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Irreduções (Parte 1), por Bruno Latour

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Fonte: https://larvalsubjects.wordpress.com/2013/05/15/latours-principle-of-irreduction/

Por Bruno Latour
Tradução: Lucas Faial Soneghet

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*O texto a seguir contém a tradução da Introdução e parte do Capítulo 1 da segunda parte do livro “The Pausterization of France”, intitulada Irreductions. Este é o primeiro post numa série.

Introdução:

Estudos sobre ciência e sociedade, como esse sobre a pasteurização da França, sempre são lidos com certo ceticismo. Os críticos insistem que há algo mais na ciência, algo que escapa a explicação social. Depois de topar com esse ceticismo por anos, percebi que ele não estava enraizado numa falta de estudos empíricos (embora esta falta possa ser parcialmente responsável), mas vinha de argumentos filosóficos sobre conhecimento e poder que eram muito mais profundos. Então, sabendo que estudos empíricos não chegariam nem a arranhar a superfície das crenças sobre a ciência, decidi sair do empírico e, como Descartes nos aconselhou, passar algumas horas do ano praticando filosofia. Fazendo isso, desenterrei rapidamente o que me pareceu ser o pressuposto fundamental daqueles que rejeitam explicações “sociais” da ciência. O pressuposto é de que a força é de um tipo diferente da razão; o certo nunca pode ser reduzido ao forte. Todas as teorias do conhecimento são baseadas nesse postulado. Enquanto este for mantido, todos os estudos sociais da ciência serão vistos como reducionistas e serão acusados de ignorar os traços mais importantes da ciência. Embora, como foi com os postulados sobre linhas paralelas na geometria euclidiana, parecesse absurdo negar essa pressuposição, decidi ver como seriam o poder e o conhecimento se não fosse feita distinção entre força e razão. O céu cairia sobre nossas cabeças? Será que nos veríamos incapazes de fazer justiça para a ciência? Estaríamos aprovando uma imoralidade? Ou seríamos levados em direção a uma imagem irreducionista da ciência e da sociedade?

Essa mudança de uma filosofia reducionista para uma irreducionista se parece muito com o que aconteceu com Robinson Crusoé quando ele finalmente conheceu Sexta-Feira. Estou me referindo não à história de Defoe, mas à versão original do mito que nos foi dada por Tournier (1967/1972). A história de Tournier começa igual a de Defoe, mas no meio do enredo, Sexta-Feira explode o cartucho de pólvora por descuido e Robinson se encontra tão nu quanto estava no seu primeiro dia na ilha. Por um momento, ele considera reconstruir sua paliçada, suas regras e suas medidas disciplinares. Então decide seguir Sexta-feira e descobre que ele vive numa ilha totalmente diferente. Sexta-Feira vive como um selvagem preguiçoso? Não, porque selvageria e preguiça existem somente em contraste com a ordem imposta na ilha por Crusoé. Crusoé acha que sabe a origem da ordem: a Bíblia, contagem do tempo, disciplina, registro de terras e livros de contabilidade. Mas Sexta-Feira não está tão seguro sobre o que é forte e o que é ordeiro. Crusoé acha que sabe distinguir entre força e razão. Como único ser na sua ilha, ele chora de solidão, enquanto Sexta-Feira vive entre rivais, aliados, traidores, amigos, confidentes, uma massa de irmãos e companheiros, dentre os quais somente um carrega o nome de homem. Crusoé sente só um tipo de força, enquanto Sexta-Feira tem muitas outras escondidas na manga. Em vez de começar meu tratado filosófico com uma revolução copernicana – reduzindo a ilha a vontade de Crusoé – eu começo do ponto de vista de Sexta-Feira e ponho as coisas em liberdade e irreduzidas.

