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Primeiros passos em direção à cegueira, por Olivia Von der Weid

Relato etnográfico

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Por Olivia von der Weid

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Em abril de 2011, procurando dar início a uma pesquisa sobre a percepção de mundo de pessoas cegas que realizei no doutorado, recebo a divulgação da Oficina de Arte Inclusiva, uma oficina de teatro para atores cegos e não cegos. A oficina tinha como objetivo trabalhar as possibilidades de construção cênica para além da visão, como videntes e não videntes representam em cena um sentimento, uma ideia ou um texto. Como se conectar com o outro e com o espaço ao redor sem o apoio do olhar? O que percebemos do contato quando a visão está deslocada dos olhos? O propósito principal da oficina era pesquisar recursos expressivos e criativos para a atuação de atores cegos e não cegos.

Ainda que não fosse atriz, intuí que aquela poderia ser uma oportunidade singular de participar de um processo criativo, onde estaria não apenas observando, mas vivenciando junto com pessoas cegas e não cegas a construção desse processo. Pensei que numa pesquisa que pretende compreender como pessoas cegas percebem o mundo, uma disponibilidade corporal que não estivesse apenas situada no olhar fazia sentido.

Na primeira parte do dia eram propostos exercícios corporais de sensibilização, conduzidos com o intuito de dar a possibilidade para aqueles que enxergam de se aproximar do universo dos que não enxergam. A intenção era desestabilizar uma forma de estar no mundo situada no olhar e provocar a abertura para outras formas de entender o entorno e se colocar nele. Na segunda parte, a partir da incorporação das diferenças, dificuldades e potencialidades dessas formas de estar no mundo, pensar e criar cenas teatrais.

O espaço onde se realizou a oficina era uma sala dentro do prédio da Caixa Cultural, localizado na Avenida Almirante Barroso, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Um espaço retangular, a sala era larga, e no canto do lado esquerdo, ao fundo, tinham mesas com lanche, água e café. No outro canto esquerdo, fazendo quina com a parede da porta de entrada, um tecido tipo filó, preso a uma arara, formava uma espécie de box, com uma fenda para quem quisesse entrar. Na diagonal contrária, outro box semelhante ao primeiro. Ao centro da sala tinham quatro molduras de quadro, vazadas, penduradas em alturas diferentes com fios de nylon amarrados ao teto. Tanto os boxes quanto as molduras eram objetos cenográficos a serem utilizados na montagem das cenas.

A sala não tem janelas, a única porta permanece fechada. Invariavelmente as luzes são apagadas como uma estratégia de colocar todos na mesma condição de não visão. O contraste da luz apagada ou acesa é imediato, mesmo que com o passar do tempo os olhos se acostumem e possam vislumbrar sombras. Quando as luzes estão acesas e os olhos abertos, as conversas paralelas e o barulho aos poucos se intensificam. Com as luzes apagadas e a escuridão, o silêncio se espalha e a escuta também se apresenta redimensionada. Naquele momento entendo que a absorção do ambiente, das pessoas e das experiências que se darão naquela sala não deve se basear na observação distanciada. O entendimento do que se passa não se centra no olhar.

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Com a proposta de imergir na escuridão para a realização dos primeiros exercícios corporais de sensibilização, a sensação do olhar como mediador entre o ser e o mundo, como instrumento de controle, observação e apreensão do ambiente, nos é (para os “enxergantes” que ali se encontram) subitamente interrompida. Os exercícios sugeridos na primeira parte de cada dia de oficina buscavam provocar um contato mais direto com os sentimentos e as sensações físicas que tangenciam o tema da visão. A escuridão, a respiração, o toque, os sons e uma consciência ou despertar do corpo como um todo eram elementos importantes a serem experimentados.

Qual o mecanismo a ser utilizado quando as luzes se apagam, os olhos se fecham e o movimento e a interação se fazem necessários? O apagar das luzes como mediação provocou num primeiro momento a paralisia, pela perda de um domínio aprendido e conhecido: o olhar como guia – para o movimento, o equilíbrio, a escolha de direção, o toque, o reconhecimento espacial ou mesmo como ponto de partida para interação entre os presentes. Desprovido desse vetor, afetado por essa ausência, meu corpo precisa reaprender a se orientar.

Não contar com o apoio da visão suscitou estranhamento. O corpo inteiro precisa se situar novamente enquanto atende ao comando de percorrer e explorar o espaço. Barulhos de deslocamentos, da respiração individual e dos que estão à volta, suspiros e grunhidos, estalos de partes do corpo. Os sons parecem salientar, como se estivessem mais altos do que de costume, porque irrompem inesperados, fora do controle de sua origem. Ao me aventurar aos primeiros passos o corpo reage e tensiona, com receio de esbarrões em qualquer uma das outras 25 pessoas que vagam a esmo descobrindo o espaço ou nas molduras e objetos ali dispostos. A estratégia primeira foi a de tatear com braços e mãos, que se projetavam a frente e para os lados, numa tentativa de dominar minha circunferência e me certificar que não daria de encontro a nada ou ninguém, que não invadiria o espaço de outros e que meu espaço não seria também invadido por uma proximidade física que não estava pronta para lidar, já que ainda não tinha domínio sobre esse corpo novo que se apresentava.

