
Por Marc Breviglieri
Tradução: Lucas Faial Soneghet
Os contextos de assistência e cuidados em domicílio sempre suscitam a questão da distância certa nas suas relações. Implicitamente, como o filósofo Paul Ricoeur nos leva a crer, a questão da distância certa representa o núcleo de significado e o lugar polêmico de toda a ética da solicitude[1]. Proponho considerar três sentidos estreitamente inter-relacionados para a distância certa, cada um dizendo de sua própria maneira o que vem a ser o ato certo de cuidar. Serão apresentadas, sucessivamente, as seguintes dimensões: (i) do reconhecimento da humanidade da pessoa, (ii) do crédito ou confiança no coração da relação, e (iii) da justiça, que qualquer instituição busca para adquirir legitimidade social, política e moral. Ocasionalmente, discutiremos as configurações práticas que esses sentidos da distância certa podem assumir em face da afirmação de um sistema de intervenção padronizado, cuja ênfase está em ferramentas para avaliar a qualidade da assistência, das relações contratuais e das políticas de gestão. É então que teremos de focar a nossa atenção em algo que este dispositivo não apreende bem e que negligencia pela redução, nomeadamente, a dimensão do habitado[2]. No entanto, esta dimensão do habitado está no centro de qualquer problema relacionado aos cuidados no domicílio.
Os três níveis de sentido da distância certa
Entre fusão e afastamento (reconhecimento da humanidade)
Num primeiro nível, a distância certa se apresenta pela ótica do simples dilema muito próximo/muito distante. Para uma instituição, esse dilema reflete duas preocupações opostas: de um lado, a preocupação de que o usuário não se sinta abandonado, em sua casa, sozinho, como se a instituição não estivesse interessada nele, e do outro lado, o medo de estar demasiado presente, de cair numa compaixão desmedida, de produzir dependência na assistência. Simetricamente, o usuário poderá perceber um excesso de distância ao observar, por exemplo, a rotação abusiva de profissionais que “desfilam pela casa sem terem tempo de realmente se habituar com cada um”[3]. Nos diferentes casos evocados, há um espectro de uma relação desumanizada, que basicamente tornaria fracasso qualquer plano de cuidado ou assistência.
A possibilidade do excesso de proximidade é particularmente preocupante para os usuários ou pacientes. Mas como tal preocupação é expressa? Ela parece vir especialmente do problema da intrusão na casa que pode emergir da visita domiciliar. O constrangimento vindo da intrusão em cômodos privados, como o quarto ou o banheiro, a sensação desagradável de intrometimento em assuntos pessoais, o sentimento de uma vida privada destruída pela presença recorrente de um terceiro (o cuidador) …
Mas a análise deste primeiro nível deve ser complementada, estendendo o dilema muito próximo/muito distante a outras dimensões para além do problema da intrusão e do risco de violação abusiva do privado. Essa extensão baseia-se no uso de um tato profissional, nem muito insistente nem muito acovardado, com os pacientes, que coloca a relação humana, incondicionalmente, no primeiro plano.
Entre confiança e desconfiança (afirmação de crédito)
Num segundo nível, pode-se falar da distância certa em termos do reforço de uma confiança e do asseguramento do paciente de que o agente institucional[4] não é nada além de seu aliado. Dito de outra forma, a distância certa permite estabilizar a dialética da confiança e da desconfiança, instalando a relação no polo da confiança. Essa dialética é, no entanto, espontaneamente animada de ambos os lados, por causa da própria assimetria que vincula desde o início o ajudador ao ajudado, o cuidador ao cuidado. Resumidamente, essa assimetria é explicada pelo fato de que o cuidador está sempre melhor de saúde e sabe mais do que o aquele de quem cuida. Assim nós temos, de um lado: desconfiança da instituição com seus usuários, por exemplo quando usuários dissimulam ou dramatizam certas situações, tentando manipular ou instrumentalizar a relação com o profissional, e de outro lado: o medo dos usuários de que a instituição ou seus agentes os persuadam e abusem de suas fraquezas.
