Espírito, Trilling passa por séculos da literatura ocidental, entre romance e poesia, para entender aquilo que define como “o processo da vida moral revisando a si mesmo” através do problema da sinceridade e da autenticidade. O que é ser sincero? Por que a sinceridade passa a ser tão importante em determinado momento da história da cultura ocidental? E por que ela deixa de ser, dando lugar a nebulosa questão da autenticidade?
O livro é dividido em seis capítulos, sendo o primeiro dedicado a introduzir a laboriosa tarefa de análise: investigar, a partir da literatura, o que é e como se tornou tão importante o problema da sinceridade e da autenticidade na cultura ocidental moderna. O segundo capítulo nos apresenta o diálogo de Diderot e sua interpretação por Hegel, demonstrando uma dimensão específica da sinceridade: Em que medida uma sociedade permite ou atrapalha o exercício da sinceridade em seus indivíduos? Por uma crítica (e crítica da crítica) brilhantes, Trilling deslinda o problema da sinceridade como emergente na era moderna a partir de um contexto de mobilidade social sem precedentes, quando se torna particularmente delicada a questão da correspondência entre ser e parecer. Em primeiro lugar, a sinceridade é a harmonia entre sentimento e confissão, entre o self privado, tido como mais real, e o self público, sempre sujeito a dissimulações, esquemas, tramas e falsidades. No terceiro e quarto capítulo, a sinceridade é estudada, respectivamente, a partir das obras de Rosseau, e da obra de Jane Austen. Figuram a constelação de textos também a poesia de Wordsworth, as comédias de Molière, dentre outros. Nesse ponto, o problema da sinceridade é um problema de estrutura social, ou seja, ser sincero é encontrar seu lugar na sociedade, e para isso, os tons políticos dos romances de Austen nos revelam os contornos do liberalismo moderno e de seu conceito de sinceridade. Nos últimos dois capítulos, Trilling lida com a passagem da sinceridade para a autenticidade, um registro moral distinto, mas semelhante, que nunca é definido categoricamente, mas que ganha inteligibilidade pela emergência do saber psicanalítico, mas especificamente, pela emergência do inconsciente.
Vale notar que esse a ausência de definições categóricas muito rígidas é um traço do livro, o que pode não ser boa estratégia num livro de teoria social, mas é tomado como método por Trilling, que prefere, a partir dos textos, flertar com os contornos da sinceridade e da autenticidade, entendendo como emergem, variam e evanescem na cultura ocidental moderna. A autenticidade, por exemplo, não é definida, mas há boas pistas a respeito do efeito do saber psicanalítico na longa tradição de interpretação moral do eu, uma vez que a fórmula simples e densa do “ser verdadeiro consigo mesmo” ganha seus contornos a partir de uma concepção de self que se revela em suas profundezas, e não em sua privacidade, como no caso do ser sincero. Muito pode ser dito sobre a ideia de que a sinceridade surge como temática na cultura ocidental moderna a partir de uma passagem de modos tradicionais de organização social, nos quais a comunidade e a sociedade são valorizados como locus privilegiado da verdade, e definem o indivíduo em seu lugar no mundo, para modos modernos de organização social, no qual a ligação entre self e sociedade torna-se contingente, problemática, ganhando então contorno o dilema do descompasso entre ser e parecer. Muito ainda pode ser dito a respeito da colocação de Trilling a respeito do lugar do intelectual na sociedade moderna, sendo aquele que arrogou para si a responsabilidade de julgar se uma sociedade é sincera para consigo mesmo, com seus valores esposados e com sua maneira de apresentar-se, bem como sua capacidade de incentivar a vida sincera de seus integrantes. Afinal de contas, seria demais entender a teoria social advinda da teoria crítica como um longo exercício de desvelamento das condições para vida sincera (e autêntica) sob o jugo da ideologia capitalista? Entretanto, o que o trabalho de Trilling me mostra é o valor de procurar, nos textos do passado, os dilemas que permanecem a definir a vida em sociedade hoje. Através da literatura e da história, o crítico desvela um problema que, embora surja em uma cultura particular, e varie de acordo com o contexto histórico e até mesmo da situação a partir da qual queiramos entende-lo, continua a ser um dilema fundamental do ser si mesmo em uma sociedade fraturada, problemática e sempre em mudança. Acredito que, para entender o mundo contemporâneo – suas novas formas de apresentação e performance digital do eu, suas imponderáveis e imensuráveis redes de interação globais, formadas por sujeitos imersos em diferentes regimes de anonimato, suas práticas de exposição e desvelamento, tão bem exemplificadas nos casos de abuso sexual que recentemente povoam as notícias no mundo do entretenimento, seus affaires, seus escândalos, suas notícias falsas e dilemas reais – cabe retomar o velho problema: o que significa ser verdadeiramente o que somos? E, antes ainda, que tipo de sociedade construímos e em que medida ela permite que seus integrantes se tornem a si mesmos, seja lá o que isso queira dizer.
