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As leituras elementares da vida acadêmica: os estudos da ignorância, por Lenin Bicudo Bárbara

Fonte: https://artery.is/showcases/head_in_the_sand_comedy

por Lenin Bicudo Bárbara[1]

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A lição de Merkel

No dia 11 de março de 2020, Angela Merkel, chanceler alemã, teria dito o seguinte em entrevista coletiva: “Estamos em uma situação em que não sabemos muitas coisas, e o que não sabemos, precisamos levar a sério”. Ou pelo menos foi isso o que a CNN internacional disse que a Merkel disse – e, na esteira dela, vários veículos nacionais de imprensa, como o Uol Notícias e o IstoÉ Dinheiro, entre outros[2].

Nesse mesmo dia, a OMS classificava pela primeira vez a covid-19 como “pandemia” – sendo essa a situação a que Merkel se refere. Mas, é claro, a lição se aplica também a outros casos: o que não sabemos, precisamos levar a sério. Nesta edição de Leituras Elementares da Vida Acadêmica, veremos um pouco do que já disseram cientistas sociais que resolveram pôr em prática – prescientemente – a recomendação acima, atribuída a Merkel. E que não é bem de Merkel – estamos aqui diante de um caso peculiar de fake news, resultante de um erro de tradução. O que Merkel disse se traduz melhor assim: “Estamos em uma situação em que ainda não sabemos muita coisa, e isso que sabemos, precisamos levar muito a sério”[3].

Ou seja, seu ponto é que temos que levar a sério o que já sabemos sobre a situação. O sentido da frase fica mais claro considerando o resto de sua fala: trata-se aí de um apelo ao público para confiar na ciência em face do perigo desconhecido – “isso que sabemos” se refere ao conhecimento epidemiológico sobre o assunto. Mas a frase verdadeira funciona ainda melhor ao lado da falsa (que é, convenhamos, mais instigante). Mesmo porque, no microcosmo do mundo acadêmico, muito já foi dito sobre o conhecimento, e relativamente pouco sobre o seu “outro lado”. Para dar uma ideia disso, basta mencionar que uma busca no catálogo da biblioteca de Harvard (o HOLLIS) retorna, em dezembro de 2020, 136,368 resultados para “knowledge”, e 4.245 para “ignorance” – uma diferença da ordem de 32 vezes. Na realidade, é claro, vale o contrário: por mais que ampliemos nosso vasto conhecimento, este sempre corresponderá a uma pequena fração da nossa ignorância; e uma das coisas que jamais saberemos é exatamente quão pequena é tal fração.

Mas podemos aqui entre nós, depois de acusar o erro de tradução, ignorá-lo e ficar com a recomendação composta por Merkel em coautoria involuntária com a CNN Internacional.

Se vamos, pois, levar a sério o que não sabemos, cabe primeiro refletir sobre a questão: o que queremos dizer, quando falamos em ignorância?

Ignorância: o que é e como (não) usar

O filósofo francês Mathias Girel introduz seu livro mais recente sobre o desconhecimento observando que, “contrariamente ao que podemos imaginar a partir de uma definição abstrata de ignorância, há várias maneiras de ser ignorante”[4]. Tendo isso em vista, em vez de partir de uma definição abstrata, começo elencando alguns dos diferentes usos que fazemos da noção de ignorância, no dia-a-dia:

– Zombamos da ignorância alheia, quando não apontamos o dedo e chamamos de ignorante nossos desafetos, para insultá-los;

– Dizemos que estamos ignorando alguém com quem não queremos falar;

– Declaramos ignorância, quando queremos evitar ser responsabilizados por algum mal que fizemos, já que ignorância muitas vezes implica inocência;

– Falamos na ignorância como um projeto de poder das classes dominantes;

– Associamos ignorância a uma simples falta de informação ou instrução;

– Dizemos que não conhecer certos fatos, mas também certas pessoas ou lugares;

– Inventamos toda sorte de metáforas para nos referir à ignorância: ela é imaginada ora como fronteiras ou limites do conhecimento, ora como uma benção, ora como obstáculo a ser superado, ora como uma página em branco, ora como a escuridão que a luz do conhecimento há de dissipar.

Podemos reagir intelectualmente a essa variedade de usos de duas maneiras: adotando uma noção flexível, operacional de ignorância, que abarque todos esses usos de senso comum; ou buscando um conceito mais preciso, que permita discernir claramente qual desses usos é correto, e qual deve ser evitado. A literatura filosófica contemporânea sobre o tema dá margem para ambas as reações.

Filósofos como Mathias Girel e Daniel DeNicola tendem a adotar a primeira estratégia. A intuição central de Girel é mapear as várias formas de ser ignorante que ele menciona; ao passo que DeNicola explora as metáforas de que nos servimos para dar conta do que não sabemos. Ambos partem de definições operacionais, que em todo o caso bastam para distinguir ignorância e estupidez – que corresponde ao primeiro dos usos que identifiquei acima.

A outra estratégia, mais próxima da tradição da filosofia analítica, é adotada por autores como os reunidos na coletânea “Epistemic Dimensions of Ignorance”, das quais merecem destaque as contribuições dos editores Rik Peels e Pierre Le Morvan, bem como a do filósofo dinamarquês Nikolaj Nottelmann. Esses autores se valem de ferramentas da lógica formal para discutir como melhor definir a ignorância e suas variedades.

