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Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques (2011), de Bruno Latour

por Diogo Corrêa

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Por Diogo Silva Corrêa

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Como é possível ver na foto, acaba de ser publicada a tradução em português do livro de Bruno Latour, Cogitamus: six letters sur les humantiés scientifiques, pela editora 34 (http://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=911). Como se trata de uma excelente obra cuja tradução eu entendo que deve ser saudada e muito bem-vinda, resolvi publicar a resenha que escrevi pouco depois que o livro foi publicado na França. Por isso, deixo claro que todas as citações são traduções minhas e a paginação utilizada refere-se à versão francesa .

Latour, Bruno. (2011) Cogitamus: six lettres sur les humanités scientifiques. Paris : La Découverte.

Já em outros livros como Science en action, Petites leçons de sociologie des sciences e Reassembling the Social, onde expunha as principais questões da sua ANTactor-network theory –,  uma das fundamentais preocupações de Bruno Latour sempre foi a exposição e a explicitação sistemática das questões e temas tratados em seus livros e artigos mais técnicos anteriores. O livro Cogitamus deve ser enquadrado como uma radicalização desse projeto, só que agora mais do que nunca tornado acessível não apenas aos especialistas (filósofos, antropólogos, sociólogos e afins), mas também ao leitor leigo.

O seu modo de apresentação é bem simples. Latour escreve seis cartas, todas elas endereçadas a uma estudante alemã, muito provavelmente Dorothea Heinz, cujo nome está presente nos agradecimentos e cujas iniciais aparecem na dedicatória do livro. Cada carta, que se inicia com ilustrações extraídas de jornais cotidianos, explora alguns dos pontos fundamentais da disciplina dada pelo próprio Latour no Instituto de Estudos Políticos de Paris (IEP), intitulada Humanidades Científicas.

Na primeira carta, o conceito de tradução é o carro chefe. Com ele, Latour visa refletir sobre um primeiro paradoxo: “como se virar entre, de um lado, o senso comum que nos diz (…) que as ciências são corpos estrangeiros e, de outro lado, esse mesmo senso comum que multiplica os exemplos de sua ligação?” (p. 16). A estratégia de Latour parece, portanto, ser dupla: de um lado, apontar a natureza relacional das ciências e das técnicas com os demais saberes e, de outro, reinserir os saberes no mundo.

Para isso, o autor volta à Grécia antiga e traz à baila a narrativa mítica de Plutarco, presente em Vidas paralelas, a propósito do papel de Arquimedes no cerco feito à cidade Siracusa. Simples assim: Hiéron, Rei de Siracusa, desejava executar o seguinte curso de ação: proteger a sua cidade do cerco das tropas do general romano Marcellus. Para que isso se tornasse possível, contudo, necessitava passar por um desvio: as ideias de Arquimedes sobre a alavanca. Pediu então o Rei ao sábio que este último aplicasse a sua invenção na prática, em uma situação concreta. Após a sua bem sucedida demonstração, diz-nos Latour que Arquimedes promoveu “uma verdadeira inversão das relações de força: um velho homem, Arquimedes, graças ao jogo de roldanas, torna-se mais forte do que uma nau cheia de soldados e cargas” (p. 20). A mensagem é clara: tanto a ideia de Arquimedes quanto a defesa da cidade de Syracusa só se tornaram realizáveis e puderam perseverar graças à composição dos interesses do Rei e do sábio. Muito embora, no final, Plutarco narre Arquimedes como “um espírito tão elevado e profundo” que só consagrava seu esforço aos “objetos cuja beleza e excelência não estavam misturadas com nenhuma necessidade material” (p. 23), a própria história contada o contradiz. Latour aproveita essa contradição para explorar a tese de que toda ideia só avança ao preço de múltiplos desvios e composições: “no fim, a ação é tecida por esses encadeamentos e parece com uma multiplicidade de camadas [feuilleté] de preocupações, de práticas, de línguas diferentes – às da guerra, da geometria, da filosofia, da política” (p. 30).

