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NOTAS SOBRE A PANDEMIA: Prólogo de Um Apartamento em Urano, por Virginie Despentes

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Por Virginie Despentes
Tradução: Thiago Grisolia

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Paul,

quando você me perguntou se eu queria escrever este prólogo, estávamos no apartamento que você ocupa no centro de Paris. Os lugares onde você se instala parecem sempre células monásticas. Um escritório, um computador, uns cadernos, uma cama com um montão de livros que jazem a seu lado. É estranho estar na sua casa sem estar na minha casa; você foi a pessoa com quem passei mais tempo na minha vida, e este afeto, estranho e familiar ao mesmo tempo, segue sendo um enigma para mim, como um sentimento a meio caminho entre o prazer e a dor, ou melhor, os dois ao mesmo tempo. Deve ser a nostalgia.

Você me perguntou se eu podia escrever este prólogo, e eu não pensei duas vezes antes de responder que sim. Vivíamos juntos quando começou a escrever estas colunas para o jornal Libération, e depois que nos separamos você continuou me enviando seus textos para que eu seguisse lendo seu francês. Todos sabemos que o Libération poderia muito bem ocupar-se disto. Mas essa era uma forma de conservar um vínculo. Para mim, uma maneira de continuar vivendo nas suas palavras, de não perder o fio de seu pensamento.

Sei como você escreve. Não sofre o bloqueio do escritor. Eu não seria capaz de fazer este tipo de crônica, porque a cada vez me afundaria em uma semana de pura angústia, uma semana igual a esta que acabo de passar antes de começar a escrever este prólogo. Pensei desde o início que este prólogo deveria ter cinco mil caracteres, o tamanho de seus artigos. Pensei em um planejamento, muito rápido, mas o que caracteriza o bloqueio é que mesmo que você saiba o que quer escrever e não se mova do escritório, continua sem que nada te ocorra. O planejamento que eu tinha em mente começava assim: “No dia em que escrevo este prólogo, você sai da delegacia onde havia ido denunciar as ameaças de morte que escreveram, essa mesma noite, na porta da sua casa.” Os mesmos insultos e ameaças de morte que apareceram pintadas na porta do local LGBT de Barcelona. Você me escreve por WhatsApp: “Saio da delegacia, minha mandíbula está travada e meus ossos estão frios. Não gosto de ir à polícia.” Mas essa não é a primeira vez que você vai à polícia por ameaças de morte desde que nos conhecemos. A primeira vez, te pedi que não desse importância, que não respondesse nada se te escrevessem dizendo que tinham intenção de te matar, descrevendo como iriam fazê-lo. Até que um ativista gay de Madrid, a quem haviam ameaçado de morte, foi atacado na frente de casa e dado como morto, ainda que tenha sobrevivido. Depois desse dia, quando você voltou a receber ameaças de morte, você foi para a delegacia. Me lembro de como explicou à polícia o que eram as micropolíticas queer. Isso é o que você sabe fazer: contar aos outros histórias que seriam incapazes de imaginar, e convencê-los de que é razoável querer que o inimaginável aconteça.

No dia em que escrevo este prólogo, o parlamentar brasileiro Jean Wyllys anuncia sua decisão de abandonar seu país porque teme por sua vida. E uma torrente de insultos homofóbicos cai sobre o jovem Bilal Hassani, representante da França no Eurovisión.