Finalmente, vale destacar a contribuição pioneira de Nicholas Rescher, com a observação de ele que está menos interessado nos diferentes usos da ideia de ignorância, e mais em um tipo específico de ignorância: a ignorância necessária, que diz respeito a fatos incognoscíveis.

Para não complicar demais a questão, cabe ficarmos com uma definição operacional, a que cheguei levando em conta os trabalhos acima mencionados. Ignorância, no sentido amplo do termo, é ausência de conhecimento de algo; esse “algo” pode ser:

– Um fato discreto e muito bem delimitado, como o nome de uma pessoa específica;

– Um fenômeno complexo, como o descrito pela teoria da gravidade;

– Uma crença, seja ela verdadeira e justificada, como a crença de um físico ou de um astronauta sobre formato da Terra; seja falsa, como a de um terraplanista;

– Uma técnica ou habilidade, como fazer uma feijoada, como dirigir um carro, ou como se portar à mesa de maneira elegante;

– Um valor ou conjunto de valores, regras ou convenções (tácitas ou manifestas) que orientam a ação de indivíduos ou de grupos.

O importante aqui é ter em vista que a ignorância sempre se refere a um objeto, a algo ignorado. Nossa linguagem ordinária reconhece isso, ao estipular que “ignorar” é um verbo transitivo, que pede objeto direto. Mas a linguagem corrente nem sempre é sábia – ela também nos induz a tratar “ignorância” como sinônimo de “estupidez”, que é o que fazemos quando usamos a palavra “ignorância” como insulto. Assim entendida, a ignorância soa como algo próprio de nossos adversários, mas não dos nossos aliados, e muito menos de nós mesmos. Essa é uma concepção que cabe desde já evitar – pois, como aprendemos com Sócrates, levar a sério a ignorância implica antes de tudo saber reconhecê-la em nós mesmos.

Leituras elementares para quem quer saber melhor o que é a ignorância:

DeNicola, Daniel (2017). Ignorance: The Surprising Impact of what we don’t know. Cambridge, MA, The MIT Press.

Girel, Mathias (2017). Science et territoires de l’ignorance. Éditions Quӕ.

Peels, Rik & Blaauw, Martjin (ed.) (2016). The Epistemic Dimensions of Ignorance. Cambridge University Press. Artigos recomendados:

  • “The Nature of Ignorance: Two Views”, de Pierre Le Morvan & Rik Peels;
  • “The Varieties of Ignorance”, de Nikolaj Nottelmann.

Rescher, Nicholas (2009). Ignorance: On the Wider Implications of Deficient Knowledge. Pittsburgh, The University of Pittsburgh Press.

A ignorância de Simmel

Cabe agora dar o passo da filosofia para a sociologia da ignorância, e para isso faremos um recuo estratégico no tempo, até chegar a um desses filósofos que ajudaram a fundar a sociologia – Georg Simmel. Comecemos por uma citação:

“Considerando o caráter acidental e precário das adaptações às nossas condições de vida, sem dúvida reproduzimos tanta verdade, mas também tanto desconhecimento e tantos erros, quanto convém para a nossa ação prática.”[5]

A palavra que Simmel usa na passagem acima para se referir ao que estou chamando aqui de ignorância, e que traduzi por “desconhecimento”, é “Nichtwissen” – termo que faria fortuna na sociologia de tradição alemã, sendo retomado por autores como Schütz & Luckmann, Luhmann e Beck.

“Nichtwissen” significa, literalmente, “não-saber”, com a ressalva de que o termo é um substantivo. Simmel não explicita o que o levou a escolher o termo, mas uma das razões parece clara: trata-se aí de evitar as conotações negativas associadas ao termo “ignorância” (também presentes no equivalente alemão). “Nichtwissen” não possui conotação negativa, de modo que, ao utilizá-lo, Simmel faz o movimento que sugeri na seção anterior, afastando-se da acepção de ignorância que a toma como sinônimo de estupidez[6].

Mas há mais um motivo para Simmel ter adotado o termo: trata-se aí de enfatizar a relação da ignorância com seu contrário, de pensar conhecimento e ignorância como dois polos de uma oposição elementar – o que permite a Simmel caracterizar uma série de fenômenos com base na maneira como esses elementos opostos se combinam. Essa é uma estratégia de construção conceitual comum em Simmel, que, por exemplo, caracteriza o amor como um estado intermediário entre o ter e o não-ter[7], e se serve, similarmente, da dicotomia entre ser e não-ser para discutir desde questões teológicas até estéticas. Em linha com isso, no contexto de sua sociologia do segredo e das sociedades secretas, Simmel discute as várias maneiras como manejamos o conhecimento e o desconhecimento no mundo social. Isso inclui, além do segredo, fenômenos como a mentira, a confiança, a discrição, as relações baseadas na intimidade (como a amizade e o amor), a espionagem e a censura.

