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“A sociologia relacional como uma forma de vida”, por Frédéric Vandenberghe

In memoriam François Dépelteau (1963-2018)

 NetworkFonte: http://www.insightfromdata.com/_wsn/page16.html

Por Frédéric Vandenberghe
Tradução: Diogo Silva Corrêa

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A sociologia relacional (RS) é um conceito, uma rede e uma bandeira. Embora seja difícil imaginar uma sociologia que não seja relacional, existem gradientes. Ainda que existam múltiplas maneiras de se definir o conceito de relação e o que se entende por sociologia, é muito claro que Weber e Durkheim são menos relacionais do que Marx, Simmel ou Tarde. O interacionismo simbólico é mais relacional do que o funcionalismo, mas um pouco menos do que o pragmatismo, a análise de rede ou a teoria do ator-rede. Como estruturalista, Bourdieu é mais relacional do que Habermas, mas da mesma forma que não há sociologia sem socius, não há comunicação sem alter. É preciso mais de dois para um tango, assim como o é também para comunicar, interagir e formar uma espécie de comunidade evanescente. Em sua sociologia formal, Georg Simmel (1992: 101-121) explorou a diferença entre formações sociais diádicas e triádicas. Ele não considerou suficientemente, contudo, o fato de que mesmo conexões entre duas pessoas sempre pressupõem um terceiro elemento, a saber, o éter, o meio, o canal, a cultura, a linguagem, o espírito que relaciona ambos os elementos em uma formação social. O terceiro elemento é, ao mesmo tempo, um pressuposto e um produto da ação recíproca. Linguisticamente, o terceiro elemento aparece como o verbo que conecta dois sujeitos em uma sentença adequadamente formada. Pierpaolo Donati, que vem desenvolvendo sua própria versão da sociologia relacional na Itália desde os anos 1980, usa dois verbos diferentes em latim (referre/referir e religar/conectar) para se referir respectivamente à dimensão subjetiva e objetiva do terceiro elemento que interconecta os sujeitos: a ação recíproca conecta ou estruturalmente liga os elementos através da consciência intencional mútua de uma referência simbólica – “o refero weberiano” – e essa consciência produz uma conexão ou vínculo objetivo entre eles – “o religo durkheimiano” (Donati, 2011: 124; Donati e Archer, 2015: 26-28). O resultado da ação intencional recíproca é a relação em si como uma nova realidade objetiva, uma realidade emergente que existe entre os sujeitos. Sem eles, ela não existiria. Ela transcende os sujeitos enquanto uma realidade emergente e um bem relacional que precisa ser nutrido para não se deteriorar.

Até aqui falamos sobre sujeitos, mas eles próprios são o resultado de relações – relações com os outros, com o mundo e consigo mesmos. Sem pais, sem corpo, sem consciência, sem mundo, não estaríamos aqui. A qualidade das relações que nos conectam ao mundo faz de nós quem somos, para melhor ou para pior. Todos sabemos a diferença entre as relações alienadas e as expressivas com o mundo, entre as relações estratégicas e as comunicativas com os outros, entre as relações cruéis ​​e as solidárias com o self. Às vezes o mundo é apenas mudo, ou até mesmo ameaçador, e somos indiferentes a ele. Em outras ocasiões, estamos em sintonia e nos sentimos carregados pelas relações que nos conectam ao mundo. Graças a Bruno Latour, sabemos agora, nas ciências humanas, que as interrelações entre humanos são inseparáveis ​​das relações entre não-humanos. Não há intersubjetividade sem interobjetividade. Para ressaltar que os relata não precisam ser indivíduos e que elas também podem ser coletivos, a análise de redes introduziu o conceito de nós (nodes). As coisas ficam ainda mais complicadas quando não nos limitamos a introduzir a relação como um terceiro elemento entre as relata, mas concebemos as formações sociais como complexos emergentes e entrelaçados de relações de enésima ordem: nesta perspectiva hiperrelacional, as sociedades são formadas por interações entre pessoas, coisas ou nós (relações de primeira ordem) que, juntas, formam redes com geometrias variáveis ​​(relações de segunda ordem: relações entre relações) que se compõem estruturas, sistemas ou campos (relações de terceira ordem: relações entre relações de relações) que condicionam as ações, interações, redes e estruturas e podem ser analisadas, descritas e observadas (ou não) por um observador (de segunda ordem) que analisa, descreve e observa as práticas que constituem o mundo.