Assim como Sexta-Feira, nesse ponto de vista eu não preciso de ideias a-priori sobre o que faz a força, pois esta vem em todas as formas e tamanhos. Algumas forças são más e costumavam estar associadas a magia e ao diabo. Outras são aristotélicas e procuram realizar a forma que está dentro delas. Há forças malthusianas e darwinianas que sempre querem mais do mesmo e invadiriam o mundo com seu crescimento exponencial se outras forças igualmente gananciosas não as impedissem. Há forças newtonianas que sempre querem a mesma coisa e viajam na mesma trajetória enquanto forem deixadas em paz. Há forças freudianas que não sabem o que desejam – deslocando, substituindo, metamorfoseando ou paralisando a si mesmas de acordo com o necessário. Há forças nietzscheanas, teimosas, mas plásticas, forças de vontade dando forma a si mesmas. E todas essas forças juntas buscam hegemonia aumentando, reduzindo ou assimilando umas às outras. É por isso que a selva, com seu entrelace de forças, cresce e se espalha pela ilha.

Para entender esse argumento, nós não devemos decidir a-priori qual será o estado de forças de antemão ou o que contará como uma força. Se a palavra “força” parece muito mecânica ou belicosa, então podemos falar de fraqueza. É por ignorarmos o que vai resistir e o que não vai resistir, que devemos tocar e desmoronar, apalpar, acariciar e dobrar, sem saber o que vai ceder, reforçar, enfraquecer ou desdobrar como uma mola a nosso toque. Mas já que todos brincamos[1] com campos de força e fraqueza diferentes, nós não sabemos o estado da força, e essa ignorância pode ser a única coisa que temos em comum.

Uma pessoa, por exemplo, gosta de brincar com feridas. Ele é excelente na tarefa de seguir lacerações até o ponto onde estas resistem e usa o categute embaixo do microscópio com toda sua habilidade para costurar as bordas. Outra pessoa gosta do desafio da batalha. Ele nunca sabe de antemão se o front vai enfraquecer e ceder. Ele gosta de reforça-lo de uma só vez despachando novas tropas. Ele gosta de ver suas tropas desmoronarem ante as armas, e então ver como eles se reagrupam no abrigo de uma trincheira para transformar suas fraquezas em forças, para depois transformar a coluna inimiga numa ruína desbaratada. Uma mulher gosta de estudas os sentimentos que vê nos rostos das crianças que trata. Ela gosta de usar a palavra para acalmar preocupações, um abraço para apaziguar medos que tomaram mentes. Às vezes o medo é tão grande que a sobrepuja e acelera seus batimentos cardíacos. Então ela diz algumas palavras para dissipar a angústia e transforma-la em crises de riso. É assim que ela dá sentido às palavras “resistir” e “ceder”. É esse o material a partir do qual ela aprende o sentido da palavra “realidade”. Outra pessoa pode gostar de manipular frases: montar palavras, agrega-las, segura-las juntas, assistindo-as adquirir sentido pela sua ordem ou perder sentido por causa de uma palavra mal colocada. Esse é o material ao qual ela se apega, e ela gosta acima de tudo do momento quando as palavras começam a se costurar até ser impossível adicionar uma palavra sem resistência de todas as outras. Palavras são forças? Elas são capazes de lutar, revoltar, trair, brincar ou matar? Sim, como todos os materiais, elas podem resistir ou ceder. São materiais que nos dividem, não o que fazemos com eles. Se você me contar o que sente quando luta com elas, eu te reconhecerei como um alter ego, mesmo que seus interesses sejam totalmente estranhos para mim.

Uma pessoa, por exemplo, gosta de molho branco da mesma forma que a outra gosta de frases. Ele gosta de ver a mistura da farinha e da manteiga mudar enquanto o leite é cuidadosamente adicionado. O resultado é uma pasta satisfatoriamente suave, que flui em faixas e pode ser posta sobre o queijo ralado para fazer um molho. Ele ama julgar se as quantidades estão corretas, se o tempo de cozimento está correto, se o fogo está ajustado. Tais forças são tão escorregadias, arriscadas e importantes quanto quaisquer outras. Outra pessoa não gosta de cozinhar, e considera isso tudo desinteressante. Mais do que qualquer coisa, essa pessoa ama ver a resistência o destino de células no ágar. Ela gosta do movimento rápido quando costura traços invisíveis com uma pipeta na placa de Petri. Todas as suas emoções estão investidas no futuro de sua colônia de células. Elas vão crescer? Vão perecer? Tudo depende dos pratos 35 e 12, toda sua carreira está ligada aos poucos mutantes capazes de resistir o desafio temeroso ao qual foram sujeitados. Para ele isso “importa”[2], é aqui onde Jacó luta com o Anjo. Tudo mais é irreal, pois ele vê os outros manipulando matéria que ele mesmo não sente. Outro pesquisador se sente feliz somente quando transforma uma máquina perfeita que parece imutável para os outros em uma associação desordeira de forças com a qual ele pode experimentar. A asa do avião sempre está na frente do aileron, mas ele renegocia o óbvio e move a asa para a traseira. Ele gasta anos testando a solidez das alianças que fazem seus sonhos impossíveis, dissociando aliados uns dos outros, um por um, em paciência ou raiva. Outra pessoa gosta somente do medo gentil de tentar seduzir uma mulher, o instante passional entre se envergonhar, levar um tapa, se achar preso, ou ser bem-sucedido. Ele pode gastar semanas mapeando os contornos do jeito de conquistar cada mulher. Ele prefere não saber o que vai acontecer, se ele vai se soltar, subir gentilmente, recuar, ou alcançar o templo de seus desejos.

