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DEBATE: Ontologia é apenas outra palavra para cultura (Parte 3) – Moções de Matei Candea e Martin Holbraad

nuer people.jpgNuer II/14 (1935), por Edward Evans-Pritchard

Tradução: Diogo Correa e Lucas Faial Soneghet
Revisão: Marília Bueno

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Matei Candea: A favor da moção (2)

Parei de contar os amigos que, quando souberam da minha participação neste debate, vieram me avisar, preocupados, que minha posição era insustentável, que que era impossível que eu pudesse argumentar a favor da moção. O engraçado é que nem todos eles pensaram que a posição era a mesma. Uma pessoa assumiu que argumentar a favor da moção (“ontologia é apenas outra palavra para cultura”) era promover um argumento forte a favor da pluralidade da “ontologia”, ou seja, argumentar que ontologias são tão plurais e construídas quanto as culturas. Essa pessoa se perguntou como alguém (e no caso eu) poderia argumentar a favor dessa posição. Outra pessoa entendeu que a afirmação insinuava que ontologia era tão abrangente quanto cultura, e tentou com dificuldade argumentar que pessoas que fazem pressuposições ontológicas diferentes podem muitas vezes concordar e se dar bem de uma forma que parecia impossível para certas noções duras de “diferença cultural”. Essa pessoa, também, estava chocada com a ideia de que eu pudesse argumentar a favor da moção, mas por motivos totalmente diferentes.

É por isso que eu pensei que deveria começar esclarecendo exatamente o que eu acho que a moção significa. Guiado pelo fato que esse é um debate da teoria antropológica, tomarei a proposição no seguinte sentido: “ontologia, no sentido que é usada atualmente por antropólogos, é apenas outra palavra para cultura”. Meu argumento, em outras palavras, não é um argumento ontológico sobre a natureza da cultura e da ontologia, mas um argumento sobre a significância e os efeitos dos termos “cultura” e “ontologia” dentro do projeto antropológico.

Mesmo assim, depois desse esclarecimento, muitas pessoas acharam um tanto quanto intrigante minha posição neste lado do debate – e, de certa forma, eu também acho. Eu sou extremamente simpático ao que tem sido chamado de virada ontológica na antropologia, e em meu próprio engajamento etnográfico com relacionalidade na Córsega eu tenho recorrido a e pensado através de autores que estão costumeiramente associados a esse novo desenvolvimento na teoria antropológica. Parte do problema é que a redação da moção (“ontologia é apenas outra palavra para cultura”) – e particularmente, como veremos, a palavra “apenas” – me força a transformar, se quiser colocar assim, minhas relações ontológicas com a literatura sobre ontologia, meu ser profundo no mundo da teoria, em um problema epistemológico de mera comunicação, um a favor ou contra achatado na convenção do debate.

Mas essa ressalva não me exime da pergunta principal: como se argumenta que ontologia é apenas outra palavra para cultura? De cara, como disse, a posição parece insustentável. Não aguento nem contemplar as complicações filosóficas de expressar tal posição no resumo, e até a afirmação mais modesta que estou propondo aqui, a saber, uma afirmação sobre o modo como essas palavras são usadas na antropologia, parece artificial. Afinal de contas, ontologia, ou melhor, ontologias no plural, geralmente são introduzidas no discurso antropológico precisamente em oposição à cultura. Ontologias são tudo que culturas, nesse sentido, não são. Uma versão corriqueira do argumento se baseia em correlacionar a distinção ontologia/cultura com a distinção ontologia/epistemologia. O estudo da cultura é colocado como sendo meramente o estudo do significado, da interpretação e da episteme das pessoas. Nessa definição, a cultura, como Tim Ingold afirmou, “é concebida como flutuando sobre o mundo material, mas não o permeando” (2000, p. 340). Decorre disso que a antropologia cultural – e, crucialmente, a diferença cultural – é de fato algo bem superficial. Como coloca Eduardo Viveiros de Castro:

…a democracia epistemológica geralmente professada pela antropologia ao expor a diversidade cultural dos significados se revela… altamente relativa, já que é baseada, em última instância, numa monarquia ontológica absoluta, onde a unidade referencial da natureza é imposta (2003, p. 18).

A virada ontológica na antropologia é então apresentada como uma saída para a angústia epistemológica da década de 1980, daqueles que “escreveriam a cultura” e, assim, como dizem, a reduziriam a mera significação.

Nesse contexto, a moção parece extremamente provocativa, como se alguém estivesse tentando argumentar que a ontologia também, assim como a cultura, é meramente representação, meramente palavra, meramente, em última instância, epistemologia. Esse não é será meu argumento. Na verdade, eu até acredito no oposto, ou seja, que a cultura nunca foi tão tênue nos constructos antropológicos; ou antes (porque sempre há quem use mal os termos), que os que usavam a palavra apenas no sentido de “representações” não eram, eles próprios, uma amostra do potencial muito mais rico que ela tem para incluir corporificação, posicionamento[1], afeto e atividades de construção de mundo. Eu argumentaria, em suma, que igualar cultura com ontologia enquanto ferramentas antropológicas é nos lembrar do valor da cultura, não menosprezar a ontologia. Michael Carrithers fez o caso a favor da riqueza da cultura como termo antropológico muito melhor do que eu jamais poderia fazer e eu não vou tentar fazê-lo aqui.