Se assim é, eis uma das primeira tarefas das “humanidades científicas” proposta por Latour: dar conta, na medida do possível, de todo o processo, e não apenas do final, retraçando toda a cadeia de desvios e composições. Ora, se cada ideia só se expande e persevera mediante essas múltiplas transformações, a consequência natural dessa perspectiva é uma revisão da própria noção de autoria: quem teria feito ou inventado, para utilizar um outro exemplo tratado por Latour na primeira carta do livro, a pílula anticoncepcional? Trata-se de uma questão secundária, já que o principal para o pesquisador seria retraçá-la como a resultante das traduções imbricadas nos interesses de, ao menos, quatro protagonistas: a militante feminista Margaret Sanger, a viúva herdeira da fortuna de uma fabricante de tratores, Catherine Dexter McCormick, o químico notório, Gregory Pincus, e, enfim, a família das moléculas chamadas de esteroides (p. 31)

Daí em diante, Latour ratifica esse duplo movimento. De um lado, o diretor científico da SciencePo Paris mostra como as ciências e as técnicas não estão separadas, mas encontram-se permanentemente em relação com outros saberes. De outro lado, Latour ancora os saberes na vida e no universo da experiência. Daí porque a ciência apenas interessa à medida que possui relação com outros cursos de ação que não apenas aqueles dos cientistas em seus respectivos espaços laboratoriais. Em outros termos, a ciência ganha seu valor e sentido apenas enquanto é capaz expandir-se e concernir os interesses de outras formas de vida. E interesse, na acepção latouriana, faz-se preciso dizer, não significa uma representação mental que existe de modo prévio à ação, mas uma combinação particular que emerge do próprio processo de composição e de desvio dos cursos de ação. 

Na segunda carta, o conceito de prova assume o protagonismo da cena. Trata-se de um problema de método: como analisar os desvios e as composições se, em geral, eles são invisíveis ou, para retomar uma velha expressão da fenomenologia, tidas por óbvias (taken for granted)? Ora, explica Latour, é no momento de prova que se revela “o embotamento de desvios e de composições” (p. 45). Ainda que exista outras modalidades de expressão da prova, a mais pedagógica, segundo Latour, é mesmo a pane. A situação é por todos nós conhecida: tudo funciona muito bem ao seu modo habitual e rotineiro até que, de repente, “paf, bug, gap, crise, furor” (p. 45). O computador, um mero objeto técnico, se apresenta agora enquanto um projeto sócio-técnico: “de simples, meu computador se tornou múltiplo; de unificado, ele se tornou desarmônico; de imediato, ele se tornou mediado; de rápido, ele se tornou lento (…)” (p. 47). E parte da rede e dos elementos heterogêneos constitutivos que o mantinham funcionando em perfeito estado, e agora falham, vem ao primeiro plano e tornam-se visíveis: “é quando as coisas se complicam que procuramos analisar os seus elos (…)” (p. 16). Um processo de investigação no sentido do filósofo pragmatista John Dewey se inicia. Uma vez o computador levado à equipe de técnicos, a indeterminação inicial começa a ser decifrada; a fonte da perturbação é encontrada e um problema se revela progressivamente. Soluções e hipóteses são testadas, examinadas, verificadas. Só então que, passado algum tempo, o problema é, enfim, reparado, e o dono do computador pode usufruir de sua máquina, e retomar o seu curso de ação… Uma vez concluído o processo, “e hop, o que há de verdadeiramente original nas técnicas logo desaparece” (p. 55). Nesse sentido, a pane faz o objeto – no caso, o computador – ser “redescoberto” não uma coisa inerte, parada, lá fora, mas um fluxo mantido por uma série de desvios e composições: “ele bem existe, mas ao modo de um corte no instante t. O objeto é uma parada sobre uma imagem do filme do projeto” (p. 55).

