Da Série Verbetes
Frédéric Vandenberghe
O materialismo histórico é a metateoria do desenvolvimento social que sustenta o “programa de pesquisa” marxista sobre a gênese, estrutura e mudança das formações sociais, do comunismo primitivo à avançada sociedade comunista do futuro. Embora o próprio Marx descreva modestamente a concepção materialista da história como o “fio condutor” de seus estudos, a concepção materialista da história não é simplesmente uma ferramenta heurística para a análise da história, mas pressupõe e projeta uma filosofia ontoteleológica substantiva da história com uma intenção prática.
Por meio de uma leitura cruzada da filosofia dialética de Hegel e da antropologia materialista de Feuerbach, o jovem Marx desenvolveu inicialmente o materialismo histórico como uma antropologia filosófica e apenas mais tarde, a partir de 1845-1846, como uma teoria sociológica do desenvolvimento histórico filosoficamente informada. Marx delineou os princípios do materialismo histórico de forma sistemática apenas duas vezes: primeiro, na primeira parte da Ideologia Alemã (1845/46) e, depois, no famoso “Prefácio” à Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859).
Nas Teses de Feuerbach (1845), que Engels publicou em 1888 como apêndice de um dos seus próprios livros sobre a filosofia alemã, Marx apresentou em taquigrafia os fundamentos filosófico-antropológicos da teoria dialética da práxis histórica que subsequentemente informou a mais sistemática de suas formulações sociológicas do materialismo histórico, bem como a pesquisa histórica concreta em que as formulações foram baseadas. Em uma tentativa insuperável de sintetizar a tradição materialista da filosofia (de Demócrito a Feuerbach) com a dialética (de Heráclito a Hegel), Marx insiste, com Feuerbach, na natureza sensível da atividade humana e adota uma posição materialista que coloca Hegel de “volta ao chão”. Contra Feuerbach, ele recupera o “núcleo racional” de Hegel e propõe uma correção dialética do materialismo contemplativo de Feuerbach, que é capaz de levar em conta a natureza dinâmica da atividade humana e da história.
Enquanto A ideologia alemã (1845-1946) foi deixada para a “crítica roedora dos camundongos” e permaneceu inédita até 1888, o resultado da reflexão filosófica sobre os princípios fundamentais do materialismo histórico pode ser imediatamente sentida nos “escritos maduros” de Marx, começando com o Manifesto Comunista (1848), onde a concepção materialista-dialética da história é apresentada nos termos de uma história da luta de classes. Embora a análise de classe seja parte integrante da concepção materialista da história, ela está surpreendentemente ausente do “Prefácio” à Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859), o locus classicus do materialismo histórico, onde Marx resume os resultados gerais de suas investigações em uma passagem tão célebre quanto controversa:
“Na produção social de sua vida, os homens entram em relações definidas que são indispensáveis e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um estágio definido de desenvolvimento de suas forças materiais de produção. A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual surge uma superestrutura legal e política, e a qual correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção nas condições de vida material, o processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência”
Nesta passagem canônica, os princípios basilares do materialismo histórico são articulados nos termos de um complexo de relações entre a “estrutura econômica da sociedade” e sua “superestrutura ideológica”. Que o primeiro determine, ou melhor, condicione a última é a tese central do materialismo histórico. A estrutura econômica da sociedade é geralmente definida enquanto uma conjunção das “forças” e das “relações de produção”. Referindo-se a todos os fatores que contribuem diretamente para o processo de produção material, as “forças de produção” incluem tanto os meios de produção (recursos naturais, ferramentas e máquinas) quanto a força de trabalho (força física, habilidades e conhecimento técnico). As “relações de produção” são relações humanas de poder exercido sobre pessoas e forças produtivas que regulam a produção e a distribuição. Juntos, as relações e as forças de produção compreendem o “modo de produção” e formam a “base” real em que se assentam a superestrutura de qualquer formação social. A superestrutura que surge nessa base compreende as instituições jurídicas e políticas (“aparelhos ideológicos do estado”), bem como as ideias jurídicas, políticas, religiosas ou filosóficas, ideias, teorias e ideologias necessárias para manter as condições de produção material e a reprodução geral da formação social. Embora a superestrutura seja “no final das contas” ou “em última instância” (Engels, 1972, p.294) determinada pela economia, a autonomia relativa da superestrutura não é contudo negada: Althusser mostrou que a determinação econômica permite uma dominância cultural, como foi o caso na Idade Média quando a religião funcionou como a primeira e principal instância de determinação.
Articulando as relações de determinação no esquema topológico da base e da superestrutura, Marx introduz a dialética entre as forças e as relações de produção como mecanismo de desenvolvimento social. À medida que as forças de produção se desenvolvem, elas entram em contradição com as relações de produção existentes (que se transformam em grilhões) e a intensificação dessa contradição leva à quebra do modo de produção existente e de sua superestrutura. Esta contradição é resolvida em favor das forças de produção, e novas e superiores relações de produção, cujas pré-condições materiais amadureceram no útero da antiga sociedade em si, emergem para melhor acomodar o crescimento contínuo das capacidades produtivas da (nova) sociedade.
Para evitar as falácias clássicas do economicismo, do produtivismo, do reducionismo e do determinismo com que o marxismo é frequentemente associado, deve-se enfatizar que as formulações mais sociológicas do materialismo histórico estão inseridas nas versões mais filosóficas e que o próprio marxismo é uma teoria materialista da práxis histórica que analisa as “leis do desenvolvimento histórico” com o objetivo de participar da transformação revolucionária do modo de produção capitalista.
Referências bibliográficas
Althusser, Louis. et al.1970. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar.
Cohen, Gerald A.1978/2000. Karl Marx’s Theory of History. A Defence. Oxford, Oxford University Press.
Engels, F. 1890/1972. ‘Letter to J. Bloch, September 21, 1890’ in On Historical Materialism (Marx, Engels, Lenin). Moscow: Progress Publishers.
Marx, K. and Engels, F. 1845-46/2007. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo.
Marx, K. (1859/2013): Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Boitempo.
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