Por Nathalie Heinich
Tradução: Marília Bueno
Como qualquer evento vital imprevisto e brutal, a crise do coronavírus está produzindo a sua própria safra de regressões: uma epidemia de boatos, teorias da conspiração e fofocas de todo tipo – além, é claro, de uma incansável busca por culpados: dos chineses à globalização, do neoliberalismo às mudanças climáticas, da incapacidade das autoridades em adiantar acontecimentos ao governo maquiavélico. Todas essas são, provavelmente, táticas que visam recuperar uma aparência de controle sobre o que nos escapa.
E o que nos escapa, em primeiro lugar, não é só o controle sobre a nossa saúde futura, mas também, daqui para a frente, controle sobre a nossa própria vida cotidiana: em questão de dias foi tirado de nós – e por um bom tempo – a liberdade fundamental de poder ir para onde quisermos. Em memória recente, nunca tínhamos passado por nada assim.
No entanto, apesar de deslizes previsíveis (recusa em cumprir o isolamento, estratégias para contorná-lo, colapsos nervosos), a situação não está gerando – ao menos por ora – tumultos nem protestos em massa: os recalcitrantes não vão além do estágio individual (e às vezes são denunciados às autoridades locais). Podemos, portanto, perguntar o que torna essa situação relativamente suportável, apesar de tudo. No entanto, a resposta a essa pergunta não pode ser reduzida à existência de dois recursos essenciais, que são, tecnicamente, a capacidade de conectar-se remotamente com outras pessoas, graças às tecnologias de comunicação (a intensidade desses televínculos pode até levar a uma sobrecarga relacional); e, no nível moral, a sensação de que afinal de contas somos quase iguais diante da ameaça (o vírus não reconhece classes sociais), mesmo que afete mais os idosos e mesmo que, sobretudo, as consequências do confinamento sejam tudo menos igualitárias, já que diretamente ligadas às condições de vida.
Além da possibilidade de manter os vínculos à distância, e da relativa equidade de riscos à saúde, me parece que a principal razão da aceitação geral das medidas de contenção reside no fato de que elas exigem de nós um profundo senso de responsabilidade, pois requerem – e é justo que o façam – que ajamos como adultos. Isso significa que se espera que tenhamos consciência de que as nossas ações podem ser benéficas ou prejudiciais para os outros.
Vamos recordar: a primeira reação de muitos dos nossos concidadãos foi interpretar que as medidas coercivas estavam sendo implementadas para proteger a sua própria saúde. Isso poderia ter provocado revolta e rejeição nessas pessoas – pois, afinal de contas, que direito o poder público tem de mandar na minha vida? Então, se eu sou jovem e saudável, isso não diz respeito a mim, certo? Além do mais, eu não tenho o direito de assumir esses riscos se quiser? Felizmente, as campanhas governamentais avançaram um bom argumento: aderir ao isolamento não protege apenas você mesmo, mas também os outros – as pessoas que você ama, os estranhos com quem você cruza na rua, enfim, todos à sua volta. Em outras palavras, se você está em casa é porque não está sozinho; e, se você se afastou dos outros, é porque os outros existem – e também dependem de você. O mesmo vale não apenas para o isolamento, mas também para as máscaras: se você precisa usar máscara, não é tanto – ao menos pensávamos que não – para se proteger quanto para proteger os outros – e, em última instância, também para proteger a si mesmo.
E agora, graças à crise, foi possível que as pessoas se conscientizassem de que nem todo mundo é o alfa e o ômega da própria vida; de que há, acima do interesse individual, algo mais precioso, aquilo que chamamos de bem comum, o interesse geral. Mas aprendemos também que organizar a coexistência dessas duas coisas pode não ser muito fácil: nos encontramos divididos entre valores privados (nosso conforto, a necessidade de nos relacionarmos com pessoas queridas, nossa vontade de viajar, nossa liberdade) e valores públicos que justificam nossas ações (não contribuir para o espalhamento do vírus, não pôr em risco a saúde dos mais vulneráveis, não aumentar a carga de trabalho dos profissionais de saúde. O isolamento nos obriga a deixar de lado os nossos próprios desejos (afinal, tenho tanta pressa assim para encontrar o homem que amo?) e focar no futuro (tudo isso é temporário, e vai durar tanto menos quanto mais eu seguir as recomendações). Adiar a realização de desejos e projetar-se no futuro: isso é exatamente o que ensinamos às crianças com o intuito de ajudá-las a se tornarem adultas – ou seja: civilizadas.
Outro passo foi dado, diria Norbert Elias, nesse processo civilizatório que, para o bem, construiu as sociedades ocidentais educando as pessoas para algo mais do que a satisfação egoísta dos seus desejos imediatos e a expressão grosseira das suas necessidades corporais. E sem dúvida ele teria acrescentado que, com essa tomada coletiva de consciência da “interdependência” da qual a “sociedade dos indivíduos” se alimenta, também estamos testemunhando o declínio do homo clausus, essa ilusão espontânea segundo a qual o ser humano parece estar fechado em si mesmo, que é algo anterior e independente dos outros.
Fim da ilusão da onipotência individual, fim da fantasia de que a liberdade pessoal é a meta suprema: presos em casa, podemos finalmente refletir sobre o significado e a importância do conceito de interesse geral – e entender o quanto é imperativo preferir, aos valores do liberalismo econômico (direita) e libertário (esquerda), o conceito republicano de cidadania, que põe o bem comum acima da soma das liberdades individuais, para nos conectar não só com as pessoas que amamos ou com as que nos são próximas e queridas, mas com todos os nossos concidadãos e até mesmo com todos os habitantes do nosso triste planeta.
E eis que, após duas gerações forjadas no culto da soberania das crianças e na ideia de que “posso vestir o que eu quiser”, o sonho da onipotência recua, com todo o peso dos fracassos e ilusões corrosivas que carrega: definitivamente, há coisas mais importantes, e até mais emocionantes, do que a satisfação dos nossos desejos individuais. Porque também estamos, nós todos, conectados com algo maior do que nós, isolados, mas interdependentes, responsáveis, unidos e – apesar de tudo – orgulhosos disso.
Para citar este post:
HEINICH, Nathalie. Reflexões eliasianas sobre o “autoisolamento” na pandemia. (Tradução de Marília Bueno) Blog do Labemus, 2020. [publicado em 09 de julho de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/07/09/notas-sobre-a-pandemia-reflexoes-eliasianas-sobre-o-autoisolamento-na-pandemia-por-nathalie-heinich
Referência da tradução: HEINICH, Nathalie. Eliasian reflections on “self-isolation” in the pandemic. Disponível em: http://norbert-elias.com/nathalie-heinich-eliasian-reflections-on-self-isolation-in-the-pandemic/. Publicado em 05 de abril de 2020.
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