Indicações de Gabriel Peters
ADORNO, Theodor. Notas de literatura I.Apresentação e Tradução: Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003.
Abrindo esse volume magro está o clássico “O ensaio como forma”. Para ser sincero, com o perdão do sacrilégio, considero esse texto um tantinho superestimado, adornado que está pelos traços em que o genial humanista se torna cansativo, como a propensão lamurienta e a rabugice mandarinesca (por exemplo, nas imerecidas estocadas dirigidas ao meu querido Stefan Zweig). Mas a erudição de Theodor não é mero adorno, como revelam duas joias desse livro: uma devotada a Henrich Heine, outra a Paul Valéry (aproveito o ensejo para recomendar qualquer coisa em prosa desses dois poetas).
BERGER, Peter. Redeeming laughter: the comic dimension of human experience. New York/Berlin: Walter de Gruyter, 1997.
Vale a pena explicar a graça do que é engraçado? O deprimente anticlímax das explicações de piada a não entendedores mostra que, para além do desafio cognitivo stricto sensu, a tarefa corre o risco de se assemelhar à postura estraga-prazeres do xarope que corrige erros gramaticais em cartas de amor. Temores aplacados: esse livro da maturidade do sociólogo doublé de teólogo Peter Berger combina a sociologia do humor, com notável desenvoltura, a uma sociologia cômica no melhor sentido possível da palavra. Quanto à sua questionabilíssima interpretação teológica do humor na última parte do livro, ela é sensível e elucidativa mesmo para aqueles que, como eu, não partilham lhufas das visões religiosas desse despretensioso sábio austríaco, cujo bom humor fará falta.
BOURDIEU, Pierre. Qualquer livro. Qualquer cidade: qualquer editora, qualquer ano.
Porque era ele…
DANTO, A.C. As ideias de Sartre. São Paulo: Cultrix, 1975.
O dilema é conhecido, podendo ser vestido em roupa ideal-típica. A filosofia analítica cultiva o rigor e a clareza, mas aplica estas virtudes cognitivas a questões lógico-linguísticas que deixam intactas nossas interrogações existenciais mais aflitivas, como o sentido da vida e da morte ou a posição do ser humano no cosmos. A filosofia continental enfrenta tais interrogações, juntamente com uma atenção às forças mais ferais e inconfessáveis que habitam a psique do animal humano (desejo, poder, desejo do poder, poder do desejo etc.), mas o faz numa (meta)linguagem abstrusa que, suspeitam alguns, enfeitiça mais do que convence. No entanto, ponha um filósofo analítico para apresentar um filósofo continental e terá um ótimo arranjo: uma reflexão sobre as questões que realmente importam, no estilo límpido da clareza “anglo-saxã”. O livro de Danto é um bom exemplo de como se faz.
ELSTER, Jon. Explaining social behavior. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
O homem tem uma gigantesca má vontade com a teoria social contemporânea. Como outras figuras da chamada “sociologia analítica”, Elster também exibe uma tendência irritante a sugerir que, fora de abordagens como a dele e a de sua turma, o que resta nas ciências sociais é somente a terra arrasada por “bullshit” (palavra que, desde Harry Frankfurt, virou conceito técnico da filosofia). Ainda assim, em um livro que já o mostra bastante ciente dos limites da teoria da escolha racional, Elster dá uma lição inteligentíssima atrás da outra sobre a psicologia humana, especialmente no que toca às emoções. Melhor ainda, o autor dialoga com um tesouro de insights sobre o bípede implume formulados ao longo de séculos de cultura humanística, de Aristóteles a Proust, passando pelos moralistas franceses e Jane Austen.
ERICSSON, Anders et al. (org.). The Cambridge Handbook of Expertise and Expert Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
Anders Ericsson é o maior dos experts sobre a expertise, tema acerca do qual desenvolveu um programa de pesquisa de toda uma vida (que continua). Suas investigações sobre instrumentistas musicais, jogadores de xadrez, atletas de corrida, campeões de memória e outros tantos exemplares de “performance perita” (expert performance) oferecem um vasto acervo de evidências empíricas do papel decisivo do treinamento orientado no cultivo de habilidades excepcionais, tão comumente explicadas pela referência preguiçosa a talentos inatos e dons naturais. (Não, não se trata de afirmar que esses últimos não existem, mas que o apelo a eles tende a ser a superestimado, com a importância das competências adquiridas correspondentemente subestimada, na explicação de habilidades extraordinárias nos domínios mais diversos da atividade humana). Para além de qualquer discurso vago sobre o caráter plástico e maleável das habilidades humanas, o cultivo de uma sensibilidade verdadeiramente sociológica acerca das fontes do “talento” e mesmo da “genialidade” deve mais a este psicólogo do que a qualquer sociólogo de carteirinha.
FRANKL, Viktor. Man’s search for meaning. London: Ringer, 2008.
As palavras não chegaram a faltar, mas me pareceram indignas para exprimir meu amor por esse livro e minha gratidão ao seu autor, que ainda inventou de aparecer na minha vida no momento exato em que eu precisava de sua mensagem.
GUSMÃO, Luís. O fetichismo do conceito. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
A irreverência com que o autor trata certas figuras centrais na teoria social contemporânea valeu a este livro, em certas paragens, a reputação de antiteórico. Como tenho um apreço imenso e simultâneo pela teoria social e por Luís de Gusmão, amigo fiel e mestre heterodoxo, resolvi lê-lo muito mais como um conjunto de alertas valiosos contra a tentação do dedutivismo teórico: a ideia de que modelos analíticos do mundo social dispensam o mergulho na variedade bagunçada do mundo social empírico. De resto, escondida sob a pars destruens deste livro, passível de ser erroneamente interpretada como mais um ataque global às ciências humanas, encontra-se uma mensagem das mais construtivas para as ditas cujas. Se as ciências sociais devem recorrer a “bases teóricas”, é urgente que essas bases incluam não apenas, digamos, Giddens e Bourdieu (autores por quem nutro, claro, uma admiração certamente maior do aquela que lhes devota Gusmão), mas também os valiosos insights sobre a experiência humana e a vida social em Sêneca, Montaigne, Flaubert, George Eliot e congêneres.