Desde suas reflexões de metafísica especulativa situada ao final do livro sobre Pasteur, chamada Irreductions (1984), Latour não retomava o conceito de prova de modo tão sistemático. Resgate do conceito esse que reverbera uma série de discussões do que pode hoje ser chamado de “sociologia pragmática francesa” (ver Corrêa e Castro, 2016) ou, como Cyril Lemieux a intitula, “sociologia das provas”. Tanto se nos ativermos à pragmática dos julgamentos ordinários de Luc Boltanski e Laurent Thévenot (1991), quanto à pragmática do senso de realidade trabalhada por Francis Chateauraynaud e Christian Bessy, a noção de prova é central, pois permite dar conta da incerteza inerente ao agir e ao mundo, propondo uma via média entre o universo etnometodológico no qual a realidade é permanentemente renegociada local e situacionalmente e um universo neo-objetivista, no qual os elementos envoltos na ação estão determinados de forma prévia mediante atualização de um passado incorporado nos corpos (habitus) e objetivado nas coisas (campos). Como veremos na parte final da resenha, Latour à discussão impõe seu próprio estilo.

Seguindo suas reflexões sobre a relevância dos dispositivos técnicos, Latour volta à discussão a respeito da diferença entre homens e os macacos. Ao invés de enfocar as propriedades da alma ou dos esquemas cognitivos altamente especializados, Latour pensa, sobretudo, nos dispositivos sócio-técnicos. Através deles, o antropólogo das ciências inverte a perspectiva tradicional do Ocidente (seja em sua versão filosófica aristotélica ou religiosa judaico-cristã): os homens não constroem ambientes mais sofisticados e aparelhados porque são mais capacitados do que os outros animais; ao contrário, é porque os ambientes dos humanos são mais aparelhados e bem equipados que as suas competências e capacidades são mais complexas, quer dizer, mais mediadas, mais múltiplas e mais plurais. Para exemplificar este argumento, Latour propõe o seguinte exercício: desfaçam-se todos de seus objetos sóciotécnicos (avião, carro, bicicleta, computador, caneta, lápis, cadernos, celular, etc) e pensem qual deles você mesmo seria capaz de fazer por sua própria conta? Nenhum? Este é o universo raso e permanentemente a ser recomposto da etnometodologia, mais precisamente naquele do qual jamais saem os macacos.

Em contraposição às teorias críticas que vislumbram os dispositivos técnicos e à ciência como redutores da ação – e da condição – humana à racionalidade instrumental, o ex-professor da École de Mines propõe uma tecnofenomenologia. Em termos sintéticos, Latour apregoa com esta última que quanto mais dotados de dispositivos técnicos somos, quanto maior é a cadeia de mediações pela qual passamos, mais nos aproximamos do mundo e dele nos tornamos íntimos.  Quanto mais os aparelhos e os instrumentos nos permitem fazer do invisível, visível, e do visível, legível, maior a nossa capacidade de interagirmos de modo íntimo com o mundo.

Em seguida, Latour propõe um pequeno gráfico cujo escopo é apresentar uma pequena história evolutiva das capacidades humanas e das coisas: indo das puras interações às ferramentas, dos signos às técnicas, das sociedades à artificialização, dos impérios às maquinas e das organizações às tecno-esferas, o autor apresenta uma nova linha que se inicia na complexificação social e vai até, digamos, a era da ecologia.

Duas são as narrativas que descrevem esse processo. De um lado, aquela que aponta para uma progressiva emancipação e que nunca deixou de ser exaustivamente propalada desde ao menos o Iluminismo. Grosso modo, é a narrativa dos modernos. De outro, a narrativa em nome da qual Latour advoga, que aponta para uma crescente multiplicação de vínculos e de implicações. Para essa última, não existe um processo de emancipação, mas apenas uma multiplicação dos vínculos e das associações, através de mais redes, mais objetos sócio-técnicos, mais dispositivos, mais composições, mais desvios e mais traduções.

Agora chegamos à terceira carta, e nela, das provas passamos às controvérsias científicas. Nessas últimas, segundo Latour, os enunciados transitam entre dois extremos: a dúvida radical e a certeza inconteste. O ex-professor da École de Mines explora a ideia de que “um enunciado que não precisa mais de aspas, de nenhuma condicional, possui a particularidade de tornar-se impossível de se distinguir do mundo” (p. 81-2). O enunciado inconteste (dictum), portanto, não é um pleonasmo do mundo, mas pode se tornar dele indiscernível como resultado provisório de uma longa controvérsia: “no início do exercício, o enunciado flutua; no fim, deve-se descobri-lo solidamente ancorado em uma paisagem precisa (…)” (p. 81). .