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Um corpo que precisa se reorganizar para entender o espaço e as pessoas a sua volta através do que sente, sem a confirmação imediata e cômoda do olhar. Depois de percorrer caminhos escolhidos a esmo, desviados por inevitáveis esbarrões em corpos que não reconheço, não tenho mais certeza se estou virada para a parede ou para a porta, se a mesa está atrás ou a frente de mim. Como se tivesse desaprendido a confiar em qualquer outro sinal físico que não a suposta segurança do olhar. Ao longo do processo me assusto quando dou de encontro a objetos que imaginava estar do outro lado da sala, meu corpo se retrai quando se choca com outros que não controlo, que se movimentam ao redor em uma busca individual de reconhecimento e troca.

Depois das mãos, como tentativa de reconhecimento débil e intimidado do espaço, o corpo inteiro se recoloca, a pele emerge como o órgão mais extenso e de maior capacidade de absorção de estímulos. Os toques, intencionais ou não, parecem ficar marcados de forma mais definitiva nessa superfície quando se está de olhos fechados. Parte do tempo em que estivemos ali se concentrou na experimentação e descoberta de novas medidas, não visuais, para si e para o mundo.

Com o passar dos dias, a realização de novos exercícios e o aprendizado de outras proporções para o ambiente. Aos poucos o espaço foi sendo descoberto e reorganizado mentalmente, mesmo que no fundo ainda ficasse uma desconfiança da nova forma de entendê-lo. Experimento outros planos, exploro o chão, o meio, a altura dos braços levantados. Os encontros inesperados com outros corpos se transformam em trocas propositais, em exame minucioso de massa, volume, textura da pele, o tipo e o tamanho do cabelo, cheiros diversos, que a princípio não me dizem nada da identidade daquele com quem interajo. Especulo nomes e pessoas, mas nem sempre sei, e fico com a dúvida que essas novas possibilidades de avaliação provocam. Aos poucos, com a repetição e a prática, o corpo absorve e aprende a reconhecer pequenos sinais não visuais de entendimento.

* * *

A entrada no campo teve um viés específico, uma oficina de teatro que se propunha trabalhar recursos corporais expressivos, como os gestos, as mímicas e o movimento e ainda as possibilidades de comunicação e representação em cena de atores cegos e não cegos. Entendendo o teatro como metáfora para a vida social (Goffman, 1996), fazer parte dessa experiência apresentou elementos a serem considerados na abordagem da percepção de mundo de pessoas cegas que talvez não se manifestassem em outras circunstâncias. A participação na Oficina Inclusiva despertou uma aproximação metodológica que foi sendo elaborada ao longo. Para compreender a percepção de mundo de pessoas cegas, o objetivo principal desta pesquisa, mostrou-se indispensável incluir o corpo como foco de atenção.

Se, com a ausência da visão, os outros sentidos e o corpo inteiro se colocam como mecanismos de apreensão do mundo, do espaço e das pessoas, na vida cotidiana o conhecimento pelo tato esbarra na restrição social ao toque entre pessoas (Le Breton, 2011). A proposta da oficina interrompe a lógica da restrição ao toque corporal, mas também explicita as diferenças de movimento e expressão por um corpo que não vê, mas está sendo visto. A percepção de mundo de pessoas cegas se constrói nas brechas de uma dupla fronteira – uma limitação física e um impedimento social. O ambiente teatral surgiu desde o primeiro momento como um meio criativo de deslocamento e subversão da segunda fronteira. Técnicas teatrais me pareceram uma maneira bastante particular e direta de abordar questões de pesquisa que diziam respeito muito mais a formas de funcionamento do corpo do que a pensamentos conscientes e elaborados sobre ele. O uso do teatro surge no início, e posteriormente ao longo de diferentes momentos do trabalho de campo, como um meio, uma forma de provocar reflexões incorporadas e de se aproximar das questões elementares da pesquisa.

O enfoque na performance é uma das tendências que ganha força entre as perspectivas antropológicas que priorizam os eventos rituais e o teatro como suporte para análise da realidade social. Uma “virada performativa” (Dawsey, 2007) ocorre em um conjunto amplo e variado de disciplinas que questionam o texto-centrismo e a primazia das análises de estruturas sociais e simbólicas. Em diversos campos, os pesquisadores voltam suas atenções também para a ação humana e para o modo como os sentidos do corpo são mobilizados na significação do mundo. Associo o interesse e a troca entre antropologia e teatro que iniciei ao longo da pesquisa de doutorado com uma vertente “dramatúrgica” da performance, pautada em pesquisadores como Victor Turner, Richard Schechner e Erving Goffman.