Podemos também discutir rapidamente o papel hoje desempenhado pelas ferramentas contratuais que parecem se imiscuir em todos os níveis das relações de cuidado, permitindo uma proteção jurídica e uma maior responsabilização das partes. Essas ferramentas visam reduzir a dissimetria inicial e produzir a reciprocidade e a confiança entre indivíduos dos quais se exige a capacidade de consentir tendo em vista suas escolhas. Em sua forma efetiva, o contrato permite uma garantia do desejo da relação de assistência, uma inteligibilidade partilhada das informações disponíveis, e, enfim, uma certeza sobre o engajamento das vontades comprometidas (expressas no consentimento informado). Então: inteligibilidade partilhável, desejo de se engajar e afirmação clara da vontade.
Mas, a fim de traçar alguns limites para esse enquadramento hipercontratualizado, é útil comparar tais pressupostos e expectativas do contrato com um conjunto de relatos coletados de alguns pacientes dependentes: um desejo vago de querer ser cuidado, força de vontade largamente enfraquecida, confusão de sentimentos pessoais cujo formato de expressão não coincide com uma informação inteligível aos outros.
Essa falta de ajuste entre a forma do contrato e formato da expressão de certos pacientes muito vulneráveis faz com que a instituição permaneça aberta a uma variedade de canais de comunicação com o usuário, podendo falar uma língua diferente daquela do contrato com o fim de reforçar seu crédito.
Entre diferentes qualidades justificáveis: o objeto da boa vida
Em um terceiro nível, a distância certa nos remete a questão fundamental da justiça. Seguindo novamente a filosofia de Paul Ricoeur, podemos argumentar que a ética da solicitude, colocada num contexto institucional, busca, ao mesmo tempo um cuidado fundado num laço empático, e uma relação de justiça para todos no horizonte de uma boa vida. No entanto, não há boa vida senão em comum, com os outros, implicando que a concepção do bom gesto de cuidado deve ser sempre justificável aos olhos dos outros e que todos, por sua vez, devem esforçar-se para ouvir a justificação introduzida.
Por exemplo, colocando uma questão básica para os usuários: como você justifica sua permanência em casa?… Não há resposta unívoca e a diversidade de pontos de vista exprime a pluralidade heterogênea de critérios gerados para julgar a qualidade do cuidado: “quero ficar em casa para que minha propriedade seja preservada para a herança de meus filhos, porque meus hábitos domésticos são valiosos pra mim e não quero muda-los, porque é um direito do qual todos que estejam doentes ou no fim da vida deveriam poder desfrutar, porque a eficácia do tratamento médico é bem maior, porque o custo de hospitalização é minimizado, etc…”. Por trás dessas formas diferentes de justificar a qualidade dos cuidados, é necessário reconhecer um conjunto de concepções da boa vida em comum (uma sociedade baseada na manutenção do laço familiar, onde o direito é importante para garantir a igualdade de todos, onde a medicina é eficaz, etc…). O bom gesto de cuidado, que se compromete a uma distância certa, é precisamente aquele que encontra uma maneira de equilibrar essas concepções do bem comum, de satisfazer da melhor maneira possível ou de causar o menor dano possível a esses diferentes pontos de vista, todos eles legítimos.
Assim, sobre o terceiro nível, onde a questão da distância certa encontra um novo significado, enuncia-se um gesto de cuidado que pode girar em torno de vários bens comuns e que busca legitimidade justificável aos olhos dos diversos atores envolvidos.
O entrelaçamento de níveis de sentido e o bem-estar da pessoa
Note-se que esses níveis de sentido da distância certa são, na realidade, indissociáveis. Pode-se identificar sua interdependência através de um exemplo: a esposa de um paciente, ex-vinicultor e comerciante, em forte dependência funcional e demonstrando impulsos agressivos imprevisíveis contra terceiros, queixa-se da muita frequência com a qual novos agentes vem visita-lo, reclamando da distância em relação aos cuidadores que isso provoca e afirmando um sentimento constante de negligência afetiva e intrusão em sua casa. Encontra-se o primeiro nível de sentido: ausência de reconhecimento da plena humanidade pela distância excessiva. É essa distância preocupante que finalmente concretizou o sentimento de que a instituição não sabe o que fazer com o caso de seu marido, suspeita essa que é reforçada pelas sugestões de hospitalização feitas pelas enfermeiras. Segundo nível: a desconfiança se instala na casa da esposa do paciente, fazendo com que a instituição perca seu crédito de confiança. No entanto, o custo da hospitalização significaria para ela vender a propriedade, que ela espera ser um objeto de herança, especialmente porque um dos filhos, para atender um desejo íntimo de seu pai, retornou a adega e lá trabalha diariamente. Isso explica o apego quase visceral que a família tem pela casa. Terceiro nível: a hospitalização é injustificável a seus olhos, pois deveriam poder manter o homem em sua residência até sua morte.
