Michel Callon e Bruno Latour (Écoles des Mines, França)
Tradução: Diogo Corrêa
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III: Das transformações de Lorentz às traduções de Serres
Antes de abordar o modo como os dois conjuntos de postulados determinam o ofício do sociólogo, é preciso sublinhar o modo como eles concebem de forma diferente os movimentos. Na verdade, para simplificar, pode-se dizer que o que é direto e contínuo na sociologia prérrelativista é curvo e descontínuo na sociologia relativista; e, inversamente, o que é enviesado e feito por desvios em uma torna-se retilíneo e não requer nenhuma explicação particular em outra.
Exemplo 6: Em minhas notas, eu leio que o CEO da Rhône-Poulenc me diz: “o setor da química mineral perde dinheiro, especialmente no departamento dos produtos à base de cloro, eu vou me esforçar para reduzir o contingente de funcionários”. Questionado mais tarde, o operário representante sindical P. me explica que a redução não passa de uma boa desculpa: “na verdade, os erros científicos e técnicos que fizeram a escolha da cloração foram desastrosos; se não se continuasse a pagar dividendos aos acionistas, eles não teriam que reduzir os funcionários, então são eles que é preciso reduzir, e não os funcionários; quando se comete erros de gestão, não são os trabalhadores que devem pagar a conta, mas a direção; de todo modo, a região, o que ela vai se tornar?”
Em sociologia prérrelativista, seria preciso antes de tudo definir os atores, contá-los, atribuir-lhes uma força, para então fazê-los exercer essa força à distância. Por exemplo, dir- se-á que o CEO representa os interesses do capitalismo ou expressa os projetos da tecnocracia, e que o operário representa os interesses de sua classe. Certo, pode haver, na prática, uma dúvida sobre a força que causa o fenômeno. O CEO pode querer defender, não o capitalismo, mas a existência de Rhône-Poulenc; o operário P. pode representar, não a classe trabalhadora, mas a região de Pont de Claie. Em caso de dúvida, o dever do analista é identificar uma força real e, em seguida, transformar o ator em alguém cuja ação é produzida por essa força, mesmo se ele diz que acredita/faz outra coisa. “Esse engenheiro acredita influenciar a direção estratégica da Rhône-Poulenc, enquanto que, “na realidade”, está confinado à gestão e à negociação de detalhes.” Essa operação define dois tipos de movimentos. Uns retilíneos, uniformes, que são evidentes por si mesmos; outros descontínuos, que requerem uma explicação. Que o capitalismo, a tecnocracia ou o interesse de Rhône-Poulenc exerçam uma força à distância não é uma explicação, é o “primum movens” tão evidente quanto a gravidade. Por outro lado, o que convém explicar é por que o ator, embora impulsionado por uma dessas forças evidentes, diz/acredita/faz/parece fazer outra coisa. Este desvio com relação à trajetória deve ser explicado por uma outra força, também invisível, mas que o analista não deve hesitar em adicioná-la para concluir a análise. Em grande medida, a sociologia prérrelativista é inspirada na física newtoniana. O movimento e a linha reta, a força da inércia não lhe apresentam nenhum problema. O que requer explicação é o freio, o desvio, o retardo ou a aceleração relacionada à força da inércia. Essa sociologia ainda se vangloria de seu esforço para tentar ser uma física social tão newtoniana quanto possível: atores bem definidos, efeitos quantificáveis, forças mensuráveis, etc. Que o capitalismo, ou o campo, ou o papel, ou a socialização, tenham uma influência sobre os atores, não há sombra de dúvida; essa influência é, diga-se de passagem, mensurável por numerosas evidências estatísticas e se prova pela escolha de grupos de controle bem alinhados. No entanto, toda a habilidade do ofício de sociólogo compromete as incertezas, os contraexemplos, os paradoxos “aparentes”: alguns por cento dos operários ainda votam em Giscard d’Estaing; etc. Ao multiplicar as forças invisíveis, pode-se explicar as deformações locais e manter a existência das grandes leis do movimento engendradas pela força dos grandes atores hierarquicamente localizados no quadro de referência.
A distribuição da surpresa e da indiferença, do que é preciso explicar e do que não se deve explicar é exatamente o oposto na sociologia relativista. Que haja um deslocamento retilíneo e contínuo qualquer é uma proeza rara que é preciso explicar em detalhe. No mundo relativista, nenhuma força de inércia vem prolongar o esforço; é necessário que um outro ator se aproprie do objeto que se movimenta. Que o CEO queira a redução do efetivo da fábrica de Pont de Claie é uma coisa, que ele naturalmente possa utilizar, sem o menor problema, a força que lhe dá o “capitalismo” é outra. Essa força, ele não possui na sociologia relativista. Ele deve compô-la no campo; e com o quê? Com muitas outras coisas além do capitalismo. Do mesmo modo, se o sindicalista espera que a “classe operária” lhe dê a força necessária para fazer uma greve, ele corre o risco de esperar muito tempo e de ficar desempregado antes de ter dito “ufa”. O sociólogo clássico pode contar com as forças mesmo se elas estiverem ausentes, dado que ele as acrescenta aos fenômenos – sua falta é mesmo, para ele, uma prova de sua presença “oculta”. Mas o ator “ordinário”, aquele cujo comportamento o sociólogo “explica”, deve mobilizar um exército para mostrar a mentira do CEO. Ele mobiliza “os dividendos pagos aos acionistas”, os “erros de gestão”, mas também, e por que não?, o futuro de Pont de Claie, sua mulher e seus filhos, ou seja, tudo, absolutamente tudo o que está ao seu alcance. Contrariamente aos sociólogos clássicos, os atores não sabem o que é forte e o que é fraco, e é por isso que eles se medem uns aos outros nas provas de força. O CEO luta para integrar o operário P. em seu programa de redução de funcionários, como se os efetivos fossem o excesso desnecessário que justifica a redução do setor da química mineral e a sua condução para resultados eficazes. O operário P. só pode resistir a essa redução fazendo as contas de outro modo. O “excesso”, para ele, é o dos capitalistas aos quais é preciso se vingar; ele reduz o CEO a uma estratégia internacional de reduções de investimentos que são contrárias a todos os interesses dos operários, da indústria química, da França, da ciência, do mundo, etc. Ele pode, ele deve ser o mais amplo possível, uma vez que ele só resistirá a pressão difundindo-a para o mais longe possível.