Talvez, rapidamente e por causa de uma inclinação para travessuras, eu me faça de advogado do diabo e tente resgatar até os aspectos mais criticados neste debate, especificamente, “as pessoas que escrevem culturas”. Estes talvez sejam culpados por incentivar imitadores que reduzem cultura a “meras representações”, mas eles mesmos – estou pensando aqui em antropólogos como George Marcus, James Clifford, Paul Rabinow – leram Foucault, e Foucault leu J. L. Austin, e nenhuma dessas pessoas foi enganada pelos velhos dualismos cartesianos. Eles estavam bem conscientes de que – como Viveiros de Castro escreve de forma deleuziana – “todo pensamento é inseparável de uma realidade que corresponde ao seu exterior”, ou, como é mais forçosamente dito na introdução ao volume Thinking Through Things de Henare et al., “conceitos são reais e a realidade é conceitual”. Em outras palavras, eu seria bem mais generoso em termos de quem incluo dentro desta consagrada família teórica do construtivismo radical (que é essencialismo radical expresso ao contrário). Pelos meus cálculos de parentesco, Austin, Foucault e Rabinow, mas também outros como Ardener e com ele a “escola de estudos de identidade em Oxford”, por exemplo, são todos “dos nossos”, tanto quanto Deleuze e Latour. Eu traço a linha em Bourdieu, entretanto – (caso você pense que eu não tenho nenhum critério).

Então um jeito de argumentar a favor dessa moção aparentemente indefensável seria restaurar a cultura em todo o seu potencial como palavra antropológica – mostrar que ela é, ou melhor, que ela foi e pode ser, tão boa quanto a ontologia para fazer o que a ontologia faz, ou seja, lidar não somente com uma pluralidade de visões de mundo, mas com uma multiplicidade real de mundos. Teríamos, em todo caso, que remover a desdenhosa palavra “apenas” da moção. Ontologia é outra palavra para cultura, e isso é ótimo! Ou poderíamos até reverter a afirmação: quando usada plenamente, cultura é apenas outra palavra para ontologia.

Mas eu gostaria de argumentar de modo ligeiramente diferente. Vou começar com uma pergunta: qual é, exatamente, a relação entre ontologia e cultura implicada na moção? Se ontologia é apenas outra palavra para cultura, não é a mesma coisa que a cultura. Ou melhor, é a mesma, mas diferente. É mais uma palavra para cultura, uma outra palavra para cultura. Essa declaração, com efeito, abre espaço para que haja muitas diferenças entre a ontologia e a cultura, diferenças que as tornam outras uma para a outra. Então em que sentido estou pensando que elas são palavras uma para a outra, e não somente, digamos, palavras uma contra a outra? Elas são palavras uma para a outra porque, dentre todas as suas diferenças, há uma diferença que as relaciona. A diferença que relaciona a cultura com a ontologia é a diferença para as quais as duas apontam. Ontologia e cultura são duas palavras que apontam para um outro – e é nesse sentido que elas apontam uma para a outra.

Em outras palavras, ontologia é outra palavra para trazer aos antropólogos o fato da diferença, da alteridade. É isso que ontologia e cultura têm em comum: as duas estão apontando para o fato de que há outros, que a antropologia é, nas palavras de Viveiros de Castro, o tipo de cogitação que “assume a presença virtual do Outro como sua condição”. A mudança da Cultura singular com letra maiúscula para a multiplicidade de culturas no final do século XIX e a mudança da Ontologia única da filosofia para uma antropologia das ontologias podem, então, ser vistas como movimentos análogos – as duas servem para inscrever a diferença no coração do projeto antropológico. É claro, não se trata de uma diferença opressiva e exclusiva, mas de uma diferença relacional e produtiva – pelo menos essa é a esperança. É aqui que o conceito de ontologia, semelhante ao conceito de cultura, irá permanecer ou cair em última instância – voltarei a esse ponto posteriormente.

Ontologias geralmente são introduzidas quando antropólogos sentem que a cultura parou de desempenhar sua função, qual seja, a de levar a diferença suficientemente a sério. A necessidade da palavra ontologia vem de uma suspeita de que a diferença cultural não é diferente o suficiente, ou então de que a diferença cultural foi reduzida pelos críticos culturais a um mero efeito da instrumentalidade política. Em contraste, a ontologia é uma tentativa de levar os outros e sua real diferença a sério. É nesse sentido que a ontologia vem substituir a cultura, num tempo em que a cultura perdeu algo de sua pujança analítica e retórica. Para usar uma metáfora monetária, poderíamos sugerir que houve uma hiperinflação do termo “cultura”: a noção de diferença cultural foi trazida para o vocabulário geral, reduzida a um mero jogo representacional, exposta como subserviente às necessidades das políticas de identidade. Como resultado, ela sofreu uma grave deflação como termo que possa designar diferenças reais. A virada para a ontologia é, então, um tipo de retorno para um padrão-ouro, um movimento poderoso para reinscrever a diferença no próprio coração do mundo – ou pelo menos no coração do método antropológico.