Eu sou trezentos… – Mário de Andrade
O poema Eu sou trezentos… escrito em 1929 e publicado em 1930 é um dos meus favoritos de Mário de Andrade, contendo o verso que muitas vezes é usado para caracterizar a enormidade da obra do escritor. Entretanto, a recomendação vem aqui pelo lugar em particular que tal poema ocupa na trajetória de Mário de Andrade que, em 1930 publica o livro de poema Remate de Males, em momento que a poesia modernista brasileira abandonava seu período inicial de efervescência e experimentação, e voltava-se, em muitos sentidos, para si mesma. Seguindo a publicação de Macunaíma em 1928, Magnum opus do escritor, e diria do movimento modernista como um todo, o Remate de Males marca um momento de reflexão. Num primeiro plano, a reflexão é sobre os rumos do próprio movimento modernista que fechava sua primeira década e que, a partir da Revolução de 1930, deveria encontrar novo lugar em um novo regime político e em uma nova conjuntura. Em semelhança aos diversos grupos que compunham o cenário nacional da época – a oligarquia agrário-exportadora que vivia os efeitos da crise de 1929, a burguesia nacional ainda incipiente que buscava conciliar-se com a tradição e com a modernidade ao mesmo tempo, o Estado em formação que saía de um longo regime de sucessão e concentração de poder que, de certa forma, esvaziou a experiência republicana logo em seu início – Mário de Andrade se via na passagem das décadas numa encruzilhada. É por isso que o poema Eu sou trezentos… vale uma leitura. Os versos como testemunho daquilo que entendo como um exercício de esperança num momento de crise. Não cabe aqui tentar aproximar nossa conjuntura ao momento histórico em que os versos foram escritos, mas não acho que seja demais enxergar alguns paralelos entre a falha da primeira experiência republicana no Brasil, terminada com um golpe, e nossos últimos dois anos. O ponto é que, em Eu sou trezentos… encontra-se um daqueles momentos em que um mergulho sobre si mesmo diz tanto mais sobre o mundo que circunda do que sobre as profundezas do sujeito. Assim, as duas primeiras estrofes do poema caracterizam aquilo que é o estado de ser “trezentos, trezentos e cincoenta” de acordo com o poeta, divido entre vários caminhos, situado na beira de uma década decisiva para o país, que em sete anos sofreria outro golpe de Estado marcando uma das várias viradas conservadoras em nossa história, onde elementos díspares se encontram, sem síntese, onde “as sensações renascem de si mesmas sem repouso”, num tom marcadamente inquieto. Na última estrofe, porém, um lampejo de esperança que embora luminoso, não deixa de ser trágico se considerarmos os anos que seguiriam a trajetória do poeta até sua morte em 1945, quando não pode ver o fim do regime de Vargas nem da Segunda Guerra Mundial, os quais viveu dolorosamente. Entretanto, cabe lembrar a lição deixada pelo mesmo nos versos do Rito do Irmão Pequeno, escrito um ano depois em 1931: “A própria dor é uma felicidade…”
Indicações de Diogo Silva Corrêa
GARCIA, Tristan. La vie intense: une obsession moderne. Paris, Éditions Autrement, 2016.