Cabe responder onde então seria possível perceber, seguir e acompanhar esse processo no qual o enunciado ontologiza-se progressivamente, ou seja, deixa de ser uma mera frase flutuante e torna-se ele próprio uma mera redundância do próprio mundo? Eis a importância das controvérsias. Sua exemplaridade consiste justamente no fato de que, através do acompanhamento de suas transformações imanentes, é possível ver, por exemplo, como um micróbio, até então mera especulação do pensamento, torna-se uma coisa concreta, quer dizer, parte integrante da experiência cotidiana dos atores.

Nessa lógica, a tarefa do pesquisador torna-se, então, “seguir, traçar ou cartografar uma controvérsia” localizando “todos os seus movimentos” (p. 85), todas as suas passagens, suas transformações e mudanças intensivas. Isso inclui, portanto, acompanhar os enunciados ainda permeados de dúvidas e hesitações, passando pelos estados intermédios como o “rumor”, a “opinião”, o “parecer”, a “proposição” até a sua possível fase final, em que se tornam “descoberta” e “fato”, quer dizer, inscrições nítidas e bem definidas, posteriormente encontradas em artigos acadêmicos, sem a necessidade de aspas.

Em seguida, Latour critica a distinção entre a epideixis (a retórica), em geral ligada ao mundo da política, e a apodeixis (a geometria), vinculada às ciências. No lugar de uma antinomia entre um e outro, o autor propõe reuni-los em uma mesma palavra, a eloqüência, definida como “a arte e a ciência do bem falar, mas lembrando sempre o quanto é difícil bem falar das pessoas – e sobretudo das coisas”. (p. 99). O ponto consiste justamente em explorar o fato de que, em uma controvérsia, a relação entre ciência e política é indiscernível; no limite, uma possível separação entre um e outro pode surgir como a resultante dos desdobramentos temporais da dinâmica interna da própria controvérsia, e não aquilo que já estava constituído de modo a ela prévio. Aproveitando essa reflexão, Latour propõe uma nova definição do de sua disciplina: “Humanidades científicas […] consistem em seguir todas as provas capazes de produzir ou não convicção, todas as engenhosidades, as montagens as astúcias, os achados, as coisas graças às quais termina-se por tornar evidente uma prova de modo a fechar uma discussão permitindo aos interlocutores mudar e opinião sobre o caso em torno do qual eles se encontram reunidos” (p. 100)  Pois se nada, se nem a mesmo a própria evidência é evidente a priori, então resta todo o trabalho de repertoriar as modalidades de constituição de sua emergência. E isso sem fazer uso de uma metafísica anterior aos processos controversos. Bem ao contrário, acompanhar a controvérsia, para Latour, é bem descrever as formas pelas quais os próprios atores edificam e, por vezes, modificam a evidência. Se evidência há, duas condições se impõem à análise. Primeiro, que ela parta diretamente dos atores e, segundo, que ela seja uma resultante de uma atividade conjunta. Em outros termos, que a evidência seja sempre oriunda não mais de um cogito, mas de um cogitamus.

Temos aí, com Latour, o esboço genérico das modalidades por meio das quais as entidades ou fluxos que compõem o mundo adquirem uma espessura ontológica e, para ser redundante, se realizam como real. O que também significa afirmar que tudo aquilo que o senso comum trata como óbvio e indubitável possui, portanto, uma história: as coisas nunca são dadas de antemão, mas são antes efeitos de uma multiplicidade de controvérsias coletivas, hoje em dia mais do que nunca sóciotecnicamente bem mediadas e equipadas. Toda verdade e todo enunciado verdadeiro não advêm jamais de um eu encerrado em si mesmo, mas sempre de um nós aberto e permanentemente afetado pela alteridade – lembrando que esse nós inclui não apenas outros humanos, como também os dispositivos e objetos sócio-técnicos, além de todas as modalidades de aparição das entidades em geral, como os deuses, os espíritos, as plantas, os animais, etc.