A diferença de perspectiva é total nos dois modelos. Na sociologia prérrelativista, há atores bem definidos que possuem força que se exerce à distância e de modo direto sobre os outros. Na sociologia relativista, não há atores, não há forças e, portanto, não há nenhuma ação à distância. Para um ator que se desloca, é preciso que ele se componha com outros com os quais ele deve negociar. É negociando que eles se deslocam e se transformam. Tal é a escolha: ou bem não se transformar e não se mover; ou se mover e se transformar, quer dizer, compor-se de multidões que seguem outros objetivos. Só se deslocam, como o mostra Serres, os “quase-objetos”. A batata quente, no jogo, não tem força de inércia. Ela passa de mão em mão e esse movimento apenas a desloca. Alguém pode deixá-la, alguém pode escondê-la, alguém pode lançá-la.
Depois de Serres, nós chamamos esse modo de movimento de tradução. A operação de tradução elementar consiste em confundir dois conjuntos de interesse, em identificá-los de modo impreciso, de forma que um ator, ao se deslocar, desloca o outro. A imprecisão, a confusão, a negociação, a traição, a combinação são constitutivos dessas relações. A claridade, a delimitação, o encerramento da lista de atores propostos pela sociologia prérrelativista certamente matariam a tradução da sociologia relativista. No entanto, que uma ordem seja obedecida, que uma vontade se manifeste, que um poder se exerça, estes são eventos raros, milagres estatísticos tão espantosos quanto se, no jogo de telefone sem fio, o primeiro e o último do círculo das crianças reproduzissem a mesma mensagem. Vê-se que, na sociologia relativista, o “grande tamanho” dos atores é um resultado sempre obtido por composição. É verdade que em um certo nível da controvérsia é o futuro da França, da química e do mundo que são vinculados, associados à sobrevivência do operário P. ou, ao contrário, à redução dos funcionários da fábrica de Pont de Claie. A relação entre o local e o global, esse caminho é o do enrolamento progressivo, da tradução. Que o futuro da França e da classe operária estejam vinculados à greve de Pont de Claie não é um dado, como na sociologia clássica, mas sim o resultado temporário e local de uma associação heterogênea de aliados, todos frágeis e que podem trair na ocorrência de qualquer problema.
Que “o capitalismo” ou “a tecnocracia” possam agir, que haja “efeitos no sistema” ou “estratégias”, ou “campos”, não é de todo impossível na sociologia relativista, mas em vez de aí ela ver as causas cuja presença basta para explicar a ação, vê-se aí os efeitos temporários de uma composição de atores, composição que não se manteria sem muitas outras alianças. “Fazer um sistema” é um jogo justo; isso não significa que não exista um Sistema social, mas que, localmente, pode-se ganhar força invocando os lances já jogados. A diferença de perspectiva é essencial porque no movimento seguinte, longe de controlar o sistema, o ator poderá, ao contrário, invocar causas particulares e locais, a defesa de Pont de Claie. Mas, na sociologia prérrelativista esta incerteza, essas paradas súbitas, estas traições incomodam. Deseja-se, deve-se eliminá-las. Mas na sociologia relativista, elas tornam-se o essencial da pesquisa. O mesmo operário P. invoca a química de cloros, a classe operária, os balanços, a história de Lorraine, bem como o CEO, buscando a todo custo seu objetivo, fala da vontade de Mitterrand, bem como do mercado mundial e da miséria dos jovens que ele não pode contratar por culpa da necessidade de redução dos custos do setor da química mineral, que ele julga arcaica. Uma vez mais, nós encontramos, ao invés de grandes atores tidos por determinantes pela sociologia prérrelativista, uma lista mista e heterogênea que explica, entre outras coisas, porque, no combate, os atores se servem dessa lista para ganhar de grandes atores.