No século XVIII, uma grande novidade teve um profundo impacto no modo de vida e no pensamento europeu: a descoberta da eletricidade. De imediato, ela gerou uma dupla fascinação. De um lado, ela instituia uma promessa de emancipação pela técnica. Acreditava-se que, em breve, ela substituiria a energia muscular, só que com muito mais potência; de outro, ela também indicava uma possível reconciliação entre o homem e mundo, o corpo e natureza. Como a fisiologia da época logo apressou-se a dizer, a eletricidade apontava para a existência de um elo entre a vida nervosa do organismo e a eletricidade do mundo.
Em seu livro ensaístico sobre a vida intensa, Tristan Garcia parte da imagem da eletricidade para nos falar não apenas da aparição, no século XVIII, de um novo conceito de intensidade, mas sobretudo da sua normatização. Mais do que reconhecer a existência de um universo intensivo – o que, na verdade, já estava presente nas reflexões metafísicas de Aristóteles -, o autor se propõe a mostrar como a ideia de vida intensa se tornou uma espécie de bússola moral ou ética para o homem moderno.
O objetivo do livro de Garcia é, portanto, entender como esse imperativo da vida intensa tornou-se o leitmotif das sociedades liberais e laicas europeias. Ele se pergunta a respeito do que teria surgido após o declínio das transcendências religiosas? Ora, no momento em que as sociedades ocidentais passaram a se compreender como incapazes de prometer aos individuos a vida depois da morte, a salvação, a graça, o que elas teriam a oferecer em seu lugar? A hipótese de Tristan Garcia é que, na incapacidade de prometer algo além da vida, as sociedades teriam encontrado uma nova via que partiria do que os indivíduos já dispunham. Esta seria a própria vida, a vida nervosa, elétrica, que deveríamos intensificar. A grande promessa moderna teria sido a de intensificar nossas funções vitais, nossos desejos, nossas percepções, nossas sensações, nosso entusiasmo. Viver ou não ter vivido não terá mais a ver com a simples existência, mas com a intensidade com que ela é vivida.
O que Tristan mostra em seu livro é que a intensidade, tornada palavra chave do mundo moderno, passa a ser partilhada tanto pelos defensores do status quo sistêmico capitalista quanto pelos seus opositores. No que diz respeito aos primeiros, é possível vê-la no discurso publicitário e dos promotores do lazer. O que estes prometem? Sempre a mesma coisa: uma experiencia intensa. Seja o gosto intenso, a sexualidade intensa ou simplesmente uma existência intensa, a ideia que se mantém é aquela segundo a qual o bom consumo ou o melhor objeto de consumo é aquele que leva as pessoas a uma experiência sensorialmente intensificada. Ao mesmo tempo, a intensidade será também a palavra de ordem dos críticos e detratores do capitalismo e de toda quantificação e estandardização a que ele leva. Não por acaso, a intensidade ou a vida intensa está na poesia do seculo XIX e em todos os movimentos de vanguarda contrapostos à burguesia e ao modo de vida burguês. Se Eve Chiapello mostrou bem a constituição da oposição entre managers e artistas, Garcia apresenta o que os dois lados tem em comum: um ideal de vida intensa, ainda que os critérios das boas e más intensidades lhes sejam distintos.