Então nós não valorizamos os mesmos materiais, mas gostamos de fazer as mesmas coisas com eles – ou seja, aprender o sentido de forte e fraco, real e irreal, associado ou desassociado. Discutimos constantemente uns com os outros sobre a importância relativa desses materiais, sua significância e sua ordem de precedência, mas esquecemos que eles têm o mesmo tamanho e que nada é mais complexo, múltiplo, real, palpável ou interessante do que qualquer outra coisa. Esse materialismo fará desaparecer os materialismos bonitos do passado. As camadas de força e matéria homogêneas destes materialismos passados eram tão puras que se tornaram quase imateriais.

Não, nós não sabemos o que são forças, nem seus equilíbrios. Nós não queremos reduzir nada a nenhuma outra coisa. Queremos, em vez disso, e assim como Sexta-Feira, sentir a ilha e explorar a selva.

Esse texto segue um caminho, independentemente do quão bizarras as consequências e o quão contrário ao costume ele seja. O que acontece quando nada é reduzido a outra coisa? O que acontece quando suspendemos nosso conhecimento do que é a força? O que acontece quando nós não sabemos como o jeito delas se relacionarem umas com as outras está mudando?  O que acontece quando desistimos do fardo, da paixão, da indignação, da obsessão, da chama, da fúria, do objetivo cintilante, do excesso, do desejo insano de reduzir tudo?

Capítulo 1 – De fraqueza a potência

1.1.1 Nada é, por si mesmo, redutível ou irredutível a qualquer outra coisa.

  • Este é o “princípio da irredutibilidade”, porém, ele é um príncipe que não governa visto que isto seria uma autocontradição (2.6.1).

1.1.2 Só existem provas[3] de força, de fraqueza. Ou, posto mais simplesmente, só existem provas. Esse é meu ponto de partida: um verbo, “provar”.

1.1.3 Só existem provas (de força, de fraqueza) porque nada é, por si mesmo, redutível ou irredutível a qualquer outra coisa. O que não é redutível ou irredutível tem que ser testado, contado e mensurado. Não há outro jeito.

1.1.4 Tudo pode ser feito de medida para outras coisas.

1.1.5 Tudo que resistir a provas é real.

  • O verbo “resistir” não é uma palavra privilegiada. Eu a uso para representar uma coleção de verbos e adjetivos, ferramentas e instrumentos, que juntos definem os jeitos de ser real. Poderíamos dizer igualmente “coagular”, “dobrar”, “obscurecer”, “afiar”, “deslizar”. Há dúzias de alternativas

1.1.5.1 O real não é uma coisa entre outras, mas sim gradientes de resistência.

1.1.5.2 Não há diferença entre o “real” e o “irreal”, o “real” e o “possível”, o “real” e o “imaginário”. Na verdade, há todas as diferenças experimentadas entre aqueles que resistem por muito tempo e aqueles que não resistem, aqueles que resistem corajosamente e aqueles que não, aqueles que sabem como se aliar ou isolar a si mesmos e aqueles que não sabem.

1.1.5.3 Nenhuma força pode, como geralmente se diz, “conhecer a realidade”, a não ser através da diferença que cria ao resistir outras.

  • Antigamente, dizia-se que a força e o conhecimento são coextensivos, ou, como na fábula, que “a razão mais forte sempre cede às razões do mais forte”.