Na quarta carta, Bruno Latour retoma o famoso livro de Alexandre Koyré, que descreve a passagem do mundo fechado (antigo e aristotélico) para o mundo infinito (moderno e pós-revolução científica). O seu alvo é descrever uma nova passagem: a do mundo infinito ao multiverso complicado.

Para bem descrever e exemplificar essa transição, Latour apresenta um desenho feito por Galileu em seu diário de viagem, no qual próprio autor italiano conjuga, em uma mesma página, um desenho retratando as crateras da Lua, na parte de cima, e o esboço de um horóscopo, em baixo. Diante disso, o antropólogo das ciências descreve três posturas possíveis. A primeira, que seria suprimir o que está em baixo (o horóscopo), apontando Galileu como um gênio e inventor da astronomia. A segunda seria situá-lo na interface de dois mundos, a saber, o moderno, representado pela astronomia e o antigo, expresso pela astrologia, tratada como um resquício do passado arcaico e místico. Por fim, uma terceira: “seguir, durante um dado período, a lista de seres aos quais os sábios se sentem vinculados e que eles se esforçam para recombinar com o intuito de levar em conta a multiplicidade de injunções contraditórias que sua época parece lhe impor.” (p. 117). Com essa terceira via, Latour visa impedir ao anacronismo que tanto enxerga as pessoas do passado como precursoras de um futuro totalmente a elas alheio e estranho quanto reduzir a parte de baixo da página do diário de bordo de Galileu a um resquício pré-moderno.

Em lugar de propor uma repetição mítica que condena a história a sempre ecoar uma descontinuidade radical (ou uma ruptura epistemológica) entre um mundo antigo (ilusório) e um mundo moderno (esclarecido), Bruno Latour advoga pela passagem do universo ao multiverso (retomando, aqui, a expressão cunhada pelo filósofo pragmatista William James). Se não há mais essa descontinuidade radical, o próprio sentido da palavra revolução muda. No sentido promulgado de ruptura com todos os elos do passado, o autor diz que se trata de “um termo de guerra na boca dos combatentes que procuram tornar irreversíveis transformações que correriam o risco, sem isso, de voltar rápido demais” (p. 119). Na esteira do pensador alemão Peter Sloterdijk, Latour propõe pensar os processos de mudança e transformação não como Revolução ou Emancipação, mas Explicitação. Jamais rompendo com o passado, a história “torna explícito sempre mais elementos com os quais nos é preciso aprender a viver, elementos que tornam-se compatíveis ou incompatíveis com os que já estavam lá” (p. 120).  Oferecendo uma alternativa de escape à perspectiva dos modernizadores, Latour nos convida a uma nova “política epistemológica”. Nela, a tarefa do pesquisador deixa de ser, nos termos modernos, conhecer a realidade por dessubjetivação (como diria Viveiros de Castro), e passa a ser a de descrever “o agenciamento de todos os seres que uma cultura particular liga em conjunto em formas de vida prática” (p. 121). Mas tanto para fugir ao anacronismo quanto ao encerramento das entidades em uma “cosmologia coerente”, o antropólogo das ciências utiliza o conceito de “cosmogramas”. Para retraçá-los, propõe a descrição das “associações de conveniência, de coexistência, de oposição e de exclusão entre os seres humanos ou não humanos cujas condições de existência são pouco a pouco tornadas explícitas nas provas das disputas”. (p. 117). “Traçar os cosmogramas, [diz-nos Latour], é se tornar sensível às listas de associações e de duelos lógicos sem recorrer à distinção entre o racional e o irracional, o moderno e o arcaico, o sistemático e o bricolé” (p. 123). Com isso, o autor propõe aos pesquisadores que eles se tornem capazes de descrever as possíveis associações e dissociações e o surgimento de novos seres que pululam e surgem “da imensa circulação dos mercados e do comércio, das inovações do ateliê, dos achados que saem dos estúdios dos artistas, das guerras e dos infortúnios dos tempos, sem esquecer dos ratos, dos micróbios e das pestes, mas também, em parte, o que não é desprezível, dos lugares que chamamos laboratórios, cuja importância e ubiquidade não fazem senão crescer desde o século XVII.” (p. 123).