A questão da distância certa nos introduziu a dimensões essenciais do cuidado, que não são de forma alguma redutíveis somente à questão médica. Atribuir o reconhecimento da plena humanidade do outro, selar uma confiança, almejar juntos um bem comum, tudo isso coloca em movimento a noção de bem-estar que contém e transborda por todos os lados na saúde. E é essa noção mesma que dá ao cuidado seu objetivo final.
O inestimável benefício de habitar
A questão do bem-estar nos conduz imperceptivelmente àquela do habitado e à busca intensa a qual cada paciente dependente se submete no fim da vida quando evoca esse desejo imperioso, essa necessidade infinita de recolher-se em casa para terminar seus dias. Isso também nos faz levar a sério que, na hospitalização, que às vezes ocorre depois de um longo período de atendimento domiciliar, se provoca no paciente a experiência traumática de desenraizamento e de desolação.
O argumento que gostaria de fazer aqui é que a perda do habitado corresponde exatamente ao que ameaça mais profundamente o paciente dependente, pois suas habilidades (cognitivas e motoras) estão alteradas. Antes de ser o prédio que vemos da rua, o habitado é uma “arquitetura íntima”, protetora e cativante, um terreno do qual emana, como diz o psiquiatra Blankenburg, um sentimento estabilizador de evidência natural onde se enraizou uma segurança íntima de poder fazer as coisas.[5] E este sentimento continua a ser fundamental para que a assistência domiciliar possa conter novamente um sentimento vital em vez de mortal. A experiência do mundo familiar habitado traz uma mobilidade facilitada em um espaço de envolvimento benevolente, uma facilitação abundante, a sedimentação de marcos sensoriais que consolidam um apego, uma ancoragem estabilizada através das coisas-em-si, um refúgio consolador que permite repouso, relaxamento e recuperação do estresse de ter que suportar, os devaneios e o curso perigoso da imaginação, etc… No entanto, tudo que está em jogo aqui não somente produz um benefício considerável para a pessoa, mas permanece num certo sentido inestimável. Inestimável porque é aí que qualquer capacidade encontra a confiança necessária para se armar. Também é inestimável porque os seres e as coisas que são compartilhadas no habitado através do tempo são sentidos sob a dimensão afetiva, insubstituível e incomensurável do apego; portanto, nenhuma consideração nos permite estimar exatamente, isto é, por alguma medida objetiva, sua contribuição exata. É isso que a questão da avaliação inevitavelmente enfrenta.
Questões do habitado do ponto de vista de uma contribuição comedida ao cuidado médico
Uma questão central na avaliação dos cuidados e da assistência domiciliar é relatar a contribuição dos cuidadores familiares. É logo evidente que o familiar é uma parte fundamental do que significa o habitado para o paciente dependente. Por sua mera presença, ele irradia alguns benefícios do habitado. Mas assim como com o habitado, a mesma dificuldade é enfrentada por quem procura dar conta de sua contribuição para o bem-estar do paciente através de uma medida objetiva. Por conseguinte, é insuficiente e insatisfatório estimar a situação do paciente dependente sem englobar na avaliação o conjunto do que está sendo feito em sua casa, notadamente a relação que tem com o cuidador familiar. Assim, faz-se necessário tornar o paciente e o cuidador inseparáveis e simétricos em qualquer avaliação de situação. Isto é necessário antes de tudo porque o cuidador, para quem a empatia permanece vetor constante de emoções, sofre. Sofre, por assim dizer, por ressonância e incidência: sofrimento moral de culpa, sofrimento físico de exaustão como resultado do monitoramento contínuo do paciente dependente, sofrimento social de isolamento resultante do cuidado domiciliar. Junto destas três fontes de sofrimento, há a dificuldade de queixar-se, que só desaparecerá se a instituição colocar o cuidador numa posição de estima simétrica ao paciente dependente. E sob a condição dessa simetria, pode se repetir os três níveis de sentido da distância certa incluindo o cuidador familiar: reconhecer a dimensão propriamente humana de um sofrimento ligado ao acompanhamento de um ente querido gravemente debilitado, crer na veracidade da queixa do cuidador e dar-lhe crédito tangível no âmbito institucional, legitimar politicamente e moralmente o apoio justificável a ele.
