Por Nathalie Heinich
Tradução: Marilia Bueno
Neste capítulo[1], tentarei analisar algumas críticas feitas ao pensamento de Elias que parecem ser fruto de mal-entendidos ou interpretações equivocadas. Com isso, não pretendo defender qualquer ortodoxia ou alegar uma suposta infalibilidade do pensamento dele – que pode, como qualquer outro, ser submetido a escrutínio. É possível, por exemplo, criticar o status de suas fontes (uma vez que a diferença entre a observação e práticas de prescrição nem sempre é esclarecida), sua interpretação das proibições (que pode indicar tanto a importância de uma prática quanto sua deslegitimação) ou ainda a falseabilidade empírica de um modelo tão geral como o dele (Heinich, 1997).
Mas as críticas a uma obra são bem-vindas apenas na medida em que se refiram ao que efetivamente foi escrito pelo autor, e não ao que alguns intérpretes imaginam que ele tenha escrito, como frequentemente é o caso de Elias. Com efeito, muitas de suas formulações são um tanto ambíguas, e a maior parte dos mal-entendidos que serão discutidos aqui são baseados no que ele realmente escreveu. Isso imediatamente coloca uma objeção: com base em quais critérios é possível considera-las “incompreensões”? Não tenho outra resposta a oferecer a tal objeção que não a minha própria leitura de Elias, motivada não apenas por uma preferência subjetiva por um ou outro aspecto de seu pensamento, mas por um posicionamento consistente: a preferência sistemática pela linha mais radical, ou seja, a interpretação na qual seu pensamento se distancia o máximo possível da tradição acadêmica, viabilizando, desse modo, os usos empíricos mais produtivos – o que é muito importante.
Minha intenção é salientar as contribuições de uma certa postura conceitual implementada no pensamento de Elias, mesmo quando ela não se apresenta na sua forma mais radical. E a melhor forma de apresentar seu modo de pensar me parece ser passar pelas incompreensões mais comuns na interpretação de sua teoria, que demonstram a dificuldade de reconhecer formas inovadoras de pensamento, que, justamente por isso, são mais vulneráveis a distorções devido a leituras baseadas em hábitos mentais inadequados – justamente os mesmos hábitos que Elias tentou superar.
Não me deterei em erros que apenas revelam a incompetência de seus autores, mas sim vou me concentrar em incompreensões comuns que são bastante sintomáticas das posições conceituais radicais de Elias. Eis os equívocos que serão tratados: o normativo, o evolucionista, o universalista, o substancialista e o logicista.
1 O equívoco normativo
Esta primeira incompreensão consiste em alegar, implícita ou explicitamente, a existência de um sentido normativo no assim chamado “processo civilizador” – um equívoco no qual incorrem aqueles que entendem que Elias tratava esse processo simplesmente como um avanço do pior para o melhor. Certamente, a regulação da violência dificilmente poderia ser considerada a priori como qualquer coisa diferente de progresso. Algumas formulações do próprio Elias provavelmente incitam essa perspectiva. No entanto, há uma diferença entre a constatação de uma tendência e a emissão de um julgamento sobre ela, algo que é próprio ao mundo ordinário. Essa distinção foi ressaltada pelo próprio Elias, como observado por Eric Dunning[2].
Essa confusão entre dois níveis diferentes do discurso, comum até mesmo entre os pesquisadores, é evidente nas críticas feitas por Daniel Gordon, quando este invoca um parentesco entre a oposição eliasiana entre Kultur e Zivilisation e as supostas concepções nacionalistas do jovem Thomas Mann[3]. Mas mesmo que essa oposição tivesse sido usada de outra forma, dentro de um contexto político, no sentido nacionalista, isso de nenhuma forma iria interferir na genealogia histórica proposta por Elias, a não ser que se insista em pensar em termos de “campos” ideológicos, ou seja, confundindo o nível da pesquisa com o da ideologia.