Até aqui tudo bem, e essa interpretação da moção parece ser relativamente inconteste: ontologia é apenas outra palavra para cultura na medida em que as duas são maneiras antropológicas de falar sobre diferença. Elas falam diferentemente sobre diferença e alguns diriam que a ontologia começa onde a cultura falha. Mas há uma continuidade heurística básica aqui. Isso é tão inconteste que é quase banal – é algo que valha a pena dizer?

Talvez, surpreendendo ninguém, eu acho que sim. Porque quando se trata de pensar sobre diferença, a cultura tem um passado manchado. É só olhar para o debate prévio do GDAT: “na posição relativista cultural padrão, a diferença era diversidade e diversidade significava que há grupos de pessoas com propriedades diferentes” (2000). O modelo para isso era a diversidade de espécies e a diversidade cultural era modelada de acordo com a biodiversidade. Esse tipo de diversidade é menos palatável e eu concordo com a afirmação de Ingold de que: “o que estamos buscando para a antropologia é um jeito diferente de articular o que nosso entendimento de diferença é” (2000). Similarmente, Annemarie Mol, seguindo Strathern, nota como é importante – e como é difícil – ir além dessas versões de diferença cultural, que propõem um mundo feito de “pacotes culturais, coerentes internamente e diferentes do que está em outros lugares” (2002).

É por isso que não é banal apontar para a continuidade heurística entre os usos da cultura e da ontologia na antropologia. É importante lembrar que, na medida em que a ontologia pega da cultura o fardo pesado de lidar com a diferença, também pega o difícil problema de como essa diferença deve ser localizada, situada, delimitada. Eu não estou, é claro, argumentando que os usos antropológicos da ontologia necessariamente replicam as versões limitadas da diferença cultural denunciadas acima. Annemarie Mol, já citada, é um exemplo marcante do oposto: sua descrição da ontologia na prática médica é radicalmente situada, localizada, particular (em uma palavra, etnográfica) e ainda assim é incomensurável com qualquer grupo de pessoas – sua descrição é de um hospital na Holanda, mas certamente não é uma história sobre uma ontologia especificamente holandesa, por exemplo (Mol, 2002, p. 170-83). Similarmente, a afirmação de Henare et al. de que “há tantas ontologias quanto há coisas através das quais pensar” (2006, p. 27), sugere uma noção de diferença que está distante daquela dos pacotes culturais associados com grupos de pessoas.

O que estou dizendo, porém, é que enquanto a ontologia pode ser usada de maneiras sutis, nós não devemos nos deixar levar por um falso senso de segurança ao contrastar a velha e escusa limitação da diferença cultural com a muito mais sutil multiplicidade das ontologias. Como Annemarie Mol diz poeticamente: “generalizações sobre ‘a literatura’ juntam escritos díspares que tem almas diferentes” (2002, p. 6). Isso é verdade tanto para “a literatura” sobre ontologia quanto para “a literatura” sobre cultura. Dentro de cada literatura há multiplicidades e essencialismos, coisas que são radicalmente novas e coisas que são trazidas de outras posições pragmáticas e teóricas prévias. Para começar, a resiliência do discurso antropológico tende a empurrar novas palavras para velhas ranhuras. Na medida em que ontologia é usada para falar sobre diferença, ela continua aparecendo onde se esperava cultura. Sob a pressão, talvez, da convenção antropológica, muitas descrições de ontologia especificam como seus assuntos populações humanas, concebidas amplamente em termos geográficos: os Ameríndios, os Maori, os Melanésios ou os Swazis. Não pode ser meramente coincidência que o desenho de ontologias díspares frequentemente equivalha, na prática, ao que outrora seria chamado de grupos culturais. Seria possível, a princípio, correlacionar diferenças ontológicas entre dois especialistas em rituais Jain discordando sobre o jeito correto de conduzir um ritual puja específico, entre aldeões nacionalistas e antinacionalistas no norte da Córsega, e assim por diante – mas isso não tem sido a norma em descrições antropológicas de ontologia até agora.

Para alguns, como Eduardo Viveiros de Castro, esse zoneamento da ontologia não apenas em pessoas, mas em um “povo”, é um movimento explicitamente tático e político, a extensão lógica de um essencialismo estratégico anterior, exercido a despeito de certas ressalvas acerca dos perigos envolvidos nesse movimento:

A imagem do Ser é obviamente terreno analógico perigoso para pensar imaginações conceituais não-ocidentais, e a noção de ontologia não está isenta de riscos… Entretanto, eu acho que a linguagem da ontologia é importante por uma razão específica e, digamos, tática. Ela age como contramedida para um truque desrealizante frequentemente usado contra o pensamento do nativo, que transforma esse pensamento em um tipo de fantasia sustentada, reduzindo-o a dimensões de uma forma de conhecimento ou representação, ou seja, a uma “epistemologia” ou uma “visão de mundo” … Concluirei dizendo mais uma vez que a antropologia é a ciência da autodeterminação ontológica dos povos do mundo e que é, então, uma ciência política no sentido mais pleno (Viveiros de Castro, 2003, p. 18).