Há, portanto, uma grande necessidade de generalizar políticas reais de cuidado e apoio ao cuidador. Mas políticas que tentam não fechar os olhos para a questão do apego, onde o habitado não é apenas considerado uma propriedade privada, onde o relacionamento não é redutível apenas a uma relação contratual, onde o cuidador, enfim, não é considerado como outro prestador de serviços cujas especificações participariam da divisão organizacional do trabalho da instituição de assistência.
Gostaria de concluir sugerindo que esta última questão da plena inclusão do cuidador nas políticas de cuidados e assistência no domicílio é uma grande oportunidade para as instituições abrirem um horizonte de sentido, refletir sobre regiões incomuns de interafetividade, empurrar as fronteiras da empatia, reformar as maneiras de fazer as coisas e, assim, tornar compreensíveis novas fontes de responsabilidade ética. Dizer isso é apostar na dinâmica de evolução das instituições, em sua capacidade de se questionar e se reformar. É por isso que, bem antes de se estabelecer referenciais de competência que permitam considerar e mensurar objetivamente a real contribuição individual do cuidador, trata-se de nutrir e fazer funcionar a estrutura consensual e conflituosa da instituição. Trata-se de fazer pensar, de abrir a discussão à contradição, em particular sobre a maneira pela qual se deve agora reexaminar, numa relação triádica (agente institucional-paciente/dependente-familiar/cuidador), a questão da distância certa.
Referência:
BREVIGLIERI, Marc. “La juste distance et l’enjeu du « bien habiter » dans le soin et l’aide à domicilie”, Contact. La revue de l’aide et des soins à domicile, n° 131, mai-juillet, 15-18, 2012.
Notas:
[1] Ricoeur, P., Le juste 2, Ed. Esprit, 2001.
[2] Nota do tradutor: No original, o termo em francês é “habiter”. Tal termo pode significar tanto “viver”, quanto “morar” ou “habitar”. A pluralidade do termo é apropriada para entender a dimensão “vivida” do domicílio, a ser explicitada ao longo do texto. Porém, substituir “habiter” por “viver” causaria certa confusão em relação aos termos “boa vida” e “bem viver”, que também serão empregados para indicar um ideal que orienta as relações dentro do “bem habitar” da pessoa. Opto pelo termo “habitar” para enfatizar o aspecto de “espaço vivido” fenomenológico que é indicado pelo domicílio ao longo do texto.
[3] Este texto é baseado em uma pesquisa que conduzi sobre a visita e assistência em casa (Breviglieri, M., « La décence du logement et le monde habité. Une enquête sur la position du travailleur social dans les remous affectifs de la visite à domicile », in J. Roux (dir.), Sensibiliser. La sociologie dans le vif du monde. Éd. de l’Aube, 2006).). Também aproveito o trabalho em andamento e as trocas que tive com Laure Burel, junto com a qual conduzi o trabalho de mestrado na formação dos diretores das instituições da HES.SO. Que ela seja calorosamente agradecida.
[4] Nota do tradutor: o termo no original francês é “intervenant institutionnel”. Traduzo “intervenant” por “agente” para indicar o papel do indivíduo que age pela e em prol da instituição, tanto como “interveniente” quanto como “parte interessada”.
[5] Blankenburg, W., La perte de l’évidence naturelle, PUF, 1991.
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