Uma confusão como essa levanta suspeitas sobre a validade do trabalho de Gordon sobre a cidadania no pensamento clássico da França – suspeitas que se confirmam quando, em seguida, ele critica Elias por apresentar fenômenos hierárquicos como se isso fosse uma defesa dessas hierarquias[4]. Aqui podemos ver funcionando uma concepção política – e, aqui, igualitária – do trabalho do pesquisador, que parece pertencer à pré-história das ciências sociais: a mesma pré-história que, justamente, Elias nos ajudou a superar – contanto que leiamos o que ele de fato escreveu.
Mais interessante ainda é uma leitura que, ao contrário da de Gordon, não confunde enunciados descritivos com enunciados normativos, mas interpreta a abordagem que Elias faz da civilização como sendo normativa. Zygmunt Bauman, em sua interessante e sutil reflexão sobre o Holocausto, seu lugar na modernidade e seu impacto no pensamento sociológico, denuncia o que ele chama de “mito do Ocidente” de uma “elevação moral” da humanidade de uma “barbárie pré-social” – mito que Elias teria ajudado a forjar, ou ao menos fortalecer, ao descrever a história recente como a “eliminação da violência das vidas cotidianas[5].
Essa leitura é, obviamente, duplamente enviesada. Em primeiro lugar, porque Elias nunca falou de uma eliminação da violência, mas de seu deslocamento, por uma dupla tendência que envolve a sua monopolização pelo Estado e sua internalização. (E, de todo modo, é de questionar o que “história recente” significa para Bauman: estaria ele ciente de que a teoria do Elias é baseada em fenômenos que aconteceram de cinco a dez séculos atrás?). Em segundo lugar, ele lê a análise de Elias como uma tentativa normativa de “traçar uma linha arbitrária entre o normal e o anormal”, “reduzindo ao silêncio e marginalizando críticos que insistem na ambivalência da situação moderna”[6]. Em outras palavras, temos aqui uma interpretação normativa do pensamento de Elias sustentando uma crítica de seu normativismo.
É claro que a preocupação de Bauman em dar peso total à experiência do Holocausto como uma crise absoluta dos princípios civilizados é compreensível. Mas se sua pretensão com a crítica era chamar a atenção para algumas consequências negativas do processo civilizador[7], ele poderia ter se apoiado no próprio Elias: em A solidão dos moribundos, Elias evoca alguns dos preços pagos pela civilização. E se a sua intenção era colocar o Holocausto como falseamento da teoria de Elias, eu não serei a primeira a afirmar que essa hipótese se sustenta em uma leitura continuísta e de curto prazo, enquanto que o modelo eliasiano também inclui, como sabemos, momentos de regressão. Além do mais, essa leitura é evolucionista, no sentido de que ela pressupõe um progresso necessário, uma melhoria. Esse evolucionismo, como veremos agora, é a segunda incompreensão recorrente na leitura de Elias.
2 O equívoco evolucionista
Eric Dunning evocou algumas tentativas de refutar a teoria eliasiana com o argumento do Holocausto (Dunning 1997, p. 132), e Stephen Mennell, ironicamente, afirmou que “o Holocausto refuta a teoria do processo civilizador na Europa na mesma medida em que a Peste Negra coloca em xeque o crescimento da população no continente no longo prazo” (Mennell 1997, p. 225).
Eu não vou retomar aqui o complexo problema do evolucionismo de Elias: Catherine Colliot-Thelene demonstrou que, ao contrário daquele do século XIX, ele não é linear nem total. No entanto, ele postula, contra a ortodoxia antirrevolucionária de seu tempo, uma evolução lógica, isto é, uma ordem imanente de mudança, que traz alguma coerência a uma multidão de fenômenos não diretamente correlacionados entre si – desde que se leve em conta que evolução não deve ser confundida aqui nem com progresso nem com processo contínuo (Colliot-Thélène, 1997, p. 67-8). É exatamente essa confusão que geralmente leva a leituras evolucionistas espontâneas de seu pensamento (no sentido tradicional, historicista e teleológico), o que, inevitavelmente, leva a uma crítica de seu suposto evolucionismo.