Este não é exatamente o lugar para um debate sobre essencialismo estratégico, mas esses usos táticos da ontologia vão bater de frente com o problema familiar colocado diante de usos estratégicos similares da cultura: quem está dentro e quem está fora do “povo”? Quem decide sobre esse pertencimento? É possível pertencer a mais de um povo? E assim por diante. Como Viveiros de Castro sugere, firmar essas distinções no Ser torna as questões mais urgentes e arriscadas do que eram antes.

E há também o famoso metacontraste entre ontologia ocidental ou euroamericana e uma pluralidade de ontologias não-ocidentais lá fora. Eu não trarei as já conhecidas críticas à consideração literal dessa distinção. Como Tim Ingold nota sobre os termos “ocidental” e “moderno”:

Toda vez que me pego usando-os, eu mordo os lábios de frustração e desejo poder evitá-los. As objeções aos conceitos são bem conhecidas: que na maioria das descrições antropológicas, eles servem como um pano de fundo largamente implícito com o qual se contrasta o “ponto de vista do nativo”; que muito da munição filosófica para a crítica do tão chamado pensamento ocidental ou moderno vem diretamente da própria tradição ocidental… que quando conhecemos bem as pessoas – mesmo os habitantes de países nominalmente ocidentais – nenhuma delas acaba sendo um ocidental puro sangue… e que a tradição ocidental de pensamento, se examinada de perto, é tão variada, multivocal, historicamente variável e plena de conflitos quanto qualquer outra (2000, p. 63).

Marilyn Strathern rebateu essas objeções preventivamente quando escreveu em The Gender of the Gift (O gênero da dádiva):

Eu gostaria de esboçar um certo conjunto de ideias sobre a natureza da vida social na Melanésia colocando-as contra ideias apresentadas na ortodoxia Ocidental. Minha descrição não exige que o segundo conjunto de ideias seja ortodoxo entre todos os pensadores Ocidentais; o lugar que elas têm é uma posição estratégica interna a estrutura da descrição atual (1988, p. 12).

Mais uma vez, não estou sugerindo que há algo necessariamente errado em transpor esse binômio do reino da “cultura ocidental” para aquele da “ontologia euroamericana”. Mas eu estou sugerindo que as mesmas questões surgem em relação à natureza dessa distinção: é meramente heurística ou é a descrição de um estado de coisas? A mudança da cultura para a ontologia não nos livra dessa questão; pelo contrário, só a torna mais aguda.

Como disse no início, eu me posicionei de várias formas para argumentar a favor de uma proposição impossível. Ontologia, é claro, não é a mesma coisa que cultura, se essas palavras tiverem que ter qualquer significado. Mesmo no uso antropológico, o campo mais limitado no qual escolhi argumentar, ontologia não é o mesmo que cultura. Meu argumento foi, resumidamente, que ontologia é uma outra palavra para cultura porque e na medida em que as duas palavras, enquanto heurística antropológica, são usadas para apontar diferença. Aceito que isso é bem tênue e eu estou totalmente resignado à surra retórica que provavelmente resultará da minha posição, ou mesmo da minha tentativa de argumentar a favor de uma moção colocada em termos tão provocativos. Meus amigos provavelmente estavam preocupados com razão. Mas o ponto sério por trás da jocosidade é que os dilemas difíceis que acometeram o estudo antropológico da diferença cultural não desparecem quando mudamos para uma antropologia da alteridade ontológica. Quando muito, os dilemas são agudizados. Se a moção falhar em carregar o debate mas nós conseguirmos, no processo, avançar o ponto e incitar alguma discussão sobre que tipo de diferença é a diferença ontológica, então esse será um fracasso produtivo.

Referências:

Bashkow, I. (2004) ‘A Neo-Boasian Conception of Cultural Boundaries’, American Anthropologist 106(3): 443–58.

Henare, A., M. Holbraad and S. Wastell (eds) (2006) Thinking Through Things: Theorising Artifacts Ethnographically. Cambridge: Cambridge University Press.

Ingold, T. (2000) The Perception of the Environment: Essays in Livelihood, Dwelling and Skill. London: Routledge.

Mol, A. (2002) The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. London: Duke University Press.

Strathern, M. (1988) The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. London: University of California Press.

Viveiros de Castro, E. (2003) ‘AND’, Manchester Papers in Social Anthropology 7.