Do mesmo modo que o movimento retilíneo e uniforme, que não põe nenhum problema ao sociólogo clássico, torna-se a raridade a ser explicada uma vez que se passa para o quadro relativista; os desvios com relação à trajetória, que são tão importantes para o sociólogo clássico, não colocam nenhum problema para o sociólogo relativista, que nem sequer os explica. O sociólogo sério tem, em princípio, atores, atores esses que são quase sempre dotados de força capazes de mover outros atores à distância. Na prática, todavia, ele muito frequentemente só obtém uma grande confusão, posto que ninguém está de acordo a respeito de quem representa quem, quem age e quem não age. O sociólogo sério deve, portanto, colocar ordem nessa confusão e classificar as alegações de seus informantes. Mas, neste exercício de classificação, o sociólogo se encontra em meio a paradoxos cada vez mais graves que o obrigam a invenções cada vez mais delirantes. Como nenhum ator obedece os movimentos que as “forças reais” supostamente suscitam, o mundo se povoa de loucos, de inconscientes, de pessoas manipuladas ou alienadas, no meio das quais circulam por vezes admiráveis cínicos e manipuladores maquiavélicos. A manutenção do quadro prérrelativista permite deformações tão incríveis quanto o éter dos físicos antes de Einstein, Por exemplo, mesmo que a classe não aja, pode-se dizer que que ela age “em si”, senão “para si”. Melhor ainda: como todos os atores são ao mesmo tempo manipulados pelas forças fixadas pelo sociólogo, e manipulam os outros, eles têm estratégias; mas como estas estratégias estão implícitas, o sociólogo não hesita em dizer que elas são explícitas, embora inconscientes. A estratégia “omni-inconsciente”, tal é o monstro criado quando se quer manter o quadro prérrelativista e, ainda assim, seguir de perto as controvérsias entre os atores. Nós jogávamos esses jogos quando éramos pequenos, e alguns já até morreram disso.
Não se pode nos acusar de tudo querer complicar, pois todos esses fenômenos tornam- se, no quadro relativista, muito mais simples do que no outro quadro. Todo ator vai em direção reta, pensa corretamente e é tão consciente / inconsciente, implícito / explícito quanto qualquer outro. O operário giscardiano não é mais ou menos monstruoso do que operário devoto de corpo e alma ao Partido Comunista. Como o quadro de referência que permitiria definir o reto e o desviado, o lógico e o ilógico, é o que está em questão e justamente o que se compõe na controvérsia, é absolutamente supérfluo para o observador querer organizar uma distribuição de prêmios. Assim como os graus de realismo ou irrealismo são medidos nas provas de força entre os atores, o grau de lógica ou falta de lógica se experimenta localmente. Nós não sabemos nada sobre a falta de lógica de um raciocínio, sobre a aberração de um comportamento, a sinceridade de um testemunho fora da controvérsia entre os atores. “Ilógico”, “aberrante”, “falsário”, “secreto” são insultos ou elogios lançados no combate por um ator ao outro. Esses não são termos que permitem analisar o combate. Saia da falsa / boa / má / in / consciência, das argúcias do “em si” e do “para si”, das controvérsias bizantinas sobre a “mera prática” e a consciência do sociólogo erudito. Nada se pode adicionar aos atores e eles sabem o bastante sem nós.
O que é reto, contínuo e não problemático em um quadro, é curvo, descontínuo e problemático no outro; o que é desviado, desigual e problemático em um, torna-se reto, igual e sem história no outro. A “física social” nos dois quadros é irreconhecível. Se a física prérrelativista é de aparência newtoniana, a física relativista tem pouca semelhança com a de Einstein. Com seus atores emancipados e seu mundo íntegro, onde tudo só se transmite por composição e traição, é sobretudo em Paracelsus que ela faria pensar! Às transformações de Lorentz que permitem restabelecer por todos os lugares a equivalência das observações e manter a superposição de dois pontos de vista, aconteça o que acontecer e mesmo que os sinais de transmissão de informações sobre os dispositivos de medição não possam ir mais rápido do que a velocidade da luz, nós opomos as traduções de Serres, que permitem descobrir sob as equivalências construídas e consolidadas por cada ator o conjunto de não equivalências originais. “O interesse de Rhône-Poulenc para investir em produtos de química fina” não é nem falso nem verdadeiro, nem limitado nem ilimitado, nem reto nem deformado: é o estado de forças que o seu CEO pôde reunir para constituir esse interesse. A relação entre os atores não se faz por uma simples transformação de medidas, como em Einstein, mas pela revelação de todo o trabalho que as estabelece. Do mesmo modo que nenhum sinal de medição pode exceder “c” na física relativista, na sociologia relativista nenhuma afirmação concernente aos outros atores pode sair do quadro de referência que o ator projeta diante de si para se deslocar. Como resultado, o ator à geometria variável definido no item III não pode transmitir forças de modo previsível, uma vez que essas sempre podem ser retraduzidas e reorientadas. Mais do que um semicondutor, ele é um multicondutor incerto. Às vezes ele transmite como uma correia de transmissão, às vezes ele absorve como um corpo macio, às vezes ele rebate como uma superfície dura, por vezes ele desvia, por vezes ele refrata, por vezes ele se põe fora do jogo e torna-se, em vez disso, o ator principal cuja vontade abarca todas as outras. A física social construída com tal ator, o que não é difícil compreender, não terá nada em comum com a dos atores definidos, hierarquizados, homogêneos e dotados de força da sociologia prérrelativista.
IV: Os ofícios dos sociólogos
Quando os sociólogos falam de reto ou de curvo, de retilineidade ou de desvio, como acabamos de fazer, fala-se sempre de ética. É sobre essas diferenças, ao mesmo tempo epistemológicas e morais, que nós desejamos terminar essa exploração a respeito dos dois quadros de referência.