Falta espaço para discutir como cada um desses tópicos se relaciona ao manejo do saber e do não saber no mundo social, por isso vou me ater aqui à questão da confiança – que, em um primeiro momento, pode parecer não ter muita relação com o desconhecimento. Vejamos o que Simmel tinha a dizer sobre o assunto:

“A confiança, entendida como uma suposição quanto ao comportamento futuro certa o bastante para servir de base para a ação prática, é como tal um estado intermediário entre saber e não saber algo sobre as pessoas. Quem sabe tudo não precisa confiar, quem tudo ignora não pode confiar, ao menos não de maneira racional”[8].

O ponto de partida aqui é que a confiança envolve uma mistura entre conhecimento e ignorância, entre saber e não saber. No âmbito interpessoal, o amante que fuça as mensagens de celular da parceira, ou do parceiro, não confia, de fato, nessa pessoa – ao contrário, qualquer um caracterizaria essa ação como uma demonstração clara de desconfiança. E o mesmo vale para a confiança que depositamos em certos profissionais – pessoas com as quais entramos em associação tendo em vista fins específicos, ou seja, de modo impessoal. Só precisamos confiar na palavra de um especialista – por exemplo, de um médico ou epidemiologista –, quando não somos, nós mesmos, especialistas no assunto. Quando não sabemos algo que algum especialista sabe, e que seria bom que nós também soubéssemos, para agir de maneira consequente.

Mas não confiamos em qualquer um, ainda mais em desconhecidos. Confiar também exige algum grau de conhecimento do outro – o que, é claro, varia em função de inúmeros fatores. A nossa confiança em nossos parceiros ou parceiras envolve um conhecimento de tipo íntimo, um contato pessoal e constante com a outra pessoa; ao passo que a confiança que depositamos, digamos, em um médico, não exige esse grau de familiaridade. Não é preciso, por exemplo, ir jantar com a família do Drauzio Varella para confiarmos em suas recomendações médicas. A confiança aqui é mediada por credenciais simbólicas, como o diploma, a filiação a uma associação de especialistas, a fama, a empatia, a identidade de princípios e valores, entre outros.

Simmel desdobra a questão de maneira a enfatizar essas variáveis, mas vai ainda mais longe, relacionando a questão à sua teoria da cultura. Nas suas palavras:

“Quais as medidas de conhecimento e desconhecimento é preciso combinar para viabilizar que a decisão prática do indivíduo se fundamente na confiança – isso é algo que distingue as épocas, as províncias de interesse, os indivíduos. A objetivação da cultura fez com que se diferenciasse de maneira decisiva a quantia de conhecimento e desconhecimento necessária para a confiança”[9].

Chegamos assim a um tema clássico do pensamento simmeliano: a relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva. Esse é o fio perseguido por Matthias Gross, que busca elaborar em maior detalhe como a discussão de Simmel sobre o que não sabemos fornece uma chave para pensar a relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva. O dilema em si é fácil de entender, mas difícil de resolver: quanto mais conhecimento produzimos como sociedade, tanto maior o número de coisas que deveríamos saber para agir de maneira consequente; mas tanto menor a proporção de coisas que cada indivíduo sabe frente ao conjunto do conhecimento socialmente disponível.

Ainda voltaremos à questão. Por agora, o que vimos basta para apreciarmos por outro ângulo a recomendação atribuída a Merkel. Sua fala era orientada pela ideia de que deveríamos confiar na expertise dos epidemiologistas, graças aos quais sabíamos da gravidade da pandemia. Mas, como mostra Simmel, saber e não-saber estão intimamente ligados entre si. Só é possível levar a sério o que sabemos, se levamos a sério, também, o que não sabemos; afinal, é só porque não somos, nós mesmos, epidemiologistas que afinal precisamos confiar na palavra dessas pessoas desconhecidas que, ao que tudo indica, sabem algo que nós sabemos que não sabemos.

Nem sempre, porém, a palavra do especialista é realmente confiável. Não faltam exemplos de especialistas com todas as credenciais objetivas e simbólicas que permitem reconhecê-los como autoridades legítimas em um assunto, e que não obstante atestam informações falsas. Nisso reside um dos grandes dilemas do presente, que não admite uma saída simples: pois se, de um lado, a confiança na palavra dos outros é indispensável para a vida em sociedade, de outro ela nos torna vulneráveis a todo tipo de desinformação.

Leituras elementares para quem quer saber mais sobre a ignorância de Simmel

Gross, Matthias (2012). “‘Objective Culture’ and the Development of Nonknowledge: Georg Simmel and the Reverse Side of Knowing”. In: Cultural Sociology, 6 (6), pp. 422-437.

Simmel, Georg (1992 [1908]). Soziologie: Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung (GSG, 11). Frankfurt: Suhrkamp. Confira o cap. 5; uma versão desse capítulo está disponível em inglês em: Simmel, (1906), “The Sociology of Secrecy and of Secret Societies”, in: American Journal of Sociology, 11 (4), pp. 441-498.

 

As funções sociais da ignorância

Embora Simmel tenha tematizado a ignorância, ele não chegou a articular algo como uma teoria social da ignorância, como fariam vários autores depois dele. Cabe agora considerar as duas principais tradições de pensamento social que, nesse meio, se ocuparam de investigar a ignorância do ponto de vista sociológico. Trata-se aí do funcionalismo normativo e do construtivismo social.