Martin Holbraad: Contra a moção (2)

Certa vez, em um seminário, ouvi uma proeminente filósofa preceder com um pedido de desculpas a pergunta que faria ao apresentador, um antropólogo igualmente eminente, antes de começar a tentar demolir o paper que havia acabado de ouvir: “sou uma filósofa”, disse ela, “e isso significa que penso devagar”. Em um palpite, penso que a sugestão de que “ontologia” pode ser tomada como uma nova palavra para “cultura” provocaria na aludida filósofa uma reação mordaz similar. Isso se daria em parte porque a absurdidade de tal sugestão é autoevidente para os filósofos pelo fato de que eles estão interessados apenas em metade dela. Seja como for, os filósofos assumem que a ontologia é um tópico que merece reflexão profunda, uma vez que ela diz respeito a pensamentos e princípios ‘últimos’, a respeito de que tipos de coisas existem, e assim por diante. A cultura, por outro lado, é um fenômeno bastante vulgar que flutua na superfície do pensamento. Contingente e empírica, e em grande parte irreflexiva e sem escrúpulos, a cultura é um assunto que demanda relativamente pouco esforço mental, e é melhor deixá-la para os antropólogos. Então, de uma perspectiva intuitiva e visceral, eu imagino que os filósofos tenderiam a estar do nosso lado do debate, contra a moção.

Quero argumentar que, enquanto antropólogos, podemos nos dar o luxo de apreciar tal aliança, por mais irritante que ela possa parecer. Isso em dois sentidos. Primeiro, nós podemos nos aliar aos filósofos em um sentido fraco, e apenas para propósitos deste debate, retardando um pouco nosso pensamento, de modo a levar em conta alguns dos pensamentos mais claros que os filósofos podem ter tido, atendo-nos à ‘sua’ metade da moção, ou seja, a ontologia. A meu ver, é precisamente porque, na antropologia, nosso pensamento sobre tópicos como esse é, frequentemente, demasiado rápido que a moção, tal como está – embora totalmente errada –, é na verdade uma descrição etnográfica bastante precisa do atual estado de coisas da disciplina. Nove em cada dez vezes, quando vemos a palavra “ontologia” ser mencionada num seminário de antropologia (e por vezes até em textos escritos), o que se ouve é um sinônimo empolado e modernoso de “cultura”. Um sinal indicador desse fenômeno (e vou voltar a este ponto mais adiante) é a tendência comum de marcar a palavra com um pronome possessivo: “nossa” ontologia, em oposição à “deles”, e assim por diante, exatamente como se faz com a palavra “cultura”. Portanto, o desafio é ser o mais claro possível sobre o que uma virada no projeto antropológico, em que passamos a pensá-lo não em termos de ‘cultura’, mas de ‘ontologia’, pode significar.

O segundo sentido em que podemos nos aliar à filosofia é mais forte e vai ao cerne do meu argumento contra a moção do presente debate. Quero argumentar que o princípio-chave de uma abordagem ontológica na antropologia, em oposição a uma abordagem culturalista no sentido mais amplo, é que nela a análise antropológica se torna uma questão não de aplicar conceitos analíticos a dados etnográficos, mas sim de permitir que os dados etnográficos atuem como alavancas – os grandes arquimedianos! – para a transformação de conceitos analíticos. Em vez de nos preocuparmos com a melhor forma de utilizar os conceitos que temos à nossa disposição para “explicar” o que encontramos nas nossas etnografias ou para “interpretá-los” (sendo o contraste entre explicação e interpretação o ‘ur-sprung’, o dilema primário do culturalismo), deveríamos preocupar-nos com o fato de que, quando chega o momento decisivo na etnografia, os conceitos que temos à nossa disposição podem não servir nem para descrever adequadamente os nossos dados, que dirá “explicá-los” ou “interpretá-los”. Nossa tarefa, então, deve ser a de localizar as inadequações de nossos conceitos, a fim de chegar a conceitos melhores – uma tarefa mais associada à filosofia do que a qualquer outra forma das ciências, ou das “artes” mais suaves. Portanto, se houvesse um slogan de uma só palavra para uma abordagem ontológica na antropologia, seria um slogan que alguns filósofos gostariam de pensar como seu: “conceitualização”!

A principal premissa dos meus comentários sobre tudo isso é que alguns podem achar polêmico, embora eu ache que não deveriam. O que mais distingue a antropologia de outras disciplinas, creio eu, é o seu peculiar investimento no que passou a ser conhecido como ‘alteridade’. Agora, dizer isso definitivamente não é reivindicar que os antropólogos não estão legitimamente interessados em todos os outros tipos de coisas. Como os colegas de outras disciplinas, os antropólogos estão bastante preocupados com as taxas de suicídio, ou com os movimentos sazonais dos pastores, ou com os efeitos da mídia nas democracias liberais, que podem, todos, não ter muito a ver com alteridade, prima ou até mesmo ultima facie. Alguns antropólogos (e acho que o professor Carrithers é um deles) podem até chegar a teorizar sobre as semelhanças que unificam a espécie humana – os denominadores comuns da humanidade. Minha premissa é apenas que seria impossível avançar em um tal programa para a antropologia, de modo adequado, sem também levar em conta o seu profundo e talvez mais distintivo interesse nas questões relativas à diferença. Para ver o quanto isso deveria ser incontestável, basta estabelecer uma lista dos dez principais debates quintessencialmente antropológicos, e ver quantos deles se voltam para questões de alteridade: casamento entre primos, gêmeos, magia versus religião, dádiva versus mercadoria, casta versus classe ou, mais recentemente, novas tecnologias reprodutivas, múltiplas “modernidades” e até mesmo a antropologia do espaço sideral. Embora comprovadamente não seja uma condição suficiente para demarcar o campo intelectual da antropologia, a alteridade é certamente uma condição necessária.