Exemplo 7: “o fato de ser católico, operário e morar em Roubaix não predetermina o voto de modo tão certo quanto a rede de neurônios transforma o brilho luminoso em uma piscada de olhos? As decisões a partir da repetência no sexto ano[1] são tomadas em função de critérios que variam com a origem social. Se eu sou operário especializado, meu filho está atrasado e tem notas medianas, eu o tiro do sistema escolar. Quando se salta para uma outra categoria social, a racionalidade muda, um ponto médio não conduz à decisão de repetir”.
O dever do sociólogo prérrelativista diante de tais regularidades é verificar os alinhamentos e depois explicá-los com a ajuda de uma das forças que aparece no final do percurso e que é chamada de causa de todas as outras. A eficácia do alinhamento se encontra assim bem colocada, por exemplo, no pertencimento de classe, no habitus, nas formas de racionalidade ou qualquer que seja o elemento que se encontra por último na lista. Que este habitus ou este pertencimento estejam presentes, e todas as outras decisões se alinham tão perfeitamente quanto uma malha de ferro colocada na presença de um campo magnético. Uma vez que o alinhamento foi verificado e a causa atribuída, o dever do sociólogo é desenvolver a sua explicação que dá, assim, ao operário-católico-morador-de-Roubaix a consciência das determinações que lhe faltava. Com esta habilidade, o sociólogo pode, então, encontrar o mesmo alinhamento e as mesmas causas, mesmo que as estatísticas sejam menos nítidas e mesmo se os informantes as neguem veementemente. O dever moral do sociólogo reside na coragem que lhe é necessária para designar as determinações ocultas quando elas não aparecem e quando são negadas pelos atores. É a esse preço, ele pensa, que ele faz uma obra científica, e é sabido por uma certa “Lição sobre a Lição” a que graus de sutileza isso pode levar.
Infelizmente, na sociologia relativista, essas determinações nunca são óbvias. As estatísticas do voto de operário em Roubaix ou da repetência no ensino fundamental não explicam uma determinação escondida, mas elas não fazem senão acolher, no final do percurso, o trabalho de determinação ainda incerto realizado pelos atores. A ligação entre voto, religião, classe, não é uma metalinguagem, é apenas um dos meios constantemente utilizados por políticos para produzir o voto: “como você, um bom católico, votaria em ateus comunistas?”. Todos os alinhamentos que o sociólogo afirma descobrir na prática já foram estabelecidos pelos atores. O candidato se coloca na boa posição para receber a cédula de voto, do mesmo modo que se recebe o escoamento da água por derivações sucessivas. O alinhamento estatístico confirma o trabalho realizado pelo alinhador, e assim ele não faz mais que o número marcado em um medidor de gás quando analisa o caso do gasoduto franco- russo. Acreditando explicar algo pelas estatísticas, o analista simplesmente endossa as provas de força dos atores. A sua metalinguagem é uma infralinguagem.
O resultado numérico das determinações sempre oculta a fabricação do dispositivo de medição que permite a numeração. E isso é tão verdade na ciência quanto na política. Como as estatísticas do INSEE (Instituto nacional da estatística e dos estudes econômicos) ou cálculo dos neutrinos solares, o voto ou a repetência no sexto ano são os resultados finais da construção de dispositivos de medição que tornaram equivalentes fenômenos não equivalentes. Em vez de explicar os “dados” da entrada no sexto ano, a sociologia relativista se concentra na fabricação de “ligações”: como é que vamos transformar os pais em decisores (em vez de deixar a decisão para o professor), como faz-se da decisão uma dicotomia (repetência ou não), como se fabricam os critérios de decisão e as fronteiras (notas, limites de idade, período previsível de estudo), como se decide a lista de sanções visíveis e invisíveis (custo de estudos, dissonância cultural). O quadro estatístico não tem significado até que todos estes alinhamentos tenham sido feitos. Depois que eles foram feitos, o quadro estatístico não desperta mais muito interesse, uma vez que todas as decisões importantes foram tomadas. O sociólogo prérrelativista se acredita excepcionalmente inteligente porque ele capta as estatísticas finais, embora ele se situe além de todas as determinações e em atraso com relação aos atores que ele alega dominar. Em sociologia relativista, pelo contrário, como na física do mesmo nome, a fabricação dos instrumentos de medição ocupa o centro das atenções. Quem construiu o instrumento tem tudo; quanto às leituras que podemos fazer depois de os instrumentos formados, isso quase não conta, exceto para gerir as situações já prontas, para formar redes, para vigiar montagens. Mais uma vez, a sociologia prérrelativista é bem adequada para situações estáveis e atores frios, e inoperante em período de instabilidade ou de construção.