Vamos seguir a ordem cronológica, começando pelos autores funcionalistas. O principal texto de referência na área é um artigo publicado em 1949 por dois sociólogos americanos influentes em sua época, Wilbert Moore e Melvin Tumin. Desde Moore & Tumin, as abordagens sociológicas da ignorância costumam respeitar a seguinte diretriz geral: o sociólogo interessado no tema deve considerar a ignorância não só como desvio do conhecimento, mas, para além disso, como um fenômeno regular que integra a vida social e possui dinâmica própria. Para Moore & Tumin, isso implica “examinar […] alguns contextos em que a ignorância, em vez do conhecimento completo, exerce funções especificáveis na estrutura e na ação sociais”[10] – isto é, contextos nos quais a ignorância é eufuncional, para usarmos a terminologia proposta por Louis Schneider, na esteira de Moore & Tumin.

No artigo mencionado, Moore & Tumin identificam alguns desses contextos, e discriminam nada menos do que cinco funções básicas da ignorância – algumas das quais desdobradas em um leque de variantes. São elas: “preservar posições privilegiadas”; “reforçar valores tradicionais”; “preservar a livre competição”; “preservar estereótipos”; e “promover incentivos adequados ao sistema”.

Essas categorias, umas mais, outras menos específicas, são então interpretadas em chave funcionalista; ou seja, como respostas à questão: como, em cada caso, a ignorância contribui para conservar certo aspecto do mundo social? O cultivo de um “vocabulário especializado e possivelmente esotérico”, por exemplo, é tratado como um mecanismo para preservar a posição privilegiada dos especialistas frente aos leigos – já que tal vocabulário, por não ser facilmente inteligível para um leigo, serve ao especialista como meio não só para distinguir-se dos leigos, como também para se fazer reconhecer como especialista entre seus pares, dos quais se espera que também dominem tal vocabulário. Na mesma linha, os autores mencionam os casos análogos do direito à privacidade e dos segredos de Estado, que envolvem impor ignorância sobre fatos que, se conhecidos pelas “pessoas erradas”, poriam em risco certos indivíduos ou instituições – concluindo que, nesses casos, a ignorância serviria para “preservar a segurança do indivíduo ou do sistema social como um todo”[11].

Vários sociólogos deram sequências às ideias de Moore & Tumin, alguns ainda dentro da tradição funcionalista, outros extrapolando-a. Como exemplo do primeiro caso, menciono o trabalho de Louis Schneider, que propõe dar continuidade à proposta de Moore & Tumin de maneira a buscar integrá-la a questões de teoria social, e em particular à teoria da ação. Também se enquadra aí a discussão de Merton sobre a ignorância especificada, que é um exemplo de manifestação eufuncional da ignorância no âmbito da ciência. A ideia aqui é que especificar o que não sabemos é uma prática essencial para o bom funcionamento do processo científico, algo que os membros da comunidade científica fazem ao desempenhar o papel de cientistas.

Por fim, como exemplo de abordagem que dialoga com essa tradição, mas a transcende, menciono o estudo de caso de Rory McVeigh sobre a “ignorância estruturada”, termo que se refere à ignorância resultante de características estruturais da sociedade, e que ecoa a teoria marxista da ideologia[12]. No artigo em questão, McVeigh busca demonstrar a relação entre certas variáveis socioeconômicas e a proliferação de grupos ostensivamente racistas nos EUA, nos últimos anos da década de 1990 – e, em particular, de organizações que promovem a chamada supremacia branca (como o Ku Klux Klan).

Leituras elementares para quem quer destrinchar as funções sociais da ignorância:

Moore, Wilbert E. & Tumin, Melvin M. (1949). “Some Social Functions of Ignorance”. In: American Sociological Review, v. 14 (6), pp. 787-795.

McVeigh, Rory (2004). “Structured Ignorance and Organized Racism in the United States”. In: Social Forces, 82 (3), pp. 895-936.

Merton, Robert (1987). “Three Fragments from a sociologist’s notebooks”, in: Annual Review of Sociology, 13, pp. 1-28.

Schneider, Louis (1962). “The Role of the Category of Ignorance in Sociological Theory: An Exploratory Statement”. In: American Sociological Review, 25, pp. 492-508.

A construção social da ignorância

À medida que o funcionalismo perdeu espaço na sociologia, a ignorância passou a ser teorizada desde outras perspectivas – e em particular por autores em alguma medida alinhados à tradição do construtivismo social.

A ideia já está presente, em germe, na “Construção Social da Realidade” de Berger & Luckmann, mas só seria articulada de maneira explícita no fim da década de 1980, por Michael Smithson. Em “Ignorance & Uncertainty”, Smithson afirma com todas as letras que a ignorância, assim como o conhecimento, é socialmente construída e negociada – e propõe uma intrincada taxonomia de formas da ignorância, indicando as diferentes maneiras como elas seriam manejadas. Sua abordagem abre o caminho para o estabelecimento de dois grupos de pesquisa diferentes, que hoje compõem o campo dos estudos da ignorância. Smithson é um dos poucos autores que contribuiu para duas principais coletâneas organizadas por cada um desses grupos.