Desse novo lema dos novos tempos, teriam surgido grandes personagens que passaram a ocupar, no Ocidente, o espaço da condição exemplar do homem intenso. O primeiro teria sido o libertino, descrito por Marquês de Sade. Como se sabe, o libertino é um explorador das sensações corporais; seu jogo é intensificá-las ao máximo, levá-las ao limite. O segundo personagem teria sido o romântico. Este é aquele capaz de sentir vibrar a potência da natureza em sua eletricidade interior. A figura da tempestade em Biron e em Chateaubriand expressam essa descarga elétrica da natureza que se exprime no coração do poeta. O terceiro teria sido o homem intenso das sociedades liberais, cuja figura mais bem acabada encontra-se no rock e na adolescência. Garcia explora, aqui, a lógica do adolescente revoltado, que toca e é fascinado pela guitarra elétrica – esta sendo o elo que reverbera mundo e corpo pelo médium da eletricidade. Inclui-se também, na experiência do rock, a intensificação sensorial produzida pelo uso de drogas.
Antes de terminar, cabe dizer que o objetivo do livro de Tristan Garcia não é fazer uma apologia à intensidade ou à vida intensa. Além de um histórico ou mesmo uma breve arqueologia ensaística da noção, o seu objetivo é mostrar os paradoxos inerentes à normatização da intensidade ou da vida intensa. O autor alerta para o problema da fetichização do conceito e para as decorrentes patologias desse novo imperativo ético. A depressão, o esgotamento, temas amplamente tematizados por Alain Ehrenberg, seriam decorrência dessa excesso de busca por intensificação da vida. Além do mais, segundo Garcia, haveria também um paradoxo inerente à intensidade: toda vez que ela é identificada, localizada, exercida, sentida, ela se perde, se esvazia, como alguém cujo estímulo da droga, a cada uso, vai se esvaindo e deixando de sentir prazer.
O diagnóstico mais geral do livro de Garcia é que a existência desse ideal moderno estaria em vias de esgotamento e que, atualmente, estaria se tornando até mesmo contraprodutivo. Ora, com o esgotamento da promessa da vida intensa, qual seria a nossa alternativa? Como não retornarmos às promessas mais antigas, como aquelas que apontavam para outra coisa além da própria vida? Qual seria a alternativa à imanência da intensificação das experiências? A transcendência prometida pelas narrativas religiosas? O escape da vida intensa e da intensificação dos estímulos sensoriais, como no caso da ataraxia estoica? Eis o desafio a que o autor se dedica na parte final de seu livro, parte essa que deixo em aberto para suscitar a curiosidade do leitor.
Lembro apenas, para finalizar, que La vie intense é apenas a primeira parte de uma triologia que comporta um livro mais político, já publicado e intitulado “Nous”, e um mais metafísico, que deverá sair em 2018.
AQUINO, Jânia Perla Diógenes de. Príncipes e Castelos de Areia: Performance e Liminaridade no universo dos grandes roubos. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 2009.
Desde a pesquisa de campo do meu doutorado, exatamente por ter transitado e conversado com diversas pessoas pertencentes ao “mundo do crime”, passei a interessar-me pela questão dos assaltantes e do assalto. No que diz respeito aos assaltantes, senti-me particularmente atraído pela capacidade que estes têm de ocupar vários pontos de vista ao mesmo tempo e de realizar profundos movimentos empáticos, explorando, para retomar o artigo de Nils Bubandt e Rane Willerslev, “lado escuro da empatia” (dark side of empathy). No caso dos assaltantes, é manifesto como o movimento bem-sucedido de captura do outro pressupõe, em algum grau, um conhecimento edógeno ao ponto de vista da vítima. Ainda que de modo mais intuitivo do que reflexivo, o assaltante, para bem realizar seu ofício, precisa penetrar nas tendências psicológicas e comportamentais imanentes desse outro que ele deseja subjugar a sua vontade. Assim como antropólogo Alfred Gell afirmou alhures que a armadilha é uma obra de arte que subentende no próprio artefato uma metafísica da alteridade, pode-se afirmar que o assaltante é um artista cuja ação, em grande parte, pressupõe uma sofisticada capacidade de perceptiva acerca dos pontos de vulnerabilidade do outro.