Obviamente, estudar alinhamentos estáveis e lentos não incomoda o sociólogo prérrelativista, uma vez que, como vimos acima, o movimento uniforme é para ele evidente. Na sociologia relativista, pelo contrário, estes alinhamentos são uma rara exceção. Se eles se tornam frequentes, é que um enorme trabalho foi feito para mantê-los e entretê-los; é este trabalho, portanto, que deve ser estudado. O vizinho de porta do operário-católico-morador- de-Roubaix-que-vota-em-Mauroy vota, ele, em Giscard D’Estaing; eis, na sociologia clássica, um paradoxo a ser explicado. Mas em sociologia relativista, isso não é nada surpreendente. Uma multidão de circunstâncias deveria fazê-lo votar de forma diferente. O que é extraordinário, no entanto, é que o dispositivo de votação permita retirar das circunstâncias alguma regularidade e construir, em meio as traduções, um ou dois números pouco estáveis que permitem medir a força relativa do PS e da UDF. Mais uma vez, a surpresa e a indiferença são inversos nos dois quadros. A regularidade é normal em um e excepcional no outro. Então, o aparelho de medição não tem lugar na sociologia prérrelativista enquanto que seu estabelecimento ocupa um lugar essencial no quadro relativista. Falar sobre “metrologia” seria mesmo uma maneira de definir a sociologia relativista.
Na verdade, cada sociologia acusa a outra de estar “à reboque dos atores.” Para um sociólogo clássico, a definição do sociólogo relativista é um verdadeiro apelo à covardia. Ele se proíbe de definir os atores. Ele só duvida se há controvérsia entre os atores. Ele se recusa a acrescentar forças se elas não são compostas in actu; quando ele se depara com uma determinação pouco estável, ele não acredita, mas estuda a rede de medição que a estabiliza! É um verdadeiro tolo, esse sociólogo relativista; ele segue os atores como um filhote de cachorro e não lhes acrescenta qualquer coisa, indo de tautologia em tautologia. Mas, por outro lado, para um sociólogo relativista, o modo de pesquisar do sociólogo clássico é uma escola de crime! O sociólogo acredita explicar os efeitos por causas que são precisamente os efeitos a serem explicados; ele se arroga o direito de inventar causas mesmo quando nada lhes manifesta, e vê a negação dos atores como a prova de que elas são bem ativas; ele toma por uma explicação o que é o resultado final de um instrumento que ele não estuda; ele acusa constantemente de distorção, de falta de lógica e falsa consciência os informantes que ele acredita estarem abaixo dele, ao passo que estes lhe fazem engolir sapos e o usam sem que ele perceba; ele acredita produzir uma metalinguagem enquanto que ele passa, pela enésima vez, pelas associações feitas pelos atores como se passa a dobra de uma calça; ele é realmente uma verdadeira empregada doméstica que tudo faz.
As implicações éticas dos dois quadros são, como não é difícil perceber, antinômicas. À moral do não-dito opõe-se à moralidade do “expressamente-dito.” Para o sociólogo prérrelativista, impedi-lo de criticar a sociedade em nome de outros atores ausentes ou não declarados, é retirar-lhe toda função emancipatória e toda capacidade de conhecimento. Para não ficar atrasado com relação aos atores, é-lhe preciso definir o quadro de referência e de nele situar a posição relativa de todos os informantes. Aqui está o paradoxo: os sociólogos prérrelativistas passam o seu tempo relativizando os pontos de vista de seus informantes (os dominantes pelos dominados, a ilusão de uma livre escolha pelas regularidades estatísticas, a ilusão de determinações por irregularidades estatísticas). Eles ainda se vangloriam deste “trabalho do relativo”, mas nunca o aplicam ao quadro de referência que lhes permite esse relativismo. Por outro lado, na sociologia relativista, a função emancipadora vem do fato que nada é adicionado aos atores e às suas controvérsias. E é exatamente por isso que se pode ver a ocorrência do conjunto de operações de construção dos atores (inclusive, por vezes, as de um quadro de referência hegemônico), e, assim, pode-se igualmente ver a composição gradativa do poder. Em vez de manter a presença de atores sociais importantes, mas inoperantes, a sociologia relativista prefere seguir como, na prática, os atores constituem seu poder recrutando aliados imprevisíveis e mestiços.
Dentre esses aliados úteis na formação de associações estáveis e macro-atores, o sociólogo relativista não tem nenhuma dificuldade em discernir os sociólogos sérios. Ao “estudar” a sociedade, ao “descobrir” os mecanismos secretos, ao “revelar” os reais atores, incluindo as suas opiniões, os sociólogos sérios contribuem para a estabilização de certos atores. Com efeito, uma vez que, em princípio, não existem propriedades fixas da sociedade, toda determinação prática do que é a sociedade vai ter sobre essa sociedade um efeito considerável. O que é, no quadro prérrelativista, uma virtude de conhecimento, torna-se, no quadro relativista, uma “performação”. Os sociólogos, como todo mundo, estão envolvidos no trabalho eminentemente prático para realizar a sociedade. E se eles não sabem mais do que outros, certamente também não o sabem menos! Ao transformar as associações fracas em associações fortes, linhas pontilhadas em linhas contínuas, intuições em leis sociológicas, eles produzem o social do mesmo modo que todas as outras profissões e outras –logias.