A definição de sociologia relacional como uma abordagem compreensiva que “no seu sentido mais amplo, investiga a vida social através do estudo das relações sociais” (Powell e Dépelteau, 2013: 1) repousa sobre o tautológico e é, portanto, quase vazia. Para entender o que é a sociologia relacional, é preciso defini-la relacionalmente em sua oposição a abordagens categóricas, essencialistas, substancialistas, atomistas e fixistas, tais como a escolha racional, o funcionalismo normativo e a análise positivista de variáveis, que concebem o mundo como um mero conglomerado de entidades independentes e relacionadas de forma contingente. Em seu “Manifesto para uma sociologia relacional”, que é um dos documentos fundadores do movimento acadêmico da SR (sociologia relacional), Mustafa Emirbayer apresenta uma difícil escolha: “A questão-chave enfrentada pelos sociólogos nos dias de hoje não é aquela entre ‘material vs ideal’, ‘estrutura vs agência’, ‘indivíduo vs sociedade’ ou qualquer outro dualismo tão usualmente observado; antes, é a escolha entre substancialismo e relacionismo” (Emirbayer, 1997: 282). Para os sociólogos relacionais, o mundo não é “a totalidade das coisas, fatos e estados de coisas”, para usar a linguagem do Tractatus Logico-Filosoficus de Wittgenstein. Como uma Weltanschauung (visão de mundo) que sistematicamente interrelaciona entidades em totalidades complexas, dinâmicas e em permanente evolução de seres interdependentes, a sociologia relacional concebe o mundo como um sistema aberto de relações, processos e práticas. Algumas abordagens, como o realismo crítico, a sociologia crítica de Bourdieu, a teoria de sistemas e a análise de redes são mais estruturais e concentram-se mais nas relações, enquanto outras como o pragmatismo, a teoria ator-rede e outras inspiradas por Tarde e Deleuze, nos processos e práticas. Dependendo do nível e da unidade de análise, as relações podem ser vistas como interações, redes, campos, estruturas, sistemas ou mesmo sistemas mundiais (Crossley, 2011: 22-45).

A sociologia relacional pode ter como objetivo transcender as dicotomias; estas inevitavelmente voltam num outro nível. Se usarmos novas dicotomias, como as que existem entre substancialismo e relacionismo, para transcender as mais antigas, como agência e estrutura, elas podem muito bem fazer sua “re-entrada” e “fraturar” o novo campo de dentro (Abbott, 2001: 3 -33). Dentro da própria sociologia relacional, a antiga oposição entre agência e estrutura fez seu reaparecimento na cisão entre realistas críticos, como Archer, Donati e Porpora, que acreditam em emergências, e os transacionalistas, como Dépelteau, Kivinen e Piiroinen, que trabalham com ontologias planas. Embora a versão da sociologia relacional de Emirbayer abranja a lacuna entre a sociologia crítica de Bourdieu e o pragmatismo através via a análise de rede de Harrison Whyte, Donati produziu um contra-manifesto por uma sociologia relacional realista crítica com uma tonalidade funcionalista (Donati, 2015). Apesar dessas tensões entre emergentistas e processualistas, realistas e pragmatistas, relacionistas e transacionistas, deve-se notar, no entanto, que todos os sociólogos relacionais estão unidos por uma crença comum na interdependência dos seres humanos e pelo compromisso promoção consciente das relações sociais que nutrem valores comuns. O apelo de Dépelteau (2018) por uma democracia ativa, interdependente e relacional pode ser considerado uma plataforma axiológica da sociologia relacional. Em tempos como o nosso em que todos nos tornamos testemunhas involuntárias da contínua degradação do decoro cívico e do acelerado desfazimento das relações sociais que mantêm a sociedade unida, a posição axiológica toma inevitavelmente uma forma política. Como diz Hartmut Rosa em sua sociologia das relações-mundo, que também é uma contribuição para uma sociologia da boa vida: “Outra relação com o mundo é possível” (Rosa, 2016: 56 e 541).