1.1.5.4 Nada é sabido – só percebido.[4]

1.1.6 Uma forma é a linha de frente de uma prova de força que a de-forma, trans-forma, in-forma ou per-forma. Claro, quando uma forma é estável, não se parece mais com uma prova.

1.1.7 O que é uma força? Quem é? Do que ela é capaz? É um sujeito, texto, objeto, energia ou coisa? Quantas forças existem? Quem é forte e quem é fraco? É uma batalha? Um jogo? Um mercado? Todas essas questões são definidas e deformadas somente por mais provas.

  • No lugar de “força” podemos falar de “fraqueza”, “enteléquias”, “mônadas”, ou simplesmente “actantes”.

1.1.8 Nenhum actante é tão fraco que não possa alistar outro. Então os dois podem se juntar e tornar-se um em relação a um terceiro actante, o qual eles podem, então, mover com mais facilidade. Um redemoinho é formado, e este cresce tornando-se muitos outros.

  • Um actante é uma essência ou uma relação? Nós não podemos dizer sem uma prova (1.1.5.2). Para não se deixam ser levadas, essências podem se relacionar com muitos aliados, e relações podem se relacionar com muitas essências.

1.1.9 Um actante ganha força somente associando-se com outros. Assim, fala no nome deles. Por que os outros não falam por si mesmos? Porque são mudos; porque foram silenciados; porque eles se tornaram inaudíveis falando ao mesmo tempo. Então, alguém os interpreta e fala em seu lugar. Mas quem? Quem fala? Traditore-traduttore. Um é igual a muitos. Não se pode determinar. Se a fidelidade do actante é questionada, ele pode demonstrar que só repetiu o que os outros queriam dizer. Ele oferece uma exegese dos estados de forças, que não pode ser contestado mesmo provisionalmente sem outra aliança.

1.1.10 Aja como você deseja, desde que isso não possa ser facilmente desfeito. Como resultado do trabalho dos acatntes, certas coisas não podem retornar a seus estados originais. Uma forma é estabelecida, como um vinco. Pode ser chamado de armadilha, catraca, irreversibilidade, um demônio de Maxwell, uma reificação. A palavra exata não importa, desde que designe uma assimetria. Então você não pode agir como quiser. Há vencedores e perdedores, há direções, e algumas são feitas mais fortes que outras.

1.1.11 Tudo ainda está em jogo. Entretanto, já que muitos jogadores estão tentando tornar o jogo irreversível e estão fazendo tudo que podem para assegurarem-se que tudo não é igualmente possível, o jogo está acabado.

  • Homenagem aos Masters of Go (Kawabata: 1972)

1.1.12 Para criar uma assimetria, um actante só precisa se apoiar numa força um pouco mais durável que ele mesmo. Mesmo que essa diferença seja minúscula, é suficiente para criar um gradiente de resistência que faz os dois mais reais para outro actante (1.1.5).

1.1.13 Nós não podemos dizer que um actante segue regras, leis, ou estruturas, mas também não podemos dizer que age sem essas coisas. Através do aprendizado do que os outros actantes fazem, ele gradualmente elabora regras, leis e estruturas. Então procura fazer os outros jogarem dentro dessas regras que diz ter aprendido, observado ou recebido. Se ganhar, então as verifica e, assim, as aplicou.

  • Qualquer ordem é uma convenção, uma construção social, uma lei da natureza ou uma estrutura da mente humana? Não sabemos dizer. Mas, assim como é no amor e na guerra, tudo é justo na tentativa de acoplar as regras a algo mais durável que o momento que as inspirou.

1.1.14 Nada é, por si mesmo, ordenado e desordenado, único ou múltiplo, homogêneo ou heterogêneo, fluido ou inerte, humano ou inumano, útil ou inútil.

  • Spinoza disse muito tempo atrás: no que diz respeito a formas, não sejamos antropormórficos. Cada fraqueza distribui um leque completo de papeis. Dependendo daquilo que espera dos outros, ela distingue o estável e o ordenado do sem forma e do móvel. Mas, visto que as outras distribuem papeis também, um belo entrelace é engendrado. Ainda assim, podemos compreender porque enteléquias podem confundir aqueles que quebrou, desmembrou ou seduziu com matéria sem forma.