O primeiro deles surgiu nos Estados Unidos e é formado por historiadores e filósofos da ciência, que cunharam o termo “agnotologia” para se referir aos estudos da ignorância. Esse grupo, cujos principais expoentes são Robert Proctor, Londa Schiebinger e Nancy Tuana, organizou eventos sobre o tema e publicou dois livros por selos universitários – os volumes “Race and Epistemologies of Ignorance”, de 2007, “Agnotology”, de 2008.

A ideia norteadora da agnotologia é que, ao menos em alguns casos, a ignorância pode ser feita e desfeita, e a proposta desses autores é examinar os fatores culturais por trás da agnogênese – a produção da ignorância – em diferentes contextos históricos e sociais. Isso inclui desde a produção deliberada da ignorância, até formas menos diretas e “planejadas” de agnogênese.

O caso paradigmático de promoção ativa, deliberada da ignorância, discutida em detalhe por Proctor, é a campanha promovida por parte da indústria tabagista a partir da década de 1950, com o objetivo de acobertar o potencial carcinogênico do cigarro. Essa campanha envolveu o financiamento de pesquisas e a publicação de artigos que lançavam dúvida sobre a relação causal entre o consumo habitual de cigarro e o desenvolvimento de certos tipos de câncer. Temos hoje campanhas similares levadas adiante pra contestar, por exemplo, o caráter antropogênico do aquecimento global.

Como exemplo no qual constelações de valor produzem ignorância de maneira mais indireta, menciono o trabalho de Nancy Tuana, que explora o desconhecimento em relação à anatomia da genitália feminina. Tuana se debruça sobre uma série de manuais de anatomia para mostrar como, em muitos deles, o clítoris, por exemplo, é representado como uma estrutura simples, pobre em detalhes, em contraste com o pênis, que costuma ser retratado como uma estrutura complexa e rica em detalhes[13]. A autora busca, dessa forma, destacar a relativa desconsideração e desvalorização do prazer feminino em uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero, de modo a mostrar como relações de poder impactam não só no que sabemos, como também no que deixamos de saber.

Nos dois casos, o que temos são situações em que relações de poder explicam a agnogênese – e boa parte da literatura contemporânea sobre o tema se concentra justamente no nexo entre poder e (não-)saber. Esse também é o caso do trabalho da socióloga Linsey McGoey, que, junto com Matthias Gross, organizou a “Routledge International Handbook of Ignorance Studies”, de 2015. Podemos considerar McGoey, ao lado de Gross e Peter Wehling, como as principais figuras desse segundo núcleo de pesquisadores, mais concentrados na Europa.

Em “The Unknowers”, McGoey examina em detalhe o que chama de ignorância estratégica, que se refere a “ações que empregam, manufaturam ou exploram o desconhecimento com o intuito de evitar a responsabilização por ações anteriores”[14].

O nexo entre poder e (não-)saber também é explorado, por outro ângulo, por Ulrich Beck & Peter Wehling, que se concentram sobre o que chamam de politização do desconhecimento – que se refere a situações em que a própria definição do que deve contar como conhecimento ou desconhecimento torna-se objeto de controvérsia e disputa política.

Beck & Wehling discutem a politização da ignorância à luz de um diagnóstico mais amplo do presente. A ideia geral é que o momento em que vivemos (que os autores caracterizam por meio da ideia de sociedade de risco, de Beck) favorece a pluralização e politização do que não sabemos. Isto é: favorece o surgimento de múltiplas interpretações acerca do que deve ser considerado como ignorância, que em seguida tornam-se objeto de disputa na arena pública.

Para não desviar muito do nosso percurso, podemos acessar a questão retomando Simmel. Eis a ideia básica: o aumento cada vez mais rápido do volume do conhecimento produzido em sociedade – potencializado pelo avanço do conhecimento científico e pela divisão social do trabalho intelectual – nos torna cada vez mais dependentes do conhecimento uns dos outros, e em particular do conhecimento de especialistas. Vivemos cercados por um mundo de coisas que simplesmente não conhecemos bem. Para exemplificar o ponto, podemos imaginar uma situação na qual um médico ou farmacêutico prescreve para nós um medicamento que não conhecemos. Embora nós, numa situação assim, desconheçamos várias informações relevantes para a nossa decisão de tomar o medicamento – tais como se sua eficácia foi ou não comprovada por meio de estudos clínicos controlados de boa qualidade; a maneira como seu princípio ativo interage com o organismo; o quão rigoroso, em termos de controle de qualidade, foi o processo de fabricação das doses do medicamento que efetivamente chegaram às nossas mãos, etc. –, presumimos que outras pessoas sabem de cada uma dessas coisas que não sabemos: o prescritor, o farmacêutico, o funcionário da ANVISA responsável por fiscalizar o laboratório que produziu o medicamento, etc[15]. A maior parte das nossas decisões depende da atribuição voluntária de confiança – por vezes realizada de maneira automática, por hábito. Mas com isso, na prática, a validade objetiva de uma ideia é substituída por sua validação social, e discussões sobre fatos dão lugar a estratégias de persuasão, argumentos de autoridade e disputas de narrativa.