Uma certa ironia emerge da comparação entre os dois quadros de referência. No quadro prérrelativista, a sociologia é uma ciência que produz uma metalinguagem pela revelação de princípios sob a forma de prática, mas é uma ciência que se desespera por não atingir um grau de certeza suficiente e gostaria de prever ou ser mais confiável, de descobrir fundamentos últimos, de encontrar atores mais estáveis e mais fortes ou de desenvolver interpretações mais fecundas. Em suma, a sociologia é uma ciência que sonha, seja em imitar as ciências da natureza, seja em descobrir significados ocultos. No quadro relativista, pelo contrário, esta sociologia prérrelativista não deveria se desesperar; ele já é tão eficiente quanto a ciência natural! Ele permite, não só conhecer, mas também – e acima de tudo – performar o social, ao transformar por todos os meios as alianças, talvez fracas e efêmeras, em associações fortes e duráveis, pela mobilização de novas tropas. Se há de fato uma crítica que é desnecessária fazer à sociologia clássica é a de que ela não é suficientemente científica ou está muito longe da “realidade” social cotidiana. Ela o é suficientemente, ela é mesmo a mais crente das ciências, a mais ingênua, aquela que mais acredita na “objetividade”, na pureza, na necessidade de ser exterior. E é bem isso o que a impede de estudar as outras ciências. Quanto à sociologia prérrelativista, vista do quadro relativista, ela não tem nada de extraordinário. É um ofício como qualquer outro que escolhe outros temas e outras alianças. Ao seguir os atores sem nada acrescentá-los, deixando-os livres para fazer todo um mundo tão estranho quanto queiram, feito de aliados tão imprevisíveis quanto assim os atores o desejarem, ela obtém, localmente, uma certa objetividade. Isso não é um estado de espírito, uma virtude moral, mas um resultado prático; este é obviamente um quase-objeto obtido na e pela controvérsia: ela objeta e objeções lhes são feitas.[2]
Este resultado é obtido por qualquer método em particular? Não, as precauções metodológicas ocupam bastante os sociólogos sérios. Eles esperam, ao limitar o direito à fala, produzir uma explicação que seja, desse modo, mais credível. Esta estratégia, que é mesma de todas as disciplinas científicas, não é realmente necessária no âmbito relativista. Dado que os sociólogos não sabem nem mais nem menos do que os outros, isso lhes permite seguir os atores, o que também permite liberar o próprio sociólogo. Ele pode imputar causas, distribuir efeitos, constituir um quadro de referência tão livremente como qualquer um. O sociólogo relativista não se cala para falar. Pelo contrário, a inflação das precauções de método, como pode ser visto, por exemplo, em Cicourel, e de modo paranoico nos etnometodólogos, é sobretudo um indício de grande ingenuidade. A etnometodologia tem explicitamente por objetivo proteger o informante e nada impô-lo a priori; mas confessa que o sociólogo se crê capaz a posteriori, uma vez que todas essas precauções estejam tomadas, de fazer melhor do que o informante. Mas, antes como depois, o sociólogo não vai fazer melhor, ele fará ainda muitas vezes pior, em todo caso fará sempre outra coisa. Basta ler os etnometodólogos para se convencer: o claro fluído e emocionante discurso dos atores é constantemente interrompido pela prosa meticulosa, homogênea e previsível do analista cuidadoso. Acreditando se aproximar mais perto ainda do informante, eles, ao contrário, se afastam dele rapidamente, dado que se recusam a mesma liberdade que é dada aos ditos atores. Esse puritanismo é respeitável, mas ele pertence inteiramente ao quadro prérrelativista.
As precauções de método são úteis como um meio de aumentar a credibilidade, para produzir um discurso exterior sobre o outro e para servir de aliados “de peso” nos combates para performar o social. Como a sociologia relativista não procura a performar o social, este peso lhe é inútil. Consequentemente, ela não pode conferir a si nem mais nem menos liberdade que aos outros atores. À moral do “explicitamente-dito” se acrescenta uma regra de linguagem: falar, pelo menos, tão clara e tão livremente como o informante. Em vez de deliciosos espasmos de metalinguagem, a sociologia relativista só conhece linguagens. De um ponto de vista prático, o seu objetivo é bastante simples. Reconhecer-se-á a sociologia relativista pelo fato de que a prosa que envolve as citações dos informantes será, ao menos, tão boa, tão imprevisível e tão bem digitada e explícita quanto a das ditas citações. Como se pode ver, as pretensões dessa sociologia são as mais modestas.
Por que essa exigência de igualdade entre o sociólogo e o informante torna-se tão crucial? Simplesmente porque a igualdade cria condições de prova completamente diferentes das obtidas pela posição de exterioridade da sociologia prérrelativista. Para essa última, o valor de uma explicação repousa sobre a opinião dos outros colegas sociólogos, mas jamais sobre aquela dos informantes dos quais se deve, ao contrário, desconfiar a todo momento, a menos que, como em Touraine, o sociólogo não aceite retirar-lhes da obscuridade ou servir de consciência infeliz. Esta regra geral tem uma exceção significativa, exceção que, tempos atrás, causou a nossa revolta. Quando se trata de ciência ou tecnologia, convém respeitar integralmente a palavra do especialista que torna-se juiz do que o sociólogo propõe, e esse último nada pode adicionar à ciência, ele só pode preferir comentários ou apresentá-la de modo vulgar. Em ambos os casos, os privilégios do sociólogo ou aqueles do especialista, evidentes para a sociologia prérrelativista, se tornam exorbitantes uma vez passados para o quadro relativista. Dado que o sociólogo é um ator como os outros, ele pode muito bem propor a sua interpretação. O verdadeiro teste será convencer, não seus colegas, mas os outros atores, e em particular os informantes privilegiados. Essa exigência parece fraca desde que não se trate de ciência e de tecnologia; ela é máxima quando dessas últimas nos ocupamos.