1.1.14.1 Ordem não é extraída da desordem, mas de ordens.

  • Sempre cometemos o mesmo erro. Distinguimos entre o bárbaro e o civilizado, o construído e o dissolvido, o ordenado e o desordenado. Sempre estamos lamentando a decadência e a dissolução das morais. Má sorte! Átila fala grego e latim; os punks se vestem com o mesmo cuidado que Coco Chanel; bactérias da praga tem estratégias tão sutis quanto a IBM; os Azande falsificam suas crenças com o ímpeto de um Popper. Não importa o quão longe formos, sempre há formas; dentro de cada peixe há lagos cheios de peixes. Alguns acreditam que são moldes enquanto outros são matéria-prima, mas isso é uma forma de elitismo. Para alistar uma força, devemos conspirar com ela. Ela nunca pode ser amassada como uma placa de metal ou posta num molde.

1.1.15 “Tudo é necessário” e “tudo é contingente” significam a mesma coisa – ou seja, nada. As palavras “necessário” ou “contingente” ganham sentido somente quando são usadas no calor do momento para descrever gradientes de resistência – ou seja, a realidade.

  • O comprimento do nariz de Cleópatra não é significante nem insignificante. Circunstâncias determinam, por algum tempo, a importância relativa de qualquer que seja aquilo que as constituem. Acaso e necessidade não podem ter seus papeis alocados de antemão.

1.1.16 O que é o mesmo e o que é diferente? O que está com quem? O que é oposto, aliado ou íntimo? O que continua, para, abandona, apressa ou acopla a si mesmo? Estas são questões comuns, sim, comuns a todas as provas, não importando se elas envolvem acariciar, provar, desdobrar, trançar, juntar, apagar ou abordar.

1.2.1 Nada é, por si só, o mesmo ou diferente de alguma outra coisa. Ou seja, não há equivalentes, só traduções. Em outras palavras, tudo acontece de uma vez só e num só lugar. Se há identidades entre actantes, é porque eles foram construídos a muito custo. Se há equivalências, é porque elas foram construídas a partir de peças e pedaços com muito esforço e suor, e porque são mantidas por força. Se há trocas, elas sempre são desiguais e custam uma fortuna para serem estabelecidas e mantidas.

  • A isso eu chamo de “princípio da relatividade”. Assim como não é possível para um observador comunicar com outro mais rápido do que a velocidade da luz, o melhor que pode ser feito entre actantes é traduzir um para o outro. Não há nada entre forças incomensuráveis e irredutíveis: nenhum éter, nenhuma instantaneidade. É verdade que esse princípio de relatividade quer reestabelecer a inequivalência dos actantes, enquanto o outro princípio foi desenhado para restaurar a equivalência entre todos os observadores. Nos dois, entretanto, nós temos que nos acostumar a respirar na ausência do éter. A coisa da qual falo é rara, dispersada e majoritariamente vazia. Reuniões, saturações e plenitudes são incomuns e dispersas, como grandes cidades no mapa de um país.

Interlúdio 1: Em um estilo pseudoautobriográfico para explicar os objetivos do autor

Ensinei em Gray nas províncias da França por um ano. No final do inverno de 1972, na estrada de Dijon para Gray, fui forçado a parar, caindo em mim após uma overdose de reducionismo. Um cristão ama um Deus que é capaz de reduzir o mundo a si mesmo porque ele o criou. Um astrônomo procura pelas origens do universo deduzindo sua evolução a partir do Big Bang. Um matemático procura axiomas que implicam em outros axiomas corolários e consequentes. Um filósofo espera encontrar a fundação radical que faz todo o resto ser epifenomênico. Um hegeliano deseja extrair dos eventos algo já inerente a eles. Um kantiano reduz coisas a grãos de poeira e então os remonta com julgamentos sintéticos a-priori que são tão férteis quando uma mula. Um engenheiro francês atribui potência a cálculos, embora estes venham da prática de um “clube do bolinha”[5]. Um administrador nunca se cansa de procurar por empregados, seguidores e oficiais. Um intelectual busca tornar explícitas e conscientes as práticas e opiniões “simples” do vulgar. Um filho da burguesia vê os estágios simples de um ciclo abstrato de riqueza nos viticultores, comerciantes de vinho e contadores. Um ocidental nunca se cansa de encolher a evolução das espécies e impérios ao nariz de Cleópatra, o calcanhar de Aquiles e o olho cego de Nelson. Um escritor tenta recriar a vida cotidiana e imitar a natureza. Um pintor é obcecado pelo desejo de expressar sentimentos em cores. Um seguidor de Roland Barthes tenta transformar tudo não em textos, mas em significantes somente. Um homem gosta de usar o termo “ele” no lugar de humanidade. Um militante espera que a revolução vá arrancar o futuro do passado. Um filósofo afia a “ruptura epistemológica” para guilhotinar aqueles que ainda não “acharam o caminho seguro para a ciência.” Um alquimista gostaria de segurar a pedra filosofal em suas mãos.

