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Por que o frango atravessou a rua? (Parte 2): mais exercícios (bestas) de estilo, por Gabriel Peters, Lucas Faial Soneghet, Marília Bueno e Diogo Corrêa

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Clique aqui para acessar a parte 1 (por Gabriel Peters)

Por Lucas Faial Soneghet

Jürgen Habermas: 

A pergunta sobre a travessia do frango na rua não pode ser respondida satisfatoriamente se não forem dadas as condições pelas quais o mundo da vida se vê livre das distorções sistemáticas às quais está sujeito no capitalismo contemporâneo. Os sistemas de trânsito, a racionalidade técnica instrumental que rege o planejamento urbano e o funcionamento dos carros impedem a plena existência e potência emancipatória da ação comunicativa do e sobre o frango. Tal ação é ao mesmo tempo condição e satisfação da travessia do frango na rua. Para entender a travessia emancipatória galinácea, devemos olhar para três dimensões do ato comunicativo: o código normativo, o código lógico e o código subjetivo. Em outras palavras, o có-có-có da ação comunicativa. 

Michel Foucault:

A travessia do frango pela rua, ou na rua, é um fenômeno recente, datado de fins do século XVII e início do século XVIII. Falar de fenômeno seria enganoso, na medida em que se trata, para ser mais preciso, de uma articulação de estratégias, técnicas e táticas de poder que produzem efeito de verdade sobre o que vem a ser o corpo do frango e seu correlato, a rua pela qual esse corpo atravessa e na qual se constitui. Antes mesmo de se falar sobre a travessia do frango na rua, deve-se investigar o que é isso que é o frango e que aparece nos discursos jurídico-políticos e médico-científicos sobre a animalidade e o trânsito de corpos no espaço urbano. O “frango” é a categoria que é objeto e sustentáculo de um complexo de relações de forças na tessitura das quais emerge uma singularidade resultante de técnicas de esquadrinhamento, análise, decomposição e, em suma, um modo de individualização e subjetivação de elementos díspares no tempo e no espaço.

A rua, por sua vez, só aparecerá naquilo que veio a ser a “economia política” ao longo do século XVIII, quando a circulação dos “frangos” pelo espaço urbano se tornou um problema para uma série de tecnologias de poder. Dito de outro modo, a travessia do frango na rua é um princípio de inteligibilidade da relação entre corpos e espaços no seio da emergência das modalidades de poder-saber que até hoje perduram. O corpo do frango e o espaço da rua são os correlatos da singularidade anátomo-política que será codificada como “indivíduo” e do espaço que será demarcado como “território”.

Deleuze e Guattari:

O frango não é objeto nem sujeito, é feito de matérias compostas e diferentemente combinadas, de espaços e velocidades diferentes. Quando se atribui um frango a uma rua, esquecemos dos vetores múltiplos que compõem a rua enquanto materialidade instável realizada na travessia do frango. Simultaneamente, o frango é composto pela rua na travessia. Ora, tal correlação é simples e não deve ser tomada como ponto de partida. Tudo, as linhas e velocidades mensuráveis e fugidias, as territorialidades e agenciamentos que compõem a travessia do frango na rua não são um sistema, mas um rizoma. E é quando há ruptura no rizoma, esse sistema no qual travessia/frango/rua se entrelaçam e se entrecortam, que encontramos a sempre adiada resposta a pergunta: por que o frango atravessou a rua? Ou melhor, por que a rua atravessou o frango? Ou antes ainda, por que a travessia atravessou o frango e a rua?

Manuel Bandeira: 

Vou-me embora pro outro lado
Lá sou amigo do rei
Lá tenho o milho que eu quero
Na rua que atravessarei

Mário de Andrade:

Eu sou um frango, e sou trezentos e  cinquenta
Mas um dia afinal toparei comigo
Tenhamos paciência, franguinhos curtos
Só a travessia que condensa
E um dia afinal, minha rua servirá de abrigo

Carlos Drummond de Andrade:

Rua rua vasta rua
Se eu me chamasse Saracura
Seria uma rima, não seria uma analogia
Rua rua vasta rua
Mais vasta é a travessia

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Por Marília Bueno e Lucas Faial Soneghet

Gabriel García Márquez

No dia em que morreria, o frango levantou-se às cinco da manhã. Tinha sonhado que atravessava a rua cheia de figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho. O frango pôs calça e camisa de linha branco e rumou para a praça. Naquele dia, todos sabiam que o frango atravessaria a rua e que na travessia, seria atropelado. Todavia, ninguém podia entender a conjunção de tantas coincidências funestas que levariam a seu fim. Na hora de sua morte, o brilho diáfano dos olhos da ave se apagou e um cheiro de figos encheu o ar. Não havia figueiras na cidade.