Vamos assumir que de fato pode haver algumas formulações entre os escritos de Elias que favorecem essa leitura: nós estamos em um terreno escorregadio, e é fácil passar do processo ao progresso e, consecutivamente, do progresso ao propósito ou objetivo transcendente às ações humanas. Essa tendência intelectual está de acordo com uma forma mágico-religiosa de pensar, que ainda persiste não apenas no senso comum, mas também no mundo acadêmico. Mas, se há qualquer forma de evolucionismo em Elias, é fundamental ressaltar que ele é empírico e não teórico, falseável em vez de axiomático, plural em vez de unilateral e, acima de tudo, não direcionado a qualquer fim específico.
Esta incompreensão pode indicar certa carência de reflexão teórica sobre a noção de mudança entre os historiadores. Mas, para que essa reflexão seja possível, é necessário libertar-se de uma espontânea concepção familial dos vínculos entre passado, presente e futuro, que tende a projetar no longo prazo a percepção individual das relações pessoais entre gerações. Essa percepção pode ser encontrada, em uma forma bastante ingênua, no livro de Emmanuel Leroy-Ladurie sobre Saint-Simon, quando, tentando invalidar uma teoria que nem ele mesmo parece ter entendido, ele escreve que “ninguém pode levar a sério as qualidades preditivas de uma ‘sociedade de corte’ que pode ser, dizem, antepassada de nossa vida burguesa moderada –, que é baseada nas continuidades da sociabilidade francesa, desde a aristocracia domesticada de Versailles até as mais altas notabilidades plebeias do 16º arrondissement dos anos 1930. De fato, o curial pode não ser progenitor do convivial. Curialidade nem sempre leva à cordialidade, seja ela cuidadosamente regulada, controlada ou até mesmo hipócrita” (Leroy-Ladurie 1997, p. 518). O uso de termos como antepassada, usado pra substancializar entidades e metáforas de geração, herança e similaridade, é altamente típico da tendência espontânea de projetar a experiência individual na experiência coletiva. Essa é uma tendência que Elias nunca deixou de combater, como um estágio pré-histórico do pensamento sociológico. E nada resume melhor sua concepção própria de evolução do que as palavras que encerram o Sociedade dos indivíduos: “Nascida de inúmeros projetos, mas sem projeto, conduzida por múltiplas metas, mas sem propósito”.
3 O equívoco universalista
Outra crítica comum, embora injusta, feita ao pensamento do Elias é direcionada a seu suposto universalismo: nós devemos considerar o processo civilizador como algo generalizável a todas as sociedades humanas? E, em caso afirmativo, isso não nos condena a ser etnocentristas e, ao mesmo tempo, refratários diante dos contraexemplos das sociedades não ocidentais?
Mais uma vez, as formulações de Elias são ambíguas: elas podem dar ensejo a uma interpretação universalista, por exemplo, quando ele afirma no Processo civilizador que “a curialização dos guerreiros pode ser observada não apenas no Ocidente mas – até onde nosso conhecimento permite julgar – em todos os processos de civilização minimamente relevantes”. É evidente, no entanto, que seu método como um todo repousa sobre a abordagem de contextos, situações circunscritas no espaço e no tempo, ancorada muito mais em observação empírica – embora bastante generalizada – do que em especulações sobre categorias universais. Por isso que, se há algum universalismo em sua teoria, ele existe apenas sob a condição de ser algo estritamente limitado ao estágio do conhecimento, até que seja eventualmente contradito por novas evidências empíricas. Logo, há um universalismo hipotético e descritivo, não um postulado metafísico. Mais uma vez, Catherine Colliot-Thélène mostrou que as suspeitas de universalismo e eurocentrismo que recaem sobre a teoria de Elias só podem estar baseadas em uma confusão entre descrição e juízo de valor (Colliot-Thélène, 1997, p. 54).