Meu argumento é que a diferença predominante entre as abordagens ontológica e culturalista na antropologia diz respeito à questão de como se deve entender a noção de alteridade. Na verdade, embora eu não tenha nem o tempo nem a expertise necessários para entrar na história da ideia de cultura em todos os seus detalhes, é justo, creio, dizer que nos argumentos antropológicos o seu principal papel tem sido precisamente o de fornecer uma forma de pensar sobre os tipos de exemplos de alteridade que enumerei. Assim, fenômenos como a magia, as formas de troca de dádivas ou o cristianismo africano são designados como “culturais” precisamente na medida em que instanciam “diferença”. No entanto, podemos também notar que essa forma de pensar a diferença é muito carregada de pressuposições. Em particular, ela está ligada a uma forma de pensar que provavelmente remonta até a distinção grega antiga entre aparência e realidade. De acordo com essa imagem, as latitudes da diferença cultural – gêmeos podem ser pássaros, espíritos poderosos ou irmãos geneticamente idênticos – são uma função do fato de que as pessoas, individual ou coletivamente, são capazes de representar o mundo ao seu redor de maneiras variadas. Assim, o mundo é como realmente é – os gêmeos são o que eles são –, mas podem aparecer para pessoas diferentes de forma diferente: a natureza é uma só, as culturas são muitas.

Agora, como Eduardo Viveiros de Castro argumentou com mais força que todos os outros, penso eu, a primeira coisa a notar sobre essa forma inteiramente intuitiva de pensar a alteridade é que, em si mesma, ela instancia uma posição ontológica particular, isto é, um conjunto particular de pressuposições sobre que tipos de coisas existem. Existe um mundo, cuja principal propriedade é ser único e uniforme. E existem representações do mundo, cuja principal propriedade é a de serem plurais e multifacetadas dependendo de quem as detém. Ontologicamente falando, é claro que essa é uma posição ‘dualista’, relacionada a todo um campo de dualidades interligadas: corpo e mente, prática e teoria, númeno e fenômeno, experiência e reflexão, significado e significante, estrutura e agência e assim por diante. Mas o que é notável é que, embora os antropólogos tenham feito um nome para si mesmos, argumentando contra a validade a priori de versões particulares de tais dualidades, eu não conheço nenhuma posição teórica na antropologia que se afaste da pressuposição básica de que as diferenças em que os antropólogos estão interessados (‘alteridade’) são diferenças na forma como as pessoas ‘veem o mundo’ – nenhuma posição, isto é, nenhuma que não a ontológica, em favor da qual eu vou advogar em um minuto.

Na verdade, podemos notar que os chamados “construtivistas sociais” (também conhecidos como pós-modernistas, relativistas, etc.), que geralmente não podem suportar qualquer tipo de dualismo, são indiscutivelmente os mais extremos a esse respeito. Para eles, tudo que existe são pontos de vista diferentes: pontos de vista sobre pontos de vista, representações de representações, cultura ao quadrado, natureza desaparecida. Mas essa refutação putativa do chamado “cartesianismo” apenas amplia a premissa básica do dualismo, que é a de que a alteridade só pode ser entendida como uma divergência entre representações contrastantes da realidade. Forçado a escolher, como Bruno Latour também disse em algum lugar, eu sempre optaria pelos adversários tradicionais dos construtivistas, os realistas (aka positivistas, universalistas, etc.). Pelo menos eles são francos a respeito de seu dualismo iluminista, e se orgulham dele. Isso também vale para os antropólogos cognitivos que, em um movimento no qual espelham a amputação da natureza produzida pelos construtivistas, têm argumentado que as próprias representações são tão naturais quanto as árvores, uma vez que não são nada mais do que o produto de processos cerebrais (natureza ao quadrado, cultura supostamente desaparecida). Porque eles também se apegam às representações como o veículo para explicar tanto a razão pela qual as pessoas veem o mundo de forma diferente quanto aquela pela qual muitas vezes também apreendem o mundo erroneamente – a preocupação cartesiana. Na linguagem cognitivista, ‘representações’ é, de fato, apenas mais uma palavra para ‘cultura’.

Agora, o fato de que mesmo as tentativas mais influentes de superar o dualismo natureza/cultura confirmam sua premissa básica de que a alteridade é uma função de representação, só mostra o quão poderoso é esse modelo intuitivo de diferença. De fato, como argumentei em outro lugar, juntamente com Ami Salmond (anteriormente Henare) e Sari Wastell (em Henare et al., 2007), o poder formidável da fórmula “uma natureza, muitas culturas” se deve parcialmente, assim como no rolo compressor, sua forma circular. Se for assinalado que tanto os filósofos como os antropólogos mostraram que há posições ontológicas diferentes disponíveis, a resposta pronta dos culturalistas é sempre efetiva: é de fato possível cogitar ontologias alternativas, mas fazê-lo é apenas exercer a capacidade de cada um de representar o mundo de diferentes maneiras. A diferença ontológica, então, torna-se uma variável dependente do que Karl Popper chamou de ‘sistema fechado’. Quanto ao psicanalista, os ataques dos pacientes à psicanálise apenas demonstram a compra de ideias como “transferência” ou “repressão”, de modo que, para o culturalista, qualquer sugestão de que a alteridade possa ser algo diferente de uma função de representações culturais é, em si mesma, apenas mais uma outra representação cultural. Para dar um exemplo bem conhecido, o significado ontológico da afirmação de Marilyn Strathern de que a distinção entre natureza e cultura tem pouca utilidade no Monte Hagen é facilmente anulado com a afirmação de que a cultura dos monte-hagenianos é aquela em que a natureza e a cultura não são distinguidas. A moção de hoje, a de que a ontologia é apenas uma outra palavra para cultura, é circular apenas desse modo.