Recentemente, vimos em tempo real várias dessas disputas pela demarcação do que sabemos ou não sabemos. É isso que Merkel buscava fazer, na passagem que vimos no começo deste texto. E ela não é a única autoridade que buscou delimitar o que não sabemos sobre tal situação. Basta lembrar de uma das falas mais repercutidas de Jair Bolsonaro sobre a hidroxicloroquina, em meados de julho, na qual ele afirma não haver nem comprovação científica da eficácia no tratamento de covid-19, nem de sua ineficácia[16]. A essa altura, a comunidade científica já dispunha de evidências de que a hidroxicloroquina não era uma boa aposta para o tratamento da covid-19 – ou seja, estávamos em boas condições de saber aquilo que Bolsonaro insistia que ainda não sabíamos. Mas que a questão estivesse resolvida para a maior parte da comunidade científica não implica que não pudesse ser disputada no terreno da opinião pública – onde ainda era possível semear a dúvida sobre o assunto. Com consequências perigosas não só para quem segue a recomendação de Bolsonaro, como também para a própria esfera pública. Isso porque, para defender suas afirmações, Bolsonaro escala seus próprios especialistas – que são poucos, mas que, ao ganhar visibilidade na esfera pública, criam a impressão de uma controvérsia que não existe na comunidade científica, contribuindo para criar ruídos entre os sistemas científico e político e, dessa forma, minar a confiança do público na ciência.

A ênfase aqui é, diga-se, não exatamente na ignorância, mas no que conta como ignorância – o que está em disputa é a definição e comunicação do que, em cada caso, sabemos ou não sabemos[17].

Embora boa parte da literatura contemporânea sobre a ignorância se concentre no nexo entre (não-)saber e poder, ela não se resume a isso. Já o exemplo mencionado anteriormente suscita outro problema, central para os estudos da ignorância: o da distribuição do conhecimento socialmente disponível. Temas como a relação entre especialistas e leigos, que já haviam sido discutidos por autores da tradição funcionalista, são nesse sentido retomados por autores mais próximos da tradição socioconstrutivista, como Niklas Luhmann e Andrew Abbott.

Vale a pena nos determos aqui um pouco no breve artigo de Abbott sobre o tema – uma das contribuições mais originais do campo. Abbott publicou, entre outras coisas, alguns trabalhos que se tornariam referência no âmbito da sociologia das profissões – e, em um breve artigo de 2010, propõe um experimento com a literatura a respeito desse tema, em que é considerado um expert. Sua proposta no artigo em questão é examinar o que várias pessoas interessadas em conhecer o tema das profissões tipicamente ignoram sobre o assunto. Com isso em mente, ele distingue três níveis de ignorância sobre o tema: a ignorância do expert, definido como alguém cujo trabalho sobre o tema serve de referência para um grande número de outros pesquisadores; a do pesquisador profissional, que, apesar de ter trabalhos sobre o assunto publicados em revistas acadêmicas, não é considerado referência sobre o tema; e a do pesquisador amador. Para tratar da ignorância do expert, Abbott reflete sobre o que ele mesmo ignora sobre o assunto. Para discutir sobre a ignorância de um pesquisador amador, Abbott faz uma revisão do artigo da Wikipedia sobre as profissões[18]. E, para discutir a ignorância no nível dos pesquisadores profissionais, Abbott analisa 105 artigos publicados em 2008, em revistas indexadas, que citaram sua principal obra de referência sobre o assunto – “The System of Professions” –, buscando identificar o quão bem suas ideias foram compreendidas pelos seus pares.

Abbott mostra como, em cada um desses casos, a ignorância sobre o assunto tende a assumir contornos distintos. O pesquisador amador, por exemplo, tipicamente domina uma série de fatos sobre o tema das profissões – não raro ignorados até mesmo por um expert como Abbott –, mas tem pouca familiaridade com a literatura especializada e, além disso, não faz ideia de como filtrar a literatura relevante. Ou, nos termos de Abbott: ignora as habilidades que se espera que um pesquisador profissional domine, que facilitam a filtragem da copiosa literatura sobre o assunto. Ao passo que o sociólogo profissional, embora via de regra tenha alguma familiaridade com tais habilidades, revela-se com frequência ignorante sobre o próprio conteúdo da literatura por eles manejada. Como mostra Abbott, só um em cada quatro artigos que citou seu trabalho sobre as profissões precisava, de fato, citá-lo e o fez de maneira correta.

A lição que Abbott tira disso é que a sociologia da ignorância teria até aqui privilegiado um tipo específico de ignorância, a ignorância de fatos, em detrimento de outras variedades – e Abbott identifica duas delas, a ignorância de literatura e a de habilidades. Uma conclusão que é, diga-se, inteiramente em linha com trabalhos recentes no âmbito da filosofia de tradição analítica[19]. Não é esse, contudo, o ponto para o qual eu gostaria de chamar a atenção, e sim para a naturalidade com a qual o autor discute não só a ignorância do “inimigo” (como fazem a maior parte dos autores que atualmente se debruçam sobre o tema), mas também a de quem trabalha com pesquisa – a nossa ignorância. Sua revisão dos artigos que citavam seu trabalho escancara algo que no fundo a maior parte de nós sabe, mas em relação ao qual agimos como se não soubéssemos: que há algo de errado no modo como manejamos nossas citações e embasamos nossos argumentos científicos.