Com efeito, há dois caminhos que podem produzir esta incompreensão. O primeiro consiste em argumentar que o modelo é universalista demais e opô-lo ao relativismo cultural demonstrando que não são todas as sociedades que seguem o processo civilizador: esta é, novamente, uma interpretação universalista da teoria do Elias que incita uma crítica de seu suposto universalismo. Para rejeitar essa objeção, podemos diminuir a abrangência do modelo, mantendo assim suas capacidades analíticas e abandonando qualquer pretensão ao universalismo (o que considero ser a posição mais favorável, contanto que não coloquemos à frente de nossas preocupações a essência da natureza humana).
O segundo caminho é o entendimento de que o modelo não é suficientemente universal, posto que historiciza algo que é próprio de qualquer sociedade humana. O leitor poderá reconhecer aqui a tese de Hans-Peter Duerr, em seu monumental ensaio sobre a história do pudor. A crítica de Duerr é focada em dois erros de interpretação cometidos por Elias ao comentar cenas medievais: uma envolve banhistas nus, interpretada como indício que a interdição da nudez não era tão acentuada, quando na verdade ela mostra um bordel; a outra representa simultaneamente duas cenas sucessivas (como na narrativa usada nos quadrinhos), erroneamente interpretada por Elias como uma cena de sexo que ocorre na frente de outras pessoas.
Duerr se baseia nesses dois erros pra invalidar toda a teoria do processo civilizador. E, para fazer isso, ele negligencia muitos outros tipos de indícios usados por Elias, incluindo os modos à mesa ou como se deve assoar o nariz ou cuspir. Além disso, ele parece não ter notado que a questão do pudor está articulada, na teoria de Elias, com uma reflexão muito mais ampla sobre a internalização de refreamentos e autocontrole das emoções, no interior da qual o modo de lidar com um corpo nu é apenas um elemento que, embora interessante, não pode ser tomado fora da questão mais geral.
Duerr também se autoinduz ao erro ao descontextualizar sistematicamente a teoria de Elias. Como seria possível, por exemplo, interpretar a questão da interdição da nudez sem levar em conta a diferenciação entre espaço público e espaço privado? Esse tipo de questão não parece merecer a atenção de Duerr, uma vez que ele não diferencia um corpo nu de um corpo coberto por uma camisa (o que é bem incômodo levando-se em conta que seu livro chama “nudez e pudor”), nem considera que as arenas da vida familiar, da lei e das ruas devem ser distinguidas, assim como o corpo exposto deve ser diferenciado do corpo exibido (Duerr 1998, p. 263). O autor provavelmente responderia que sua recusa em fazer qualquer contextualização se baseia na escolha pelo universalismo, que implica a existência de invariantes antropológicas, dentre as quais o pudor. Mas não é correto descontextualizar uma tese que está alicerçada no contexto específico da sociedade europeia da Baixa Idade Média para refutá-la como se ela mesma fosse universalista: mais do que um equívoco, isso é uma distorção deliberada.
Visando invalidar a tese de enrobustecimento da esfera privada, Duerr (1998) não hesita em nos apresentar aos “índios das florestas do noroeste do Peru, em Yagua” (p. 151). Na mesma página (p. 172) em que aborda o pudor sexual, ele cita sucessivamente a América do século XVII, a Idade Média (sem especificar em qual sociedade), um “libertino espanhol” e os navajos; em outra parte do texto (195) ele evoca privações em um convento do século XVII junto com um palácio da Idade Média! A comparação é uma ferramenta muito útil, contanto que se compare o que é comparável: aqui, processos (de civilização), e não estados, observados sem qualquer atenção a seus contextos e significados. Tal regressão intelectual é um problema que não se refere apenas ao trabalho de Elias, mas a toda a história da ciência social – como se nada tivesse acontecido desde a era das academias escolásticas do século XIX.
E aqui vai a tese que Duerr pretende que seja a oposição ao modelo eliasiano, apresentada na última página de seu livro: “há muitos argumentos a favor da verdade do mito bíblico: o pudor, relativo à exposição dos órgãos sexuais, não é um acidente histórico, mas está inscrito na própria essência do homem”.