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Eu escrevi este pequeno texto em diálogo com o meu amigo François Dépelteau, que não está mais aqui. Ele morreu em paz no dia 4 de agosto de 2018 de câncer, em Campinas. Ele era um homem decente. Agradeço-lhe por sua generosidade, sua espontaneidade e sua informalidade. Nós compartilhávamos uma língua (francês), dois países (Canadá e Brasil) e uma visão de mundo (Convivialismo). Sem ele, a sociologia relacional não teria sido tão relacional e a rede que ele unia só teria sido uma rede acadêmica e não uma sociedade de amigos. Através de seu casamento com Tatiana Landini e seu filho Daniel, François tinha uma forte ligação com o Brasil. Nós nos encontramos pela primeira vez no Rio de Janeiro em 2015. Juntos, organizamos uma mesa redonda sobre sociologia relacional na Anpocs em 2016. François, Gabriel Cohn e eu apresentamos papers em Caxambu. Todos ficamos surpresos com o interesse pela SR. Foi assim que o projeto do nosso livro Sociologia relacional: Uma DR teórica (no prelo) começou. François foi professor visitante no Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina em 2018. Ele estava feliz lá e planejava ficar mais um ano. Ele ministrou a disciplina “The Relational Approach and its Theories in Sociology”e pretendia ministrar uma outra disciplina (no segundo semestre) com foco em métodos de aplicação dessa abordagem. Nesse período, ele criou uma rede de discussões online entre pesquisadores e estava articulando uma reunião sobre Sociologia Relacional no âmbito do Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia a ser realizada no próximo ano (2019), em Florianopolis, além da criação  de uma revista internacional sobre o tema. Quando ele me informou no final de junho que estava sofrendo de um segundo câncer, com múltiplos tumores, e que tinha seis semanas de vida, eu imediatamente decidi organizar uma conferência para ele em Florianópolis. Parecia a coisa certa a fazer. Propus um título: A sociologia relacional como forma de vida, e a data (15 e 16 de agosto). Entrei em contato com Marcia Grisotti, que trabalhou com François em Florianópolis, e convidamos os amigos que escreveram um capítulo do livro para a conferência (Gabriel Cohn, Adelia Miglievitch, Sérgio Tavolaro, Fabrício Neves, Gabriel Peters, Raquel Weiss, Carlos Eduardo Sell, Lucas Faial). Ainda que não tivéssemos certeza de que encontraríamos os recursos financeiros para a viagem, todos aceitaram graciosamente o nosso convite. Obrigado por isso, meus amigos. François estava trabalhando em um manuscrito e nos enviou o título de seu paper: “Sociologia Processual-Relacional com … Amor”. Nós esperávamos que ele conseguisse apresentá-lo. Ele também. Até o fim, trabalhamos com a hipótese de que ele não poderia vir por causa de doença. Mas não com o seu falecimento. Nosso único consolo é que a ideia de uma última conferência foi uma fonte de alegria e esperança para ele. A conferência que organizamos para ele prosseguirá, lamentavelmente sem ele, mas como uma homenagem, um agradecimento e um adeus final ao homem que colocou a sociologia relacional na agenda da sociologia contemporânea.

Aqui segue um programa provisório:

Frédéric Vandenberghe – Sociologia relacional: quem precisa de um manual?

Gabriel Cohn – Relações all the way down?

Sérgio Tavolaro – Imagens contra-hegemônicas da modernidade: contribuições para uma visada sociológica relacional

Adelia Miglievich – Notas sobre “relacional” no marxismo humanista de Raymond Williams

Raquel Weiss – A teoria durkheimiana pelo avesso: contribuições para a sociologia relacional

Carlos Eduardo Sell – Max Weber: clássico da sociologia relacional?

Gabriel Peters – O irreal é relacional: estranhamento do mundo, dissolução de si e a construção social da irrealidade na esquizofrenia

Márcia Grisotti – Saúde-Doença como processo e experiência: contribuições da sociologia relacional

Lucas Faial – Uma sociologia relativa ao morrer

Referências

Abbott, A. (2001): Chaos of Disciplines. Chicago: Chicago University Press.

Archer, M. and Donati, P. (2015): The Relational Subject. Cambridge: Cambridge University Press.

Crossley, N. (2011): Towards Relational Sociology. London: Routledge.

Dépelteau, F. (no prelo): “Comentários introdutórios sobre sociologia processual-relacional, interdepêndencia e democracia”, in Dépelteau, F. e Vandenberghe, F. (org.): Sociologia relacional. Uma DR teórica. São Paulo: Annablume.

Donati, P. (2011): Relational Sociology. A New Paradigm for the Social Sciences. London: Routledge.

Donati, P. (2015): “Manifesto for a Critical Realist Relational Sociology”, International Review of Sociology, 25, 1, pp. 86-109.

Emirbayer, M. (1997): “Manifesto for a Relational Sociology”, American Journal of Sociology, 103, 2, pp. 281-317.

Powell, C. and Dépelteau, F. (2013): Conceptualizing Relational Sociology: Ontological and Theoretical Issues. New York: Palgrave.

Rosa, H. (2016): Resonanz. Eine Soziologie der Weltbeziehung. Berlin : Suhrkamp.

Simmel, G. (1992): “Die quantitative Bestimmtheit der Gruppe”, pp. 63-159 in Soziologie. Untersuchungen uber die formen der Vergesellschaftung (GSG 11). Frankurt am Main: Suhrkamp.

1 comentário em ““A sociologia relacional como uma forma de vida”, por Frédéric Vandenberghe

  1. Paulo Henrique Martins

    Reflexões esclarecedoras sobre a sociologia relacional feita de forma sintética e objetiva. Uma homenagem igualmente comovente.

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