Ir mais a fundo nessa questão, porém, nos levaria para longe do tema principal deste texto. Tal observação serve aqui mais como pretexto para retomar aquela ideia de que não devemos tomar a “ignorância” com um insulto. Embora haja algo como um consenso nos estudos da ignorância quanto a isso, na prática, a maior parte dos trabalhos atualmente produzidos na área – em particular os que enfatizam a relação entre poder e (não-)saber – se debruça na ignorância do “inimigo”. Esses casos sem dúvida existem e é importante investigá-los com atenção; mas eles não contam a história toda, e por isso é igualmente importante complementar tais pesquisas com outras, mais atentas não só à ignorância que há entre nós, como também aos aspectos positivos do desconhecimento.

O que permite apreciar ainda por outro ângulo a recomendação de Merkel – agora para expor seus limites. Pois, na sua fala, o desconhecido aparece como algo assustador, que precisamos levar a sério porque, se não o fizermos, estaremos perdidos. Isso sem dúvida se aplica à situação que ela tinha em vista. Mas, em outras situações, a ignorância é algo que não devemos levar tão a sério assim – pelo menos não no sentido de tomá-la como algo assustador. Toda boa surpresa pressupõe ignorância, o que fica claro quando nos damos conta de que uma festa surpresa deixa de ser surpresa, no momento em que o homenageado fica sabendo dos planos da festa.

E o mesmo vale para outras surpresas, como é o caso das descobertas genuínas – aquelas que nos fazem questionar se de fato sabemos o que pensamos saber. O avanço do conhecimento – inclusive do conhecimento científico – depende de uma certa abertura para o desconhecido, de uma atitude mais experimental em relação à ignorância e à incerteza, como sugere Matthias Gross, seguindo uma pista deixada por Simmel[20].

Leituras elementares para quem quer entender a construção social da ignorância:

Abbott, Andrew (2010). “Varieties of Ignorance”. In: The American Sociologist, 41 (2), jun., pp 174-189.

Beck, Ulrich & Wehling, Peter (2012). “The politics of non-knowing: An emerging area of social and political conflict in reflexive modernity”. In: Rubio, F. Baert, P., The Politics of Knowledge. London & New York: Routledge, pp. 33-57.

Gross, Matthias & McGoey, Linsey (ed.) (2015). Routledge International Handbook of Ignorance Studies. London, New York: Routledge.

Gross, Matthias (2008). Ignorance and Surprise Science, Society, and Ecological Design. The MIT Press.

McGoey, Linsey (2019), The Unknowers: How Strategic Ignorance Rules the World. Zed Books.

Luhmann, Niklas (1998). “The Ecology of Ignorance”, in: Observations on modernity. Stanford University Press, pp. 75-112.

Proctor, Robert & Schiebinger, Londa (org.). Agnotology: The Making & Unmaking of Ignorance. Stanford University Press. Artigos recomendados:

  • “Agnotology: a Missing Term to Describe the Cultural Production of Ignorance (and Its Study)”, de Robert Proctor.
  • “Coming to Understand: Orgasm and the Epistemology of Ignorance”, de Nancy Tuana.

Smithson, Michael (1989). Ignorance and Uncertainty – Emerging Paradigms. New York: Springer Verlag.

 

Conclusão

Em resumo, a referência a esse “outro lado” do conhecimento que é a ignorância permite relacionar uma série de fenômenos que à primeira vista parecem desconectados entre si. Em consonância com isso, o leque temático dos estudos da ignorância é amplo, envolvendo fenômenos tão diferentes como a privacidade e o segredo, a incerteza (tanto a “manufaturada”, quando a inerente às situações em que nos achamos), o preconceito, a surpresa, a especialização, a desinformação, a imposição de tabus e de censura, em suas várias formas, e mesmo fenômenos bastante específicos como o direito de não saber, no âmbito da bioética. Neste artigo, por uma questão de recorte, ignoramos vários desses eixos temáticos – mas é possível chegar a eles a partir das referências que deixei aqui.

Uma omissão importante deste artigo – entre várias outras, diga-se –, que precisa pelo menos ser emendada antes do ponto final, é que o campo dos estudos da ignorância é por excelência interdisciplinar. Para entender melhor porque não sabemos o que não sabemos, precisamos entender como a sociedade se organiza; como funciona nossa cognição; e as características da própria realidade à nossa volta. A nossa vontade de saber encontra limites específicos em cada uma dessas três dimensões da existência. Por isso mesmo, os estudos da ignorância são um solo fértil para aproximações entre a filosofia, a sociologia, a psicologia e mesmo a biologia. E isso inclui não só aproximações com aquelas tradições que nós, cientistas sociais, já conhecemos bem – como a filosofia continental e a psicanálise –, como com outras que a maior parte de nós na prática desconfia e ignora, como a filosofia analítica, a psicologia cognitiva e a neurociência. Afinal, se queremos mesmo – como não disse Merkel – levar a sério o que não sabemos, então devemos estar dispostos a confiar na produção intelectual desses outros pesquisadores que se debruçaram sobre as questões que nos preocupam, como aquelas que dizem respeito a como manejamos o que sabemos e o que não sabemos a respeito do mundo à nossa volta.