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Por Diogo Corrêa

Deleuze e Guattari 

O frango funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. O frango respira, o frango aquece, o frango come. O frango caga, o frango fode. Mas que erro ter dito o isso. Há tão somente frangos em toda parte, e sem qualquer metáfora: frangos de frangos, com seus acoplamentos, suas conexões.

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Por Gabriel Peters 

Claude Lévi-Strauss

Odeio as travessias e os atravessadores.

Immanuel Kant  

Atravessa, frango, como se a máxima de tua travessia devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.

Friedrich Nietzsche

“A travessia virtuosa”, “o dever da travessia”, a “travessia como um bem em si” – quimeras, sintomas da decadência da filosofia alemã! Que a travessia do frango se justifique por si como demonstração da sua própria potência! Que o frango se torne corda atada para o além-do-frango! Contra tudo isso, Kant, o moralista com espírito de sistema, o niilista com intestinos de cristão, a besta humana filosofante, toma o instinto vital como obstáculo do dever da travessia! Eis a receita para a décadence e para a idiotia. Kant tornou-se idiota. E essa aranha ignominiosa é celebrada como o filósofo alemão por excelência!    

Martin Heidegger

O atravessar do frango-aí é o atravessar da rua. O genitivo tem duplo significado. O atravessar é da rua na medida em que o atravessar, apropriado e manifestado pela rua, pertence à rua. O atravessar é, ao mesmo tempo, atravessar da rua, na medida em que o atravessar, atravessando a rua, escuta a rua. Escutando a rua e atravessando-a, o frango-aí é aquilo que ele é enquanto é e apenas enquanto é o que é quando é o que é, conforme seu ser essencial, dócil ao destino a ele dispensado, que é o da essência do atravessar.

Harold Bloom

Os frangos de Jane Austen se inspiram nos romances anteriores de Samuel Richardson, mas possuem uma espirituosidade shakespeariana que está ausente dos últimos. Os frangos de Tchekhov são mais shakespearianos do que os de Turgenev e se aproximam em força expressiva daqueles de William Blake, poeta bem maior do que Housman. Na poesia de inspiração religiosa, eles devem ser comparados aos frangos de Dante, o maior poeta católico, e a Milton, o maior poeta protestante. Walt Whitman é não só o maior poeta como o maior dos escritores norte-americanos, superando até mesmo Henry James e Emily Dickinson, que, como Whitman, estão acima do seu precursor Ralph Waldo Emerson, melhor prosador do que Carlyle. Se o assunto é a poesia de língua inglesa, no entanto, somente as poesias galináceas de John Milton ombreiam com aquelas de Chaucer e Shakespeare. O frango satânico de Milton não tem a genialidade de Iago, mas seus efeitos operam em mais larga escala. No âmbito da ficção ocidental de modo geral, o frango quixotesco de Cervantes é o único capaz de rivalizar em força com Hamlet, enquanto Sancho Pança está à altura de Falstaff, o cavaleiro galináceo do divino bardo. Junto com a personalidade franguínica, Shakespeare dá aos seus personagens uma força de imaginação e um talento retórico que vão além daqueles manifestos por figuras divinas como Javé, Jesus e Alá. Foi Shakespeare, não essas figuras de extraordinário poder literário, quem inventou o frango –  afirmação menos blasfema do que parece. 

Gilberto Freyre

O frango virou xinxim, prato de origem africana feito com camarão seco, cebola, pevide de jerimum e azeite-de-dendê, preparado com perícia pela magnífica cozinheira baiana Mãe Eva, que descobri graças a Manuel Bandeira, poeta. Portanto, o destino do frango diferiu daquele do cavalo, símbolo aristocrático e até autocrático do qual se valeram tantos senhores de engenho ao desfilarem por suas vastas terras, em trotes e galopes que soavam o ritmo da ordem, da autoridade, do comando; diferiu também do boi, verdadeiro mártir do canavial, cuja aptidão quase mística para o sofrimento a serviço do homem lhe valeu o trabalho nos trapiches, vagaroso porém constante; da cabra, inimigo terrível de tudo que é planta quando criada à solta sem vigilância; das cobras cascavel, surucucu, coral e jararaca, cujas picadas puniam qualquer avanço sobre trecho virgem de terra; do animal da mata grossa expulso com queimadas conforme avançava a cana, fosse capivara, cutia, gato-do-mato, onça, paca, tamanduá, tatu; dos pássaros alma-de-gato, canário, curió, gurinhatã, pintassilgo, sanhaçu, xexéu; do animal de resistência do mato contra a invasão do canavial civilizador, fosse bicho-de-pé, carrapato, varejeira, mosquito ou muriçoca. 