Na parte seguinte da mesma carta, Latour desenvolve uma breve história dos laboratórios, cuja descendência ele vincula ao ateliê, lugar por excelência no qual as entidades são testadas, verificadas, postas à prova, mudando assim, por vezes, de qualidade. Os escritórios, tratados como o lócus em que se forjam “tecnologias intelectuais” (p. 125-6), também por Latour são postos na origem dos laboratórios. Daí porque estes últimos seriam, na verdade, um emaranhado de entidades materiais (a maioria das quais em estado “quente”!) e de técnicas intelectuais. Seriam, portanto, o lugar por excelência em que, através da mediação de instrumentos, se forjam não apenas “novas capacidades mentais”, mas também o recinto no qual as coisas falam por si próprias ou, em outros termos, “falariam caso elas falassem”. Ainda na história dos laboratórios, Latour apresenta duas de suas origens. De um lado, situa sua origem em Galileu, cuja invenção de dois dos elementos basilares do laboratório ainda permanece atual: 1) a redução do fenômeno às condições ideais (o exemplo usado é a exclusão do atrito para a explicação queda dos corpos); 2) a capacidade de compatibilizar o universo da experiência com a linguagem de descrição da geometria e da álgebra.

A outra origem dos laboratórios, segundo Latour, teria ocorrido com Robert Boyle. O fundamental aqui seria a reprodução experimental e artificial de um fenômeno dentro do espaço laboratorial, apenas com o auxílio de instrumentos e dispositivos. De modo a complementar essa rápida genealogia dos laboratórios, Bruno Latour introduz a própria academia, enquanto comunidade constituída de pares que discutem e debatem ideias e experiências, e que mantêm relativa autonomia frente às demandas de outras comunidades.

Depois de mencionar o livro de Dava Sobel, em que a autora relata como a mensuração da longitude tornou-se possível, Latour sublinha a importância de que não fiquem os instrumentos e “invenções” restritos ao espaço controlável do laboratório e sejam confrontados pelas coisas do mundo. Para ser bem sucedida, a invenção deve, ela própria, sair dos espaços fechados e protegidos e ir à campo, suportando assim as transformações e variações que bem articulam as suas hipóteses de saída com a reação efetiva das coisas mesmas em sua chegada no mundo. Daí decorre uma crítica à noção de aplicação, a qual deixa de lado ou ao menos oblitera o fator experiencial de uma ideia, quer dizer, a “série de testes, de provas mais ou menos públicas, cujo fracasso pode colocar fim à experiência” (p. 140). Não é senão após contínuas verificações e testes que uma elaboração científica pode ter “efeitos práticos” e assim ter um efetivo êxito.

Mas por qual razão a noção de aplicação teria sido tão influente e feito, por tanto tempo e para tantas pessoas, sentido? Latour retorna seu arsenal para um de seus principais oponentes: a noção de res extensa de Descartes, esse espaço abstrato que prescinde das múltiplas dobras e curvas do espaço concreto. Historicamente, ela é tratada por Latour como uma astúcia epistêmica forjada pela ciência moderna com o intuito de produzir uma relação de continuidade entre o espaço abstrato, inteligível e calculável e o espaço concreto, inapreensível e imprevisível. Não seria isso um grande problema não fosse o fato de a res extensa ter sido confundida com a ontologia das próprias coisas: “notem bem, (…) malgrado essa pequena palavra res, não se trata de uma coisa, um domínio da realidade, mas de uma ideia, e mesmo uma ideia produzida por essa ‘louca da casa’, que é a imaginação” (p. 142).  Daí porque, uma vez mais, Latour propõe uma inversão: “na narrativa Cogitamus, são os laboratórios que aparecem em primeiro plano com todos os seus desvios e suas composições, seus cosmogramas coloridos, e é a res extensa que aparece como uma continuidade artificial, idealista, quase supérflua” (p. 144). Ora, no mundo dos multiversos a res extensa torna-se apenas mais um dos universos possíveis – muito útil, é verdade, para tornar certos espaços calculáveis e para facilitar e tornar possível a comunicação em certos casos, mas não para, digamos, refletir (sobre) a ontologia das coisas.