Certo. Vamos nos abster de comentar essa alternativa entre acidente e essência, que sugere que não existe qualquer racionalidade fora de entidades metafísicas (provavelmente controladas por desígnios divinos) – todo o resto está entregue, é claro, ao mero caos. Vamos apenas acrescentar, na mesma linha de raciocínio do autor, que a nutrição, a reprodução, a linguagem e algumas outras variáveis também pertencem à natureza humana. Que outros livros interessantíssimos irão aparecer para fornecer o catálogo completo das evidências de que, em todos os países, em todas as sociedades, os homens comem, procriam e falam? Comparar similaridades exige que se trabalhe com um nível mínimo de profundidade, de modo a revelar estruturas subjacentes (como Lévi-Strauss fez, por exemplo). Do contrário, se produziria apenas um catálogo de lugares comuns. Outro caminho, que eu considero mais adequado, é uma boa comparação de diferenças: diferenças entre sociedades, como fazem os antropólogos, entre eras, como fazem os historiadores, ou no interior de uma mesma sociedade, como fazem os sociólogos – ou até os sociólogos históricos quando, assim como Elias, eles juntam o desenvolvimento histórico à mudança social.
4 O equívoco substancialista
O trabalho de Duerr é interessante ainda por outras razões: primeiro, porque seu universalismo ingênuo evidencia os méritos de um pensamento profundamente contextualizado como o do Elias; segundo, porque é a melhor demonstração, negativamente falando, de quão longe ele está de qualquer tentação metafísica de substancialismo. Essa, creio, é a chave para uma reflexão que nunca se dá nos termos de estados distintos, mas sim de um processo contínuo.
Esse é o motivo pelo qual Elias dificilmente reconheceria seu trabalho na surpreendente versão proposta por seu oponente nesta introdução: “Esse ‘mito do processo civilizador’ oculta o fato de que, muito provavelmente, ao menos durante os últimos quarenta mil anos, não existiram pessoas em um estado selvagem ou primitivo, como num estado de natureza (…). Pertence à natureza humana ter vergonha da nudez de alguém, independentemente de como isso é historicamente definido” (Duerr, 1998. p. 4). Teria sido Elias ingênuo o suficiente para opor, como realidades, um “estado de natureza” a um “estado civilizado”? Todo o seu trabalho é focado em um processo de civilização, ou, em outras palavras, o movimento contínuo entre dois polos, duas tendências. Duerr não parece ter vislumbrado um dos principais ensinamentos de Elias, de que a oposição entre categorias discretas é relevante apenas em um terreno conceitual; tão logo se as toma por entidades reais, elas recaem em metafísica. É claro, isso não impede que se conceba a existência de uma “natureza humana”; mas tal conceito requer trabalho além do que Duerr fez, a fim de escapar do status de um mero “mito” – do qual ele acusa Elias, de acordo com sua conhecida fábula do Biter Bit.
Duerr também revelou o quanto não entendeu a noção central para a teoria de Elias que é a de interdependência quando usou uma oposição fictícia entre indivíduo e controle social, considerados como categorias absolutas: um dos muitos exemplos de um subfoucaultianismo empobrecido, que muito contribuiu para estupidificar toda uma geração. A noção de interdependência, combinada com a de internalização dos mecanismos de controle, permite que se escape dessa oposição binária (geralmente metafísica, tal como demonstrado no Sociedade dos Indivíduos), a fim de entender precisamente os movimentos entre o indivíduo e as dimensões coletivas das determinações física, corporal e emocional. Reduzir essa noção a um problema de “controle social” – ou seja, o estrangulamento causado por uma sociedade necessariamente opressiva sobre um indivíduo idealizadamente autônomo – decorre de uma regressão intelectual bastante lúgubre (Heinich, 2009).