Segue-se, então, que ser contra a moção é ser contra a ideia, intuitiva e dominadora, de que as diferenças em que os antropólogos estão interessados devem ser ipso facto diferenças na forma como as pessoas representam o mundo. A alternativa, como um número de antropólogos e filósofos têm argumentado há algum tempo, deve ser contar com a possibilidade de que a alteridade seja uma função da existência de mundos diferentes per se. Nessa perspectiva, quando os Nuer dizem que os gêmeos são aves, o problema não é que eles veem os gêmeos de forma diferente da que nós, que pensamos que os gêmeos são irmãos humanos, vemos, mas sim que estão falando de gêmeos diferentes. A interessante diferença, em outras palavras, não é representacional (leia-se “cultural”), mas ontológica: o que conta como gêmeo quando o nuer fala dele como sendo um pássaro é diferente do que conta quando se fala do gêmeo como sendo humano, tendo um certo tipo de DNA, e assim por diante.

Agora, eu sei que essa maneira de falar provoca um frenesi chauvinista em algumas pessoas, batendo em mesas para mostrar que elas estão lá, ou beliscando os gêmeos nuer para ter certeza de que eles vão dizer “ai!”. E eu seria o último a negar que as implicações da abordagem de “muitos mundos” que a palavra “ontologia” representa na antropologia são de fato de longo alcance e radicais – o que, naturalmente, é apropriado e bom no que diz respeito à capacidade de derrotar a moção de hoje. Mas, para os propósitos deste texto, precisamos apenas nos concentrar na questão da alteridade: qual é o significado de dizer que o significava “gêmeo” para o nuer que falou com Evans-Pritchard era diferente do que um gêmeo significava para o próprio Evans-Pritchard? E qual é realmente a diferença entre dizer isso e dizer que o nuer e Evans-Pritchard apenas representavam os gêmeos de forma diferente, como a perspectiva culturalista o teria feito?

A questão, eu argumento, simplifica-se quando pensamos na forma que o problema da alteridade assume em cada caso. Tomemos o culturalismo em primeiro lugar. Nessa visão, para me ater ao exemplo, o nuer e Evans-Pritchard (ou ‘nós’, como ele também poderia dizer) simplesmente discordam sobre o que são gêmeos: eles pensam que são pássaros, enquanto nós pensamos (ou sabemos até) que não o são. E como o problema da alteridade toma a forma de um desacordo – um desacordo transcultural, se preferir –, a sua solução antropológica deve consistir em explicar os fundamentos de tal divergência em termos de pontos de vista: por que razão deveria o nuer (ou quem quer que seja) pensar que os gêmeos são aves (ou o que quer que seja)? É porque pensar desse modo serve a algum propósito para eles (funcionalismo)? É porque existe alguma diferença sobre a forma como o cérebro funciona (cognitivismo)? É porque tal visão faz sentido no contexto das outras visões que eles têm (interpretativismo)? Ou eles estão apenas sendo metafóricos de alguma forma (simbolismo)?

Agora, o caráter radical da tomada ontológica é devido ao fato de que ela nega a premissa principal de todas essas questões, que é aquela segundo a qual, quando os Nuer dizem que os gêmeos são pássaros, nós sabemos, em primeiro lugar, do que eles estão falando. Na verdade, a premissa não tem razão de ser, pois, como os filósofos poderiam dizer, há uma possibilidade alternativa que é pelo menos igualmente plausível. Nosso aparente desacordo com o nuer sobre a natureza dos gêmeos pode muito bem ser devido a mal-entendidos. O nuer pode parecer que está afirmando que os gêmeos são aves, mas pode, na verdade, estar dizendo algo muito diferente – algo que não conseguimos compreender, não porque contradiga o que presumimos ser verdade sobre os gêmeos, mas porque vai além dos nossos próprios pressupostos. Como martelos para os quais tudo se parece com pregos, podemos estar pensando que os Nuer estão falando daquilo que entendemos por “gêmeos” e “aves”, embora possam, na verdade, estar concebendo algo completamente diferente. Os Nuer, em outras palavras, podem estar falando para além de nós e não contra nós.