A prova de verdade na sociologia relativista é definida pelo risco assumido pelo analista. Se ele se limita a repetir as posições de seus informantes, ele não corre qualquer risco, uma vez que endossa as decisões tomadas por eles. Ele ao menos faz turismo ao longo das redes que os outros prepararam para ele. É uma visita guiada, sem surpresa, e providenciada com antecedência. Mas, se o sociólogo interpreta e se põe acima de seus informantes, criando uma metalinguagem que eles não podem interromper, ele também não assume nenhum risco. Ele não luta contra seus colegas no interior de redes disciplinares; a violência dos combates nesses lugares é certamente muito grande, mas a luta é totalmente protegida (geralmente, aliás, o risco é ainda menor porque a interpretação é feita com poucos informantes, na sua ausência e sem falar com outros colegas além do pequeno grupo já convencido).
Sua dignidade, a sociologia relativista encontra quando opõe uma outra interpretação do que o informante diz e faz, e tenta convencê-lo sem afugentá-lo. Por exemplo, o sociólogo, falando com microbiologistas, não acredita no que eles dizem sobre a sua ciência, interpreta a microbiologia em seus próprios termos, resiste à controvérsia que essa redefinição suscita. É essa busca por uma fraternidade conflituosa com pessoas muito admiradas que fundou o projeto de uma antropologia da ciência: se eu nada conheço, isso não é uma razão para não entender o que fazem; eu quero entender o que eles fazem em meus termos e não que eles me absorvam nos termos deles; mas eu não quero me proteger de suas críticas alegando produzir uma metalinguagem. Suas denegações não provam que eu tenha razão, mas também não provam que eu esteja errado. O acordo dos atores não provam que eu esteja errado, mas também não provam que eu esteja certo. Negociemos termo a termo e passo a passo, sem abrir mão de qualquer coisa que eles tenham pego ou que tenham cedido. E isso, nós faremos como todos os outros atores, sem privilégio e sem inibição. De fato, a sociologia relativista tem um método: fazer qualquer coisa, desde que se construa o mecanismo experimental dessa negociação implacável entre aqueles que se afirmam analistas e aqueles a que talvez essa capacidade seja negada. O risco assumido é a única medida da verdade. Alguns vão achar que esta é uma medida bem fraca. Que eles a tentem, antes de tudo…
Conclusão
Os dois quadros aqui apresentados são ambos perfeitamente consistentes, mutuamente excludentes, e possuem cada um uma representação do outro: no quadro prérrelativista, a sociologia relativista é um absurdo; no quadro relativista, a sociologia séria não nos ensina grande coisa. Podemos distingui-los talvez pelo tipo de fenômenos estudados. Em velocidade baixa, em temperatura ambiente, para fenômenos visíveis a olho nu e, em grande parte, já identificados pelos atores, a sociologia prérrelativista fica perfeitamente à vontade e não apresenta, é preciso insistir nesse ponto, nenhuma dificuldade em princípio, embora, na prática, ela tenha sempre diante dela inúmeras pequenas dificuldades para resolver. Nós não temos nenhuma querela com ela, a não ser quando ela se crê muitas vezes “mais forte” do que seus informantes, ao passo que ela poderia, deixando de acreditar na sua superioridade, se crer, ao menos, igual.
Em alta velocidade, em alta temperatura, com fenômenos invisíveis a olho nu e que variam muito rapidamente, com associações cambiantes ainda frágeis e novas, essa sociologia prérrelativista é, no entanto, totalmente ineficaz. Sejamos claros. É muito útil e extremamente eficaz para constituir o social e refrigerar ou aquecer algumas alianças. Como instrumento prático, ela serve aos atores para que eles definam a sociedade, isto é, para realizá-la. Mas como análise dessas construções, ela permanece tanto mais cega quanto ela se crê clarividente. Bom instrumento de disciplina, de contagem, de gestão, de pesquisa, a sociologia não tem nenhuma “função emancipatória”. O que é pesado e sério nela, é o que ela mais despreza: seus arquivos, seus questionários, suas estatísticas; quanto às “explicações” ou “interpretações” de que ela tanto se orgulha, “todo mundo pode fazer o mesmo”, como bem diz o senso comum. Não há nenhuma razão para preferir o quadro relativista ao outro a não ser que o analista escolha como objeto de estudo a construção de fatos científicos ou de artefatos tecnológicos, ou seja, a objetividade. Nós não estamos dizendo que a sociologia prérrelativista falsa, nós simplesmente sustentamos que ela não pode desenvolver uma sociologia da ciência e da tecnologia, e ainda assim sobreviver ao choque. Deve-se, portanto, como indicado na introdução, seja abandonar esses objetos como ela sempre fez desde o seu nascimento ou fazer as transformações que indicamos. Essas mudanças parecerão a muitos como uma traição do seu projeto e de sua história. Nós acreditamos, mas isso é uma opinião pessoal, que ela é a sua continuação. Mais do que isso, acreditamos que o principal obstáculo para o desenvolvimento da sociologia, mesmo clássica, é a sua timidez frente à ciência e à tecnologia, impasse esse que ela produziu a respeito do que determina, ao mesmo tempo, o mundo natural e o mundo social.