Duerr, no entanto, não foi o único a falhar na tentativa de realmente entender – e aplicar – a “revolução copernicana” que Elias promoveu ao livrar a sociologia da alternativa indivíduo versus sociedade (ou natureza versus cultura). Alguns pesquisadores muito mais conscientes do seu sistema conceitual ainda são vítimas de um persistente substancialismo acadêmico. Jean-Hugues Déchaux, por exemplo, em dois interessantes artigos sobre a genealogia intelectual dos conceitos da teoria de Elias, insiste em pensar em termos de “ajustamento” entre entidades separadas: “a ideia de ajustamento das estruturas mentais sociais, concebidas como uma rede de relacionamentos e tensões, podem permitir, em termos teóricos, escapar da dupla armadilha do atomismo e do sociologismo” (Décheux, 1993, p. 384).
Opor, como entidades separadas, estruturas mentais e estruturas sociais significa ignorar que o mental é completamente modelado por quadros coletivos, sobretudo a linguagem, e o social é produto de interações individuais, mais ou menos estabilizadas em instituições, leis, regulações, hábitos, posturas corporais, objetos, palavras e assim em diante. No entanto, tais equívocos criam falsos problemas a respeito de “explicação”, que não ajudam a encontrar respostas pois são baseados em premissas completamente irreais: “infelizmente, tal ajuste é mais aplicado do que demonstrado: o autor alemão falha em explicar seu mecanismo geral”. Tal inabilidade para escapar da noção de “ponto de partida, o dilema do indivíduo e da sociedade” (p. 385), também aparece em outro artigo a respeito de algumas “falhas” no pensamento de quem ele chama, “sem nenhuma ironia”, de “o pequeno mestre de Breslau”, e onde, enquanto descreve apropriadamente seu modo de pensar (“um nominalismo radical e um desejo de apreender processos”, Déchaux, 1995, p. 299) ele comete a mesma incompreensão, afirmando que “em sua mente, é o social que explica o mental”, ou que “a coincidência entre estrutura sociais é mais postulada do que provada” (Déchaux, 1995, p. 305-6). Mas, de acordo com os comentários inteligentes de Charles Henry, “o programa de Norbert Elias consiste precisamente em pensar as estruturas mentais e estruturas sociais juntas” (Henry, 1995, p. 202)
Esses são apenas alguns exemplos das interpretações substancialistas de seu pensamento, que levou a críticas de sua inabilidade em resolver os problemas errados causados pelo substancialismo: o substancialismo endêmico, vindo da tradição metafísica, que afeta fortemente uma grande parte do pensamento sociológico. Mas há ainda um último mal-entendido a ser apontado.
5 O equívoco logicista
A ideia de substancialismo está ligada ao que se pode chamar de logicismo. Esse equívoco consiste em uma concepção reificada dos conceitos que transforma em categorias distintas – ou seja, entidades separadas e descontínuas – o que, na realidade, são polos de orientação, permitindo, tal como os pontos cardeais, a descrição de movimentos em eixos contínuos – como, por exemplo, o individual e o coletivo. Elias sempre combateu oposições conceituais dessa ordem, que, ao gerar divisões artificiais, produzem aporias – como o falso problema da conexão entre essas categorias ou a eterna discussão sobre qual delas deve ser priorizada.
Ao transformar movimentos em entidades estáveis e relações em categorias distintas, o desvio logicista é uma excelente máquina de produzir falsos problemas, nos quais a sociologia parece estar afundando deliberadamente. Desse modo, qualquer ação que não esteja de acordo com as assim chamadas leis invariáveis da lógica – e, antes de mais nada, o ideal de não-contradição – é considerado anormal, desviante, e solicita suma explicação especial. No lugar de observar e analisar as diversas lógicas dos agentes, (dentre as quais o raciocínio lógico é apenas um componente, e provavelmente não o mais importante), o logicismo toma o raciocínio lógico como o objeto de investigação focando em seus usos na ação.