Quando você começou a escrever estes artigos para o jornal Libération, os principais meios de comunicação franceses apoiavam com entusiasmo as manifestações contra o casamento gay, como se fosse necessário promovê-las todo dia. Dar voz à intolerância, defender o direito dos fundamentalistas da heterossexualidade de expressar seu ódio. Era indispensável. Era o sinal, todos o ouvimos, do final de uma década de tolerância. Quando começou a escrever estas crônicas, você ainda se chamava Beto, não tomava testosterona com regularidade, mas falávamos de você no masculino, como você queria. Você chamava os biohomens de “peludos”, e isso me fazia rir. Hoje, ninguém que te visse na rua pensaria em te dizer “sinto muito, senhora” depois de ter se confundido e te chamado de senhor. Hoje você é um homem trans, e quando estamos juntos na rua o que mais me desconcerta não é que os homens te tratem melhor, mas que as mulheres já não se comportem da mesma maneira contigo. Te adoram. Antes, as meninas hétero não sabiam o que pensar da sua feminilidade masculina, talvez não se sentissem à vontade com você. Agora te adoram, não importa se andam na rua passeando com o cachorro, se vendem queijo ou se são camareiras: você agrada às mulheres, e elas te revelam isto como só elas sabem fazer, te enchendo de pequenas atenções gratuitas. Você sempre diz que o mais estranho de converter-se em homem é conservar intacta a memória da opressão. Você sempre diz que eu exagero e que as mulheres não prestam especial atenção a você. E isso me faz rir.

Uma vez reunidos, seus artigos desenham um skyline coerente. Me lembro de todos os artigos, e o momento em que foram publicados, mas é uma surpresa descobri-los do início ao fim. Uma enorme surpresa. Neles, várias histórias se desdobram ao mesmo tempo, às vezes entrecruzadas, em ritmos alternados. Em espiral, como diria Barthes, sempre ao redor dos mesmos pontos, mas nunca na mesma altura. Este é um livro diferente de seus outros livros, mais autobiográfico, mas acessível e, ao mesmo tempo, um livro que lembra o seu Testo junkie, em que você também tecia vários fios; “a trança”, você o chamava. Esta coletânea é outra trança. Há um fio desta história que concerne a nós: nossa separação e os anos posteriores. E outros fios que se vão entrelaçando, para formar outros assuntos. É também a história do fim das democracias no Ocidente. De como os mercados financeiros descobriram como podem funcionar bem dentro de regimes autoritários, inclusive melhor que nas democracias, pois de mãos e pés atados consumimos melhor. E é também a história dos refugiados confinados em campos de assentamento, ou assassinados no mar, ou abandonados à miséria em cidades opulentas que se proclamam herdeiras do cristianismo. Sei que você não estabelece um paralelo entre a situação dessas pessoas e a sua por gosto estético ou por postura de esquerda, mas porque você sabe, e você o sabe por sua infância de menina machona que cresceu em fins da ditadura franquista e que agora é trans, que é e será sempre um deles, porque a miséria, como diz Calaferte, “nunca é uma questão de força” moral ou mental ou de mérito. A miséria é como um caminhão que pode lançar-se sobre você, te agarrar e te esmagar a qualquer momento. E você não se esquece disso.

E esta é também, é claro, a história da sua transição: das suas transições. Sua história não é a da passagem de um ponto a outro, mas a história de uma errância, da busca de um intervalo como lugar da vida. Uma transformação constante, sem identidade fixa, sem atividade fixa, sem direção fixa, sem país. Você intitulou este livro “Um apartamento em Urano” porque você não tem nenhum apartamento na Terra, apenas as chaves de um lugar em Paris, como um dia você teve as chaves de um apartamento em Atenas. Você nunca se muda. Você se move, mas não se muda. A você não interessa fixar-se. Você detém um estado de clandestinidade permanente. Você muda de nome nos seus documentos de identidade para poder atravessar as fronteiras, mas, tão logo se chama Paul, escreve no Libération que não tem a menor intenção de adotar a masculinidade dominante como novo gênero: você deseja um gênero utópico.