A quinta carta começa por colocar em questão a antiga separação entre especialistas, de um lado, e leigos, de outro. Pois, no momento mesmo em que os próprios especialistas dão frequentes e públicas demonstrações de desacordo e divergências, naturalmente a distinção, tão simples e dicotômica de outrora, se complexifica. Como agora defender a separação entre fatos indiscutíveis e valores indefinidamente disputados se os próprios porta-vozes dos fatos não possuem consenso a respeito do que eles realmente são? Ora, sem um princípio de transcendência (Deus, na Idade Média, e a Razão, para os modernos) capaz de validar a existência de uma realidade cujo modo de existência encontra-se fora de toda e qualquer discussão, como sustentar a antiga demarcação que separava os porta-vozes dos fatos e da realidade objetiva dos porta-vozes dos valores e de suas próprias impressões subjetivas? Se isso não é mais possível, como explicar a autoridade exercida por essa transcendência, a Razão? Afirma Latour que “a autoridade conferida à Razão transcendente não era, de fato, agora disso nós nos apercebemos, senão o resultado imprevisto e frágil da unanimidade sonhada pelos especialistas sobre questões esotéricas e de pouco impacto prático” (p. 163).

Depois do Climagate em Compenhage, onde mesmo os mais elementares matters of fact se mostram em sua condição de matterns of concern, afirma Latour que “o papel dado aos especialistas se tornou um papel insustentável e que é preciso que esses últimos encontrem outros apoios e os façam entrar em outras combinações” (p. 166). Que papel seria esse? Qual seria essa nova tarefa? Ora, se não podemos mais nos garantir na distinção entre ciência e política, entre o universo (da res extensa) em contraponto às diferentes visões das pessoas, o que fazer? Novamente o conceito de cosmograma é retomado, posto que, nesse caso, cabe ao pesquisador fazer cosmogramas capazes de explicitar a emergência contínua de novas entidades e associações do cosmos, quer dizer, novas formas de composição do mundo. Não mais, como descreve bem Viveiros de Castro, epistemologias variáveis para uma ontologia comum; bem ao contrário, na proposição latouriana as ontologias variáveis devem não apenas ser liberadas, com o fim dos antigos “Grandes Divisores”, bem como retraçadas na forma de cosmogramas. Retomando Isabelle Stengers, Latour propõe levar a sério e às últimas consequências uma política que faça jus à palavra cosmos ou simplesmente uma cosmopolítica.

Sem um princípio de transcendência norteador (Deus ou Razão), Latour parece, enfim, aderir ao pensamento pragmatista. Aos atores e também aos especialistas “é preciso confiar na démarche hesitante das provas  e dos momentos de prova, do tateamento e da hesitação, da precaução e da exploração coletiva.” (p. 171). Se a metafísica existe, que ela seja agora no plural e venha, parta e emerja diretamente dos atores. A questão da representação, seja dos homens (pelos políticos), seja das coisas (pelos cientistas), agora é deixada ao encargo desse caldeirão cosmológico do qual pululam as entidades relacionais humanas e não humanas. A boa ou má representação é apenas uma resultante desse imenso e complexo processo. Ao pesquisador, resta apenas a tarefa de acompanhar e seguir esses processos e transformações complexas, cheias de desvios e composições.