Outro aspecto pelo qual me interessei foi a especificidade da situação de assalto. O radical choque ou perturbação que esta configuração situacional particular produz em nossas formas elementares da vida cotidiana tem um valor heurístico inestimável. A situação de assalto insere uma disrupção brusca na experiência prosaica que, para utilizar as expressões de Alfred Schutz, abre para uma nova província de significado – ou significação – e um novo estilo cognitivo. Como situação de exceção e radicalmente tensa, intensa, densa e, com perdão do neologismo, adrenalínica, o assalto torna visível o universo particular das intensidades que, embora presente nas situações “normais”, é naturalizado (taken for granted) ou se visto, não notado (seen, but unnoticed).
Digo tudo isso para afirmar que não conheço trabalho que melhor tenha embrenhado-se no universo do assalto que a tese de Jânia Perla de Aquino. Voltada para grandes assaltos e assaltantes, portanto aqueles mais organizados e estruturados que procuram a obtenção de altos montantes, Jania apresenta, em primeiro lugar, uma habilidade incomum de etnógrafa. Em seu trabalho de campo, ela conquistou a confiança de diversos assaltantes (o que, por si só, é digno de grande mérito) e, mais do que isso, conseguiu efetivamente fazê-los falar. E fazê-los falar, aqui, não apenas no sentido de descrever o modus operandi dos grandes assaltos propriamente ditos, mas de conseguir extrair das pessoas envolvidas nesse mundo particular as questões existenciais e motivações psicológicas mais profundas. Nas passagens das entrevistas, que Jânia explora com particular perspicácia, é possível ver os meandros da subjetividade de, ao menos, dois grandes assaltantes. A partir de duas trajetórias biográficas distintas e da análise da carreira de ambos no mundo do crime, ela expõe com bastante refinamento a história familiar de cada um, as motivações iniciais com base nas quais justificam o seu ingresso na vida do crime, os prazeres e dores próprios desta vida e os dilemas e problemas existenciais com os quais os assaltantes comumente se depararam.
Ainda na exploração de sua riqueza empírica infindável, Jânia nos presenteia com uma espécie de “biografia” de um assalto. Sim, ela retraça de modo pormenorizado a trajetória – o início, o meio e o fim – de um único grande assalto a uma transportadora de grandes valores. Deste crime cuja equipe de sete assaltantes conseguiu obter mais de cinco milhões de reais, Jânia (1) delineia seus primeiros passos, (2) expõe as intensas e intrincadas negociações e problemas surgidos no curso do planejamento do roubo; (3) descreve de modo infinitesimal a sua execução; e, por fim, apresenta como a distribuição do montante foi feita e dividida entre os partícipes do crime.
Para terminar, faz-se preciso enfatizar o quão injusto seria apenas pincelar da tese de Jânia os elementos empíricos. É digno de nota a parte teórica e, em particular, o uso que a autora faz tanto de Erving Goffman quanto de Victor Turner. De Goffman, ela mostra toda a operacionalidade conceitual da noção de “enquadramentos” (frames) para compreender o complexo jogo de múltiplas faces e fachadas próprio ao universo enganoso e escorregadio do assalto e dos assaltantes. Essa lógica da negociação das situações, de existência de bastidores, do trânsito e da gestão de múltiplas identidades, é toda ela brilhantemente costurada a partir do mestre da teoria dos rituais de interação e das falas dos assaltantes ou de situações de assalto. Quanto ao Turner, Jânia faz um uso extremamente bem feito e rigoroso das noções de experiências, liminaridade e performance. Com uma articulação desses conceitos, ela consegue apresentar tanto a condição liminar própria às experiências do assalto quanto enfatizar a dimensão performática que o próprio assaltante realiza durante o assalto – tal como o famoso “badass” de Jack Katz.
Bom, espero que essas breves palavras instiguem a leitura da tese, a qual pode ser encontrada online no seguinte endereço: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-11022010-104155/pt-br.php
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