É como se o já possível tivesse se convertido em uma prisão, e você, em um fugitivo. Você escreve entre os possíveis, e ao fazê-lo desdobra o que era impossível em possível. Você me ensinou algo essencial: não se pode fazer política sem entusiasmo. Fazer política sem entusiasmo é situar-se à direita. E você faz política com um entusiasmo contagiante, sem nenhuma hostilidade contra aqueles que exigem a sua morte, apenas com uma consciência da ameaça que representam para você, para nós. Você não tem tempo para a hostilidade, nem tampouco índole para a ira; desdobra mundos a partir das margens, e o surpreendente em você é essa capacidade para seguir imaginando outra coisa. Como se as propagandas escorregassem por você, e seu olhar fosse sistematicamente capaz de desestabilizar todas as evidências. É sua arrogância que te faz sexy, essa arrogância entusiasmada que te permite pensar em outros lugares, a partir dos interstícios, que te faz querer viver em Urano, que te leva a escrever em um idioma que não é o seu antes de dar conferências em outro idioma que também não é o seu… Passar de uma língua a outra, de um livro a outro, de uma cidade a outra, de um gênero a outro: as transições são seu lugar. E eu não quero abandonar nunca essa casa por completo, não quero nunca esquecer sua língua intermediária, sua língua da encruzilhada, sua língua em transição.

Esta é a ideia de planejamento que eu me havia feito, e queria concluir falando da obsessão que todos os regimes autoritários (de extrema direita, religiosos ou comunistas) têm de atacar os corpos queer, os corpos de puta, os corpos trans, os corpos fora da lei. É como se tivéssemos petróleo, e como se todos os regimes poderosos quisessem acessá-lo e para isso nos privassem da gestão de nossas terras. É como se fôssemos ricos em uma matéria-prima indefinível. Se interessamos a tanta gente, deve ser porque temos uma rara e preciosa essência. Do contrário, como explicar que todos os movimentos liberticidas estejam tão interessados em nossas identidades, em nossas vidas, em nossos corpos e no que fazemos em nossas camas?

E pela primeira vez desde que nos conhecemos, eu sou mais otimista que você. Imagino que as crianças nascidas depois do ano 2000 se negarão a ver-se presos a essa estupidez, e não sei se meu otimismo provém de um medo tão grande que eu me nego a enfrentá-lo, ou se vem de uma intuição justa, ou se enfim eu me aburguesei e digo a mim mesma que tudo continuará como está porque ainda tenho muito a ganhar. Não sei. Mas pela primeira vez em minha vida, sinto que toda esta violência que ressurge não é mais que o último gesto desesperado da masculinidade tradicional abusiva e violadora. A última vez que os ouvimos gritar e sair nos matando pelas ruas para conclamar a miséria que constitui seu marco de pensamento. Creio que as crianças nascidas depois do ano 2000 pensarão que seguir sob esta ordem masculinista (ou, em outras palavras, “tecnopatriarcal”) seria o mesmo que morrer e perder tudo.

E creio que essas crianças lerão seus textos, e que entenderão o que você propõe, e que te amarão. Por seu pensamento, por seu horizonte, por seus espaços. Você escreve para um tempo que ainda não aconteceu. Escreve para as crianças que ainda não nasceram e que viverão, como você, nessa transição constante, que é o próprio da vida.

E desejo todo o prazer do mundo ao leitor que entra em seu livro. Bem-vindo ao apartamento de Paul B. Preciado. Suba a bordo de uma cápsula da qual não sairá ileso, mas verá que nada do que te ocorrer será violento. Simplesmente, ao passar por estas páginas, verá que, pouco a pouco, e sem dar-se conta, o mundo começará a dar voltas por você, e a sensação de gravidade não será mais do que uma vaga recordação. Estará em outro lugar. E, ao sair desta leitura, saberá que esse espaço existe e que está aberto, que há um lugar onde é possível ser algo completamente diferente do que até agora te permitiram imaginar.

Para citar este post:

DESPENTES, Virginie. Prólogo, in: PRECIADO, Paul. Um Apartamento em Urano. Blog do Sociofilo, 2020. [publicado em 11 de junho de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/06/11/prologo-um-apartamento-em-urano-por-virginie-despentes

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