No mais, quem acompanhou as aulas de Gusmão na UnB bem sabe que ele pode escrever mais uma dúzia de livros tão bons quanto este.
HOFSTADTER, Richard. The paranoid style in American politics and other essays. New York: Vintage, 1967.
Recomendo como curiosidade histórica sobre outra sociedade em outro tempo. Nada a ver com o Brasil contemporâneo.
KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
Uma das gratificações intelectuais inerentes ao trato com a teoria social, suspeito, é o fato de que seus objetos estão convenientemente fixados em um reino de abstrações que são, se não eternas, pelo menos anormalmente duráveis. Em contraste com as realidades móveis enfrentadas pela análise de conjuntura, os objetos congelados da teoria social parecem nos expor menos ao desmentido. No entanto, como já lembraram colegas politizados vezes sem conta, mesmo quando você foge da conjuntura, a conjuntura termina chegando até você, por vezes com o estardalhaço de uma bigorna lançada sobre sua cabeça.
Eis as horas em que podemos ter um apreço renovado pelos jornalistas empenhados no diagnóstico do presente, sobretudo quando eles mantêm uma antena sensível ao conhecimento social especializado e uma fidelidade, tão realista quanto possível, ao antigo modelo do jornalista-beletrista. É preciso lembrar que os traços jornalísticos de raciocínio e estilo que os hábitos acadêmicos tenderão a considerar como insatisfatórios, tais como “superficialidade” e “vocabulário frouxo”, são a contraparte inevitável do esforço em apreender tendências sócio-históricas difíceis de discernir, mesmo quando estamos sendo implacavelmente arrastados por elas (na direção do abismo?).
Michico Kakutani, jornalista e crítica literária do New York Times até ontem, não o diz, mas a problemática do seu livro pode ser formulada em termos durkheimianos. Como ensinou o mestre n’As formas elementares da vida religiosa, a convivência social relativamente pacífica e organizada depende não somente de um mínimo de consenso moral, mas também de um mínimo de consenso cognitivo. Na era da pós-verdade e das bolhas informacionais, é precisamente um senso básico de realidade compartilhada que vem entrando com colapso. Uma atitude blasé em relação à verdade, sem a qual um candidato com um volume tão extraordinário de mentiras demonstráveis e documentadas como Trump não poderia ter sido eleito, está agora longe de ser apanágio exclusivo de um punhado de acadêmicos da esquerda “pós-moderna”. A distinção entre fato e ficção deu lugar, no discurso de uma fatia importante da direita, à impagável noção de “fatos alternativos”, no dizer de Kellyane Conway, assessora de Trump. E, nesse bojo, entram também a exploração da raiva como emoção política, bem como o estilo paranoide e conspiratorial de interpretação do mundo, os quais outrora tanto irritavam os críticos liberais da esquerda. Misturados no liquidificador, os ingredientes resultam em bebidas indigestas como negacionismo climático, movimentos antivacina e coisas que tais.
LAMOTT, Anne. Bird by bird: reflections on writing and life. New York: Anchor Books, 1995.
Esse livro é um tesouro. Será tema, qualquer dia, de uma coluna do Tio Agonia.
STANLEY, Jason. How fascism works. New York: Random House, 2017.
O fascismo tornou-se uma força transnacional? Será que o termo tem sido utilizado de modo leviano na referência a regimes de extrema direita ou “nacional-populistas” como os que chegaram ao poder na Polônia, na Turquia, na Hungria e no Brasil? Sem negar os perigos de que o termo seja utilizado de maneira analiticamente leviana e politicamente frouxa, Stanley nos lembra, a cada passo, que esta preocupação conceitual frequentemente nos empurra para um erro de sentido oposto (e de consequências bem mais catastróficas): o da normalização. Uma lição comum nos estudos históricos dos horrores fascistas ao longo do século XX inclui, com efeito, processos graduais em que, para grande parte da população, coisas antes tidas por intoleráveis (p.ex., o elogio público a um torturador que estuprou uma mulher usando fios desencapados) passam a toleráveis e, daí, para normais. Como montículos de neve que, pouco significantes em si mesmos, se acumulam para formar uma devastadora avalanche, o avanço da barbárie não se faz de um salto, mas mediante um crescendo de atos cada vez mais audaciosos – recomendadíssimos a esse respeito, aliás, estão os diários de Victor Klemperer sobre o período nazista. Visto sob essa lente, o livro de Stanley é um alerta dos mais importantes, sobretudo como exame da gramática do discurso fascista. Para quem desconhecia, em ampla medida, o que já vinha acontecendo na Polônia, na Hungria ou na Turquia, as similaridades entre as táticas discursivas de Orbán ou Erdogan e aquelas da campanha do Bozo são impressionantes :a reescrita da história, a geração de pânicos sexuais, a interpretação paranoide e conspiratorial das ameaças contemporâneas à “civilização cristã” e tutti quanti. Nem todo discurso fascista se traduz em táticas fascistas de tomada do poder, e nem todo governo que conquista o poder com táticas fascistas consegue instaurar um regime fascista. Mas tais transições dependem de forças e contraforças históricas particulares, incluindo nosso compromisso antieufemista, orwelliano no bom sentido da palavra, de chamar as coisas pelo seu nome.
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