Ao utilizar a expressão relatividade, nós evidentemente assumimos um risco, o de sermos confundidos com a modificação que Einstein fez a física passar. Há entre as duas uma diferença essencial. O termo “relatividade” expressa a razão de ser da física de Einstein: manter as equivalências, custe o que custar. Trata-se aí, pois, de salvar a universalidade das leis da Natureza que devem ser verdadeiras, independentemente dos sistemas de referência dos observadores. Para alcançar este resultado, Einstein foi forçado a transformar o espaço em espaço-tempo, e a dobrar esse último. Foi a esse preço – que não é caro, apesar do que se diz – que ele pôde manter a equivalência das observações: dois pontos confusos são e permanecem confusos qualquer que seja o olho que os olha. Admitir a pluralidade de espaços- tempos, perder no caminho a insuperável distinção entre massas e energias para manter equivalências mínimas pelas quais a estabilidade do cosmos é garantida, tal é o projeto de Einstein. Ora, o quadro analítico que batizamos com o mesmo nome, “relatividade”, quer manter a falta de equivalência de princípio dos observadores. A equivalência é o resultado de um trabalho e não o ponto de partida da análise. Partir de equivalências é, para Einstein, o postulado do qual decorrem as transformações que permitem passar, como ele diz, de “um molusco de referência” a outro. Por outro lado, as “traduções de Serres” mostram as equivalências em vias de construção: como unificar os observadores, como passar por vezes de modo direto e previsível de um ponto a outro. A escolha é simples: se você quiser manter esta equivalência mínima e transportar por todos os lugares dois pontos superpostos que permanecerão superpostos, então pegue as transformações de Lorentz e você vai viajar por todos os lugares confortavelmente, dos buracos negros aos infinitamente pequenos. Se você não quiser manter essa equivalência e concorda em ver se transformar, ao longo do caminho, o que você transporta, então pegue as traduções de Serres. A viagem vai ser um pouco desconfortável porque os caminhos ainda não existem! Nós testemunhamos a criação dessas rotas. Há tantas diferenças entre os dois projetos quanto há entre saber dirigir um carro e saber como construir uma estrada.
O leitor entende porque, depois de usá-la, afastamo-nos da expressão “relatividade”. O projeto metrológico de Einstein é um estudo de caso privilegiado para a sociologia relativista, uma vez que é um dos estratagemas mais poderosos já imaginados para estabelecer e estabilizar observações elementares e instrumentos de medição. Não há nenhuma razão para que o sociólogo não faça uma sociologia da teoria da relatividade, para que ele não ofereça sua interpretação e não pretenda confrontá-la com a crítica dos físicos. É mesmo um bom exemplo do risco, acima mencionado como única medida de verdade. É até possível dizer que, no quadro relativista, fazer uma sociologia de uma ciência como a física, onde os sistemas de referência, de equivalência, de transformações estão sempre em questão, ou de uma ciência como a química, com seus elementos, suas combinações, suas dissociações, suas transformações, é um problema mais fácil de resolver, mais “suave” do que conseguir explicar como uma intenção de voto pode ser correlacionada com a pertença a um grupo social. Esse último problema é realmente difícil de resolver e realmente “duro”. O leitor entende, enfim, porque nós escolhemos o estudo da ciência e da tecnologia no qual, por definição, são sempre recompostas, redefinidas, reassociadas as entidades sociais ou naturais através das quais os atores povoam o mundo. Isto não é para impressionar aqueles que estudam os guetos, o voto popular, a socialização de jovens meninas, etc. Mas sim, nós estudamos as ciências e as tecnologias porque elas são muito mais fáceis do que o resto dos objetos da sociologia clássica…
Notas
[1] Nota do tradutor: O sexto ano do sistema escolar francês correspondia, em 1983, na época em que foi escrito, à atual sexta série do sistema escolar brasileiro (antiga quinta série). E é importante dizer que, no sistema francês, ir para a sexta série é uma transição importante, pois nela normalmente o aluno muda de escola e de bairro no qual estuda. Existe uma mudança de rotina, estrutura de estudos, que é tida como um rito de passagem importante, que definirá o futuro do aluno – por exemplo, se ele vai chegar ao liceu clássico ou um liceu com perfil mais técnico.
[2] Nota do tradutor: a frase francesa original é “elle objecte et on lui objecte”. No português temos os substantivos “objeto” e “objeção”, mas não há o verbo “objetar”. Nessa passagem, Latour usa esse verbo no francês usando de modo proposital e irônico um duplo sentido, cada qual relacionado aos substantivos mencionados. Objetar é utilizado tanto no sentido de produzir objetos quanto no de criar objeções. Latour quer enfatizar que em uma controvérsia tanto objetos são criados quanto objeções são produzidas – e assim o mundo tanto se realiza (objeta, no sentido de criar objetos) quanto se desrealiza (objeta, no sentido de produzir objeções) a partir de seus desdobramentos imanentes.
Boa noite, venho informar que há um probleminha com a versão em pdf da parte 2: nele se encontra a parte 1. Poderiam substituir o arquivo, por favor? Muito Obrigado :*
Boa noite, Denise. O pdf no post contém tanto a parte 1 quanto a parte 2. Decidimos colocar o pdf do texto na íntegra. Abraços!