É claro que, para que essa possibilidade exista, é preciso um certo grau de humildade. A sugestão de que o nuer (ou qualquer outra pessoa) possa falar ou agir de formas que não possamos entender pressupõe que nosso repertório de conceitos possa ser de alguma forma inadequado para a tarefa. Em comparação, a assunção culturalista da alteridade parece francamente presunçosa, e isso de duas maneiras. Em primeiro lugar, ao conceber toda diferença como discordância, os culturalistas imaginam ter, eles mesmos, poderes ilimitados de compreensão. Por mais incomum e analiticamente desafiador que seja (em termos de explicação, interpretação e assim por diante), os dados etnográficos devem, por algum milagre, sempre ser pelo menos passíveis de uma descrição direta em termos inteligíveis para o antropólogo: “os Nuer pensam que os gêmeos são pássaros”. Além disso, embora a noção de “desacordo” possa soar confortavelmente liberal, na verdade está longe disso. Dizer que o Nuer discorda de nós sobre a natureza dos gêmeos é apenas dizer que eles negam o que tomamos como verdadeiro ou, em outras palavras, que afirmam o que tomamos como falso. Se sabemos o que significa “gêmeo” e o que significa “ave”, também sabemos que os gêmeos não são aves. Nenhuma dose de camuflagem relativista pode nos livrar do fato de que, no que nos diz respeito, o nuer está dizendo algo errado.

Assim, o que torna a abordagem ontológica da alteridade não só muito diferente da abordagem culturalista, mas também muito melhor, é que ela nos livra da posição absurda de pensar que o que torna os sujeitos etnográficos mais interessantes é que eles compreendem mal as coisas. Pelo contrário, e por essa razão, o fato de as pessoas que estudamos poderem dizer ou fazer coisas que nos parecem erradas apenas indica que atingimos os limites do nosso próprio repertório conceitual. Quando até mesmo a nossa melhor descrição do que os outros pensam é algo tão flagrantemente absurdo como “gêmeos são pássaros”, então temos motivos para suspeitar que há algo errado com a nossa habilidade de descrever o que os outros estão dizendo, e devemos fazer isso ao invés de nos perguntarmos o que eles estão realmente dizendo, sobre o que nós, a fortiori, não sabemos nada além de nosso próprio mal-entendido. A tarefa antropológica, então, não é explicar por que os dados etnográficos são como são, mas sim compreender o que eles são – em vez de explicação ou de interpretação, o que é necessário é a conceitualização. E note que essa tarefa efetivamente inverte o próprio projeto da análise antropológica. Em vez de usarmos nossos próprios conceitos analíticos para dar sentido a uma determinada etnografia (explicação, interpretação), usamos a etnografia para repensar os nossos conceitos analíticos. Em vez de perguntar por que haveriam os Nuer de pensar que os gêmeos são aves, deveríamos perguntar como precisamos pensar em gêmeos e em aves (e todos os seus corolários relevantes, tais como humanidade, irmãos, capuz, animalidade, voo ou o que for) para chegar a uma posição a partir da qual a alegação de que os gêmeos são aves não se mostra mais como um absurdo. O que devem ser os gêmeos, o que devem ser as aves, etc.?

Eis, então, o que é uma “ontologia”: o resultado das tentativas sistemáticas dos antropólogos de transformar seus repertórios conceituais de modo a serem capazes de descrever o seu material etnográfico em termos que não sejam absurdos. E, apenas para deixar o argumento o mais claro possível, note como isso é diferente de “cultura”. Se a cultura, em qualquer nível de abstração, seja ela privada ou pública, cosmológica ou prática, e assim por diante, é um conjunto de representações produzidas pelas pessoas que estudamos, então se pode apropriadamente dizer que ela ‘pertence’ a às pessoas: a “cultura nuer”, a cultura “ocidental”, etc. Não é assim para a ontologia, que é apenas um conjunto de pressupostos postulados pelo antropólogo com propósitos analíticos. De fato, vale a pena ressaltar que tal exercício de criatividade conceitual não precisa ser territorializado com referência a quaisquer coordenadas geográficas. Enquanto antropólogos, podemos achar particularmente excitante ter nossos pressupostos analíticos desafiados por pessoas que parecem diferentes de nós mesmos – na verdade, eu diria mesmo que quanto mais exóticos forem os fenômenos que estudamos, mais produtivos serão esses encontros. No entanto, a distância geográfica ou, atrevo-me a dizer, cultural não é uma condição necessária para a alteridade. Formalmente, tudo que você precisa para definir o jogo da alteridade é um conjunto de pressupostos iniciais e algum corpo de material que pareça contradizê-lo. O conteúdo que você coloca em cada lado dessa desequação (disequation) depende de você – um poema difícil, uma fórmula matemática ou as opiniões do seu parceiro sobre o amor podem ser igualmente “alter”, dependendo das pressuposições que você ‘sustenta’ em relação a eles. O que está em jogo são as ideias, não as pessoas que podem “sustentá-las”. Então, se, como o organizador original [Tim Ingold] desses debates disse notoriamente, antropologia é filosofia com as pessoas dentro, eu diria que ele está certo, mas apenas sem as pessoas.

Referências:

Henare, Amiria, Martin Holbraad and Sari Wastell (eds) (2007) Thinking through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London: Routledge.

Notas

[1] N. do T.: no original, “emplacement”.

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