[1] Sou atualmente pesquisador de pós-doutorado vinculado ao Departamento de Sociologia da USP, e gostaria de agradecer à CAPES, por financiar minha atual pesquisa; e à FAPESP, por financiar minha pesquisa de doutorado (encerrada em 2018), ambas no âmbito dos estudos da ignorância. Também agradeço à Ellen, pela leitura cuidadosa do primeiro esboço deste texto e pelos comentários valiosos que ajudaram a aprimorá-lo.

[2] Segue uma das páginas da CNN Internacional em que a frase é registrada:

https://edition.cnn.com/world/live-news/coronavirus-outbreak-03-11-20-intl-hnk/h_ab9bb8236fa91a9bf63cdbc7a69e0f10

[3] A coletiva de 11 de março está disponível no Youtube, no endereço a seguir (ver a partir de 23:08):

https://www.youtube.com/watch?v=lIPb9WBqQ0I

[4] Girel, 2017: 11.

[5] Simmel, 1992: 385-386.

[6] Agradeço a Matthias Gross e Peter Wehling – dois sociólogos contemporâneos com contribuições importantes para os estudos da ignorância – por terem me chamado a atenção para esse ponto nas conversas que tive com eles.

[7] Cf. o ensaio de Simmel sobre a coqueteria, em Simmel (2020), Cultura Filosófica, São Paulo: Editora 34 (pp. 117-8).

[8] Simmel, 1992: 393-4.

[9] Simmel, 1992: 393-4.

[10] Moore & Tumin, 1949: 788.

[11] Moore & Tumin, 1949: 790.

[12] Embora empregado por McVeigh, o termo “ignorância cultural” foi cunhado na década de 1970 por Michael Schwartz, em trabalho influenciado pela tradição marxista.

[13] A comparação do clítoris com o pênis se justifica, de resto, porque se trata de dois órgãos homólogos, isto é, que se desenvolvem a partir do mesmo tecido embrionário.

[14] McGoey, 2019: 3.

[15] Em um texto clássico sobre a sociologia das organizações, March & Simon (1958, Organizations. New York, Wiley) deram a esse fenômeno o nome de “absorção da incerteza”. O conceito é retomado e relacionado à questão da ignorância por Niklas Luhmann. A ideia, aplicada ao caso discutido no parágrafo a que se liga esta nota, é que o especialista “absorve” a incerteza que, de outro modo, dificultaria a tomada de decisão – permitindo à maioria de nós, que conta apenas com conhecimentos mais limitados e fortuitos de farmacologia, agir levando em conta conhecimentos que, para todos os efeitos, não possuímos.

[16] A fala virou notícia mais pela formulação atrapalhada de Bolsonaro do que pelo seu conteúdo. Suas palavras na live de 16 de julho foram: “Ah, não tem comprovação científica de que seja eficaz; mas também não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz; nem que não tem, nem que tem”. Para nós, menos importante do que a formulação embaraçosa é o conteúdo da mensagem, que certamente tem apelo e poder de convencimento – o que tendemos a perder de vista, ao focar na formulação atrapalhada.

[17] Isso, diga-se, nem sempre é muito claro na literatura contemporânea sobre o tema, sobretudo quando orientada pela matriz teórica proposta por Berger & Luckmann – que tende a confundir a ignorância com o que se passa por ignorância. Discuto a questão alhures. Por aqui, contento-me em pedir ao leitor cautela antes de sair afirmando, à maneira de Berger & Luckmann, que toda ignorância é socialmente construída.

[18] Ele mostra, de maneira convincente, que o autor desse verbete tinha pouca familiaridade com a discussão acadêmica sobre o tema. Pelas referências usadas pelo autor, tratava-se provavelmente de alguém com formação em contabilidade.

[19] Em particular com o trabalho de Nottelmann, citado na segunda seção deste texto. Seu trabalho – cujo título por sinal é similar ao de Abbott – também discute a ignorância de habilidades, embora não a de literatura. Esta, porém, pode ser pensada como um tipo de ignorância de fatos, na concepção de Nottelmann.

[20] Cf. Gross, 2008 – confira em particular o capítulo 6 do livro, em que Gross apresenta em maior detalhe sua discussão sobre o que chamo aqui de atitude experimental – ecoando os termos do próprio autor (que fala, para ser mais exato, em uma “sociedade do conhecimento experimental”).

Para citar este post:

Bárbara, Lenin Bicudo. As Leituras Elementares da Vida Acadêmica: os estudos sobre a ignorância. Blog do Labemus, 2021. [publicado em 15 de fevereiro de 2021]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2021/02/15/leituras-elementares-da-vida-acadêmica-os-estudos-sobre-a-ignorância-por-lenin-bicudo-barbara

1 comentário em “As leituras elementares da vida acadêmica: os estudos da ignorância, por Lenin Bicudo Bárbara

  1. Fabuloso seu texto. Thanks.

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