O mesmo ocorre ao causalismo, que é a tendência a atribuir a cada fenômeno uma única causa, e a qualquer causa uma única consequência. A recusa de tal causalismo, em nome de uma descrição mais precisa das interdependências, é provavelmente uma das contribuições mais originais de Elias; é também, como observou Catherine Colliot-Thélène, seu principal ponto de distinção em relação a Max Weber (Colliot-Thélène 1997, p. 63–64).
Meu último exemplo de incompreensão vem de um interessante artigo de Nicos Mouzelis, no qual ele recoloca a teoria de Elias diante do clássico problema do relacionamento entre estrutura e agência, tal como abordado por Marx, Parsons e Giddens. Mas Mouzelis recai em causalismo quando critica Elias por ser supostamente inconsistente, visto que, de acordo com ele, a crescente divisão do trabalho e o incremento das interdependências levariam a um autocontrole maior ou menor, a depender do caso[8].
Mais uma vez, uma interpretação logicista de Elias leva à crítica do que aparece como uma contradição lógica. No verdadeiro modelo eliasiano, civilização e descivilização não são consequências opostas da mesma causa (o monopólio estatal da violência e da cobrança de impostos), mas momentos heterogêneos que coexistem no mesmo tempo: deve-se fugir de uma explicação causal a fim de obter uma consistência geral que reflita o fenômeno descrito.
Sem dúvida, é difícil se desprender da noção tradicional de causalidade que é usada nas ciências naturais. Mas as ciências sociais provavelmente serão mais efetivas conforme possam contar com sistemas mais complexos de explicação, porque deve haver uma pluralidade de fatores para que se possa dar conta de um fenômeno, e uma explicação não pode ser reduzida a uma correlação entre uma causa e um efeito. A ideia é tratar não mais da produção mecânica de um efeito por uma causa, mas da relação, que varia conforme o contexto, entre fenômenos interdependentes, sujeitos a determinações recíprocas. Nessa perspectiva, a categoria de causalidade não é, obviamente, inoperante (não mais do que é a geometria euclidiana em relação à não-euclidiana); ela apenas passa a ser um caso específico do fenômeno mais geral da interdependência.
Isso abre perspectivas surpreendentes, uma vez que as ciências naturais, então, aparecerão não como o modelo para as ciências sociais, mas sim como um caso específico de uma ciência do mundo, para a qual as ciências humanas poderão oferecer um modelo mais geral. Eu não garanto que tal interpretação seja exatamente fiel ao pensamento de Elias – talvez seja apenas uma conjectura. Mas acredito que a concepção de trabalho intelectual que Elias propôs permita essas aberturas e torções, desde que estejamos prontos para entendê-la não com os óculos distorcidos da tradição acadêmica, mas com o novo olhar que ele ajudou a criar.
Referências:
Bauman, Z. 1989. Modernity and the Holocaust. London: Polity Press.
Colliot-Thelene, C. 1997. “Le concept de rationalisation: de Max Weber a Norbert Elias” In Norbert Elias, la politique et l’ histoire, edited by B. Lacroix and A. Garrigou. Paris: La Decouverte.
Dechaux, J. 1993. “N. Elias et P. Bourdieu” Archives europeennes de sociologie 34 (2).
_____. 1995. “Quelques failles dans la sociologie de N. Elias” Cahiers Internationaux de Sociologie 99: 36–45.
Dépelteau, F. ; Landini, T. (Eds.). 2013. Norbert Elias and social theory. New York: Palgrave Macmillan.
Duerr, H. 1998. Nudite et pudeur. Le mythe du processus de civilisation. Paris: Editions de la Maison des Sciences de l’Homme.
Dunning, E. 1997. “Civilisation, formation de l’Etat et sport modern”. In Norbert Elias, la politique et l’histoire, edited by B. Lacroix and A. Garrigou. Paris: La Decouverte.
Gordon, D. 1994. Citizens without Sovereignty. Equality and Sociability in French Thought, 1670–1789. Princeton: Princeton University Press.
Heinich, N. 1997. La Sociologie de Norbert Elias. Paris: La Decouverte, collection Reperes.