Para colocar tudo no nada, para deduzir tudo de quase nada, para colocar em hierarquias, para comandar e para obedecer, para ser profundo ou superior, para colecionar objetos e força-los num espaço minúsculo, sejam eles sujeitos, significantes, classes, Deuses, axiomas – para ter como companhias, como aqueles da minha casta, só o Dragão do Nada e o Dragão da Totalidade. Cansado e fatigado, de repente senti que tudo estava sendo deixado de fora. Cristão, filósofo, intelectual, burguês, homem, provincial e francês, decidi fazer espaço e dar espaço para as coisas sobre as quais eu falasse estivessem a distância. Não sabia então sobre o que estou escrevendo agora, mas eu simplesmente repetia para mim mesmo: “Nada pode ser reduzido a nada mais, nada pode ser deduzido de outra coisa, tudo pode ser aliado de tudo mais.” Foi como um exorcismo que derrotou demônios um a um. Era um céu invernal e muito azul. Eu já não precisava sustenta-lo com uma cosmologia, colocá-lo numa figura, transformar em escrita, mensurar num artigo meteorológico, ou colocá-lo nos ombros de um titã para impedir que caia na minha cabeça. Eu adicionei-o a outros céus em outros lugares e não o reduzi a nada, e nada foi reduzido a ele. Ficou a distância, escapou e estabeleceu-se a si mesmo onde sozinho definiu seu lugar e seus objetivos, nem cognoscível nem incognoscível. Ele e eu, eles e nós, nós nos definimos mutuamente. E pela primeira vez em minha vida eu vi as coisas irreduzidas e libertas.

CONTINUA NA PARTE 2

Referência: LATOUR, Bruno. The pasteurization of France. Harvard University Press, 1993.

Notas:

[1] Nota do tradutor: No texto em inglês, o termo é “play” e no francês, “jouer”. Procurando evitar o tom demasiado estratégico e deliberado do termo “jogar”, optei pelo verbo “brincar”. Não se trata de negar que haja estratégia no ato de “jouer” dos actantes, mas de enfatizar que não há necessariamente um “jogo”, mesmo que haja algo em jogo. Brincar serve para indicar o ato de mexer, mover, fazer num espaço em que estados de forças não estão dados de antemão

[2] N. do T.: No texto original em inglês, o termo é “matter”, que significa que algo importa (something matters), mas também significa o substantivo “matéria”. A dualidade do sentido é importante para o resto do texto, como se vê pela próxima frase.

[3] N. do T.: O termo no texto em inglês é “trials” e em francês, “épreuves”. 

[4] N. do T.: No original francês, o termo é “réalise”, enquanto no inglês é “realized”. Os dois termos indicam uma forma de percepção de algo, distinto do “conhecer”. Ao mesmo tempo, “realizar” algo, o que seria uma tradução literal do termo, também pode significar “tornar algo real”, como no original francês “réalise” ou no inglês “realized”. Opto pelo termo “perceber” para indicar o sentido de apreensão de algo que “réalise” e “realized” carregam, porém, deve-se manter em mente a polissemia do verbo, que resvala em sentidos como “tornar real”, “compreender” ou “ter consciência de”.

[5] N. do T.: No inglês, o termo é “old-boy network”, que significa uma espécie de rede de conexões sociais entre ex-alunos e membros de um colégio privado, formado somente por homens. Para passar a noção de um grupo fechado formado por homens, optei pela expressão informal “clube do bolinha”.

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