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O ambiente teatral, as performances e exercícios propostos, foram utilizados no campo de investigação como ferramentas, como “coisas boas para fazer pensar” (Dawsey, 2011). Estímulos e inervações corporais que produzem questionamentos. Modos variados de criar intensidades que se dirijam ao corpo, objeto primeiro de interrogação. Tais mecanismos não são provocados apenas no corpo do outro. Como pode ser notado no relato etnográfico, em diferentes momentos da pesquisa também me submeto a experimentos performáticos em meu próprio corpo junto a outros corpos para que questões enraizadas pudessem surgir desse diálogo (mas isso é assunto a ser aprofundado em outro momento).

Não posso considerar que desenvolvi uma antropologia da performance, já que não realizei uma análise minuciosa das etapas e transformações provocadas por ritos ou eventos performáticos teatrais. O resultado da pesquisa foi apresentado no formato tradicional de texto acadêmico, embora sejam linhas que se nutram de práticas e movimentos incorporados e participativos. O teatro e a performance foram mais um meio de aproximação do que objeto de análise. Valho-me da performance para promover momentos de interrupção de papéis, que têm como efeito produzir estranhamento em relação a si mesmo, manifestar elementos não resolvidos, abrir fendas em superfícies endurecidas.

A contribuição mais substancial das oficinas de teatro que participei ou da que desenvolvi posteriormente com Clara de Andrade (atriz e mestre em teatro pela UNIRIO) no Instituto Benjamin Constant por um ano e três meses durante a pesquisa de campo não está explicitamente no texto em formato de descrição etnográfica ou de uma análise dos exercícios e cenas teatrais que montamos. Sua presença se faz sentir na constituição de narrativas internas, aproximações, na criação de um ambiente de intimidade e confiança com o tema da cegueira e com pessoas cegas, na provocação de questionamentos que, ainda que nem sempre explicitados textualmente, também se originaram das matérias-primas fornecidas pelos encontros e pelo trabalho coletivo realizado nas oficinas. O processo de pesquisa desenvolvido de certa maneira se assemelha ao do cenógrafo analisado por Marcus (2004), na medida em que coleto colaborações de vários tipos e condições, formando um emaranhado de colaborações progressivas. No espaço multilocalizado, a política do conhecimento é definida por colaborações e cumplicidades.

O exercício direcionado de abrir ou fechar os olhos como aproximação metodológica para compreender um estado perceptivo diferente está longe de ser uma ideia inovadora, uma proposta ousada ou mera ingenuidade. Ao invés disso, procuro situá-lo no leque de aproximações aberto pela ênfase na dimensão participativa na pesquisa de campo (Favret-Saada, 2005), por uma antropologia dos sentidos (Van Ede, 2009) e pelos estudos de performance. Como uma pragmática de investigação ou um operador, é com e através de eventos performáticos (venda nos olhos) ou teatrais (participação nas oficinas) que desenvolvi uma análise sobre a percepção de mundo de pessoas cegas.

Van Ede (2009) sugere que, para uma abordagem dos sentidos e das diferentes formas de perceber o mundo, o método clássico da observação participante precisa estar implicado em algo mais do que a mera observação e escuta. No confronto com o “outro”, os sentidos colocam em questão as definições ocidentais sobre o conhecimento e os métodos apropriados para produzi-lo. A autora defende que, para fazer uma antropologia dos sentidos, é necessário ter uma abertura, uma vontade e uma coragem para transformar seu próprio corpo em uma ferramenta de pesquisa. No processo de desenvolvimento da tese procurei em muitos momentos abrir mão de um mundo de pesquisa que é hegemonicamente visual em seus métodos. Sem esquecer dos limites e possibilidades de sair de onde se veio, procurei experimentar, nos mesmos métodos tradicionais e na criação de outros, formas não visuais de observação e participação, com o intuito de criar aberturas para se falar de um outro lugar.

Referências:

DAWSEY, John C. 2007. “Sismologia da performance: ritual, drama e play na teoria antropológica”. Revista de antropologia, São Paulo, USP, vol. 50 (2): p.527-570.

________________. 2011. “Schechner, teatro e antropologia”. Cadernos de Campo, no. 20.

FAVRET-SAADA, Jeanne. 2005. “Ser afetado”. Cadernos de campo, vol.13, p. 155-161.

GOFFMAN, Erving. 1996. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes.

LE BRETON, David. 2011. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes.

MARCUS, George E. 2004. “O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, vol. 47 (1), p.133-158.

VAN EDE, Yolanda. 2009. “Sensuous Anthropology: Sense and Sensibility and the Rehabilitation of Skill”. Anthropological Notebooks, vol.15 (2), p.61-76.

3 comentários em “Primeiros passos em direção à cegueira, por Olivia Von der Weid

  1. Parabéns pela etnografia!

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