Minha descrição da travessia que culminou em xinxim foi feita em português mais aparentemente simples do que realmente simples, já que vem de autor que conviveu na meninice com pai versadíssimo na língua latina, porém teve a chance de temperar a prosa um tanto castiça do pai com os africanismos de quem ouviu na fazenda as histórias do saudoso malungo Severino. Na sua tradução para o inglês, meu texto teve a lisonja de ser destacado por um mestre da alta responsabilidade intelectual do Professor James Whatever, da Universidade do Norte de Massachusetts. Para o famoso sociólogo norte-americano, a narrativa da passagem franguínica feita por este autor brasileiro está no nível de Casa-Grande & Senzala – e, aliás, também de Sobrados & Mucambos – por mesclar sociologia, psicologia social, história cultural e antropologia, mas ser ainda “bem mais do que tudo isto”. Pois o Professor Whatever também descreve meu trabalho como poesia bergsoniana e, no que tem de literatura memorialística, um proustianismo que supera em vivacidade a linguagem do próprio Proust.

Outros Whatevers, não só nos Estados Unidos como na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Itália, na Espanha, deram agasalho igualmente simpático ao livro, que possivelmente aparecerá também em tradução polonesa. Aliás, recentemente o famoso Club for the History of Rural Peoples, sediado em Londres, descreveu minha obra sobre o frango, juntamente com Sobrados & Mucambos, como “an interesting account of relevant problems”. Elogios rasgados que o escritor desses livros aqui relembra não porque o envaidecem como indivíduo, mas porque o honram como escritor e cientista – cientista sem deixar de ser escritor – caracteristicamente brasileiro.  

José Guilherme Merquior (da juventude frenética)

Na pintura oriunda da primeira vaga romântica – o grupo de Iena -, a travessia da rua pelo frango não brota de um espontaneísmo sentimental infenso ao domínio clássico e à consciência da forma propugnadas pela maturidade goethiana-schilleriana. Se a travessia do frango é expansão do pathos na leitura do “Sturm und Drang” retraçável ao Setecentos inglês, a representação novalisiana do sentimento galináceo já sofre o influxo da estilização clássica do real defendida pelo Goethe maduro. O retrato da travessia no pré-romantismo francês capitaneado pelo patetismo de Chateaubriand, ao transbordar para o sentimentalismo franguínico lamartiniano-hugoano, se ressente da filtragem formal que os românticos alemães incorporaram do classicismo de Weimar; tanto assim que Hans Fork, em seu magnífico frangológio Goethe und Huhngeist, nota com argúcia que o pathos efervescente do período sturmeriano retorna com o segundo romantismo (Brentano, Arnim, Kleist, Hoffman). A melancolia pudica do sentimento frangal com guardanapinhos para limpar o suor da testa, própria do romantismo tardio (Eichendoff, Chamisso, Uhland), contrasta com os epígonos do dilaceramento aviário byroniano (Heine, Lenau, Immermann, Grabbe), enquanto a pacificação dos sentimentos à maneira de Eichendorff ou Uhland dissolve a Sehnsucht, a procura inquieta do desejo de travessia, naquela beatitude antipassionalista do Biedermeier (Grillparzer, Stifter, Moerike). O neoagonismo dos byronianos troca a pegada transcendental da Kulturkritik romântica por um engajamento que destoa do decorum tennysoniano, ao passo que os avatares da sentimentalidade romântica na pintura e na música são subsequentes ao alto romantismo literário: as telas de Overbeck e dos Nazarenos se enlaçam ao Heimweh (nostalgia do lar) uhlandiano e os lieder de Schumann trazem letras de Chamisso e Heine, todas remontáveis à pintura originária do frango.     

Charles Bukowski

o frango atravessou a rua bêbado pra dormir na espelunca; o frango não foi pra guerra, não usa roupa da moda, sofre do intestino, não gosta de enciclopédias, padres, parques, aranhas e pervertidos. O frango chega em casa, pensando na Judy Garland. O telefone toca:

– frango?

– que é?

– é o John.

– ah, oi, John.

– li as suas últimas colunas. São melhores que seus poemas.

– um amigo de Los Angeles leu. Achou uma merda.

– manda se foder. eu quero pra circular entre os jovens nas universidades, que devem estar cansados dessa bosta intelectual.

– não vou parecer um bêbado?

– ué, não é o que você sempre parece, frango?

frango, que inveja Kerouac e não entende Baudelaire; o frango limpa a bunda com lixa, vai morrer daqui a uns anos e não escreve uma coluna que preste desde 1961; frango, o autor da hora; vai ter uma estátua dele em Moscou, batendo punheta. o frango tem medo de viajar. o frango chora por causa dos escrotos, ah, os escrotos, os escrotos por toda a parte, burros de merda por toda a parte; merda e cachorros e filhos que apanham.

      o frango atravessa rua e entra num bar mexicano; toma uma cerveja e volta pra casa. 

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