_____. 2009. “The Sociology of Vocational Prizes: Recognition as Esteem.” Theory, Culture and Society 26 (5).
Henry, C. 1997. “Elements pour une theorie de l’0individuation. Quand le domestique Mozart se prenait pour un libre artiste” In Norbert Elias, la politique et l’histoire, edited by B. Lacroix and A. Garrigou. Paris: La Decouverte.
Leroy-Ladurie, E. 1997. Saint-Simon ou le systeme de la cour. Paris: Fayard.
Mennell, S. 1997. “L’envers de la medaille: les processus de decivilisation.” In Norbert Elias, la politique et l’histoire, edited by B. Lacroix and A. Garrigou. Paris: La Decouverte.
Mouzelis, N. 1993. “On Figurational Sociology”. Theory, Culture and Society 10: 57–65.
Para citar este texto: HEINICH, Nathalie. Cinco incompreensões do pensamento de Norbert Elias. (Tradução por Marilia Bueno) Blog do Labemus, 2020. [publicado em 26 de novembro de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/11/26/cinco-incompreensoes-do-pensamento-de-norbert-elias-por-nathalie-heinich
[1] A publicação original é um capítulo de Dépelteau e Landini (2013).
[2] “Norbert Elias reconheceu explicitamente que o termo ‘civilização’ é geralmente dotado de uma carga valorativa. Por outro lado, em seu uso sociológico, especialmente quando se trata do conceito de ‘processo civilizador’, é um termo técnico, uma palavra diferente, desprovida de qualquer carga valorativa” (Dunning, 1977, p. 133).
[3] “É irônico que Elias, que teve de fugir da Alemanha para a França e a Inglaterra depois da ascensão dos nacional-socialistas ao poder em 1933, tenha absorvido alguns dos modos mais nacionalistas de autorrepresentação vigentes nos círculos intelectuais alemães” (Gordon, 1994, p. 91).
[4] “Elias e seus seguidores trataram a civilidade como um conjunto de normas destinadas a tornar hierárquicos todos os encontros” (Gordon 1994, 91).
[5] “O mito etiológico profundamente arraigado na autoconsciência de nossa sociedade ocidental é o de uma história de elevação moral da humanidade a partir de uma barbárie pré-social (…). Elias retrata a história recente como sendo a da eliminação da violência da vida cotidiana” (Bauman, 1989, p. 12).
[6] “Essa forma de ver as coisas não é necessariamente enganosa. À luz do Holocausto, entretanto, ela certamente parece unilateral. Embora abra para o escrutínio tendências importantes da história recente, não exclui a discussão de tendências cruciais. Atendo-se a uma das dimensões do processo histórico, ele traça uma linha divisória arbitrária entre o normal e o anormal. Ao deslegitimar alguns dos aspectos mais permanentes da civilização, sugere, erroneamente, uma natureza fortuita e transitória – ocultando, desse modo, a evidente ressonância que há entre o mais proeminente de seus atributos e os pressupostos normativos da modernidade. Em outras palavras, ele desvia a atenção do potencial alternativo de destruição que é perene no processo civilizador, enquanto silencia e marginaliza as críticas insistentes sobre a ambiguidade do arranjo social moderno”. (Bauman 1989, p. 28).
[7] “Assim, a tão alardeada civilização dos costumes (que Elias, seguindo o mito etiológico do Ocidente, celebra tão alegremente) e a confortável segurança da vida cotidiana que a acompanha têm seu preço. Um preço que nós, moradores da casa da modernidade, podemos ser convocados a pagar a qualquer momento. Ou obrigados a pagar, sem aviso prévio”. (Bauman 1989, p. 107).
[8] “Toda a teoria se reduz à proposição de que às vezes a crescente divisão do trabalho e a interdependência levam a uma crescente autorregulação, e às vezes não” (Mouzelis 1993, 243)” (Mouzelis 1993, p. 243); nós podemos “interpretar as crescentes interdependência e divisão do trabalho de forma que possam levar tanto à autorregulação quanto à autodesregulação” (ibid., p. 245).
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