Na carona dessa indefinição, Latour volta à questão das controvérsias e do sítio de internet criado por ele e por seus alunos e colaboradores em que apresentam “cartografias de controvérsias” (p. 174). O escopo é partir de um assunto controvertido e tentar, em torno dele, reunir o maior número de opiniões e de pontos de vistas possíveis – sem esquecer de apontar e explicitar as suas variações ao longo do tempo. Com isso, a verdade sobre um determinado tema deixa de ser dada por um princípio transcendente e anterior à controvérsia, mas é reconfigurada permanentemente ao longo da confrontação do público (no sentido de John Dewey) envolvido no processo de definição do objeto ou questão em jogo. Os enunciados flutuantes e as entidades mobilizadas podem ter sua cadeia de associações retraçadas. Mas é preciso que uma ressalva seja feita: acompanhar uma controvérsia não é apenas congregar distintas opiniões em torno de uma questão, mas, mais do que isso, é apontar como um mundo, todo um cosmos se revela, emerge e se reconfigura na confrontação de ontologias. As diferenças existentes em uma controvérsia não são da ordem da opinião e não se restringem a visões de mundo diferentes. Mais do que isso, as diferenças de opiniões que abundam nas controvérsias são antes sintomas de diferenças ontológicas. Os atores discordam não porque suas visões de mundo são divergentes; antes, como ficou claro no famoso debate entre Ulrich Beck e Bruno Latour, é porque são os mundos dos atores diferentes que eles discordam. A aposta do professor da Science Po é que com essa nova metodologia proposta para retraçar controvérsias seja possível “calcular a multiplicidade de pontos de vista e de seguir a dinâmica de suas transformações” (p. 181). Com essas ferramentas de numeração de palavras e argumentos, Latour pretende tornar possível e comensurável uma dinâmica que seja integralmente interna à controvérsia e capte as suas variações intensivas imanentes.  E que, assim, se torne factível o projeto de analisar a “composição progressiva do mundo” pelos “atores eles mesmos”, sem a intervenção de nenhum princípio a eles externos.

Na sexta carta, Latour inicia com quatro definições do que, em geral, é tido por “científico”. Uma primeira faz referência às qualidades ou modos de ser de uma pessoa: controle das emoções, neutralidade, capacidade de calcular, etc. Uma segunda diz respeito à realidade mesma, quer dizer, ao mundo sem mediação da subjetividade (a res extensa desencantada e vazia de sentido). Uma terceira vincula-se à ideia de que o científico é o que é comprovável e embasado em dados concretos, que faz referência a um conjunto de instituições e dispositivos capazes de validar algo como real. Enfim, uma quarta: “dizer que um resultado é cientifico, é nos levar na direção de um laboratório (no sentido amplo) onde se recai sobre um conjunto de testemunhos reunidos em torno de um instrumento que permite abarcar os testemunhos de um outro conjunto de entidades submetidas às provas, graças às quais elas vão poder participar de um modo ou de outro do que se diz sobre elas” (p. 189). Nesse último, é como se as coisas falassem por si próprias, só que mediadas pelos homens ou, para retomar as palavras do autor, tudo se passa como se “a linguagem articulada dos humanos assumisse a linguagem articulada do mundo” (p. 189).

Essa última definição interessa a Latour porque ela impõe ao universal, ao extensível, ao contínuo e ao indiscutível uma dimensão temporal. Tudo depende da existência de um trabalho contínuo e permanente, cujos resultados, embora por vezes universalizáveis, nunca deixam de ser provisórios.

Em seguida, Latour enfim chega ao problema da Natureza, com N maiúsculo. Pra isso, invoca uma antiga anedota de Lévi-Strauss, retrabalhada por Eduardo Viveiros de Castro, na qual o ex-professor do Collège de France descreve, de um lado, a controvérsia entre Las Casas e Sepúlveda em torno da presença ou não de alma nos índios e, de outro, os métodos empregados pelos índios para saber se os espanhóis eram ou não dotados de um corpo. Segundo os Ocidentais, existiria uma continuidade dos corpos (a realidade material é a mesma para todos) em contraposição a uma descontinuidade de visões (nem todos a enxergam da mesma maneira). Com o índios, o inverso se daria: a princípio, todos os seres seriam dotados de alma, sendo o corpo o fator diferenciante. O corpo, sendo entendido não como uma entidade biológica ontologicamente destacada do ambiente, mas como um conjunto de afecções e capacidades em um fluxo dinâmico e ininterrupto, não seria o princípio universal subjacente às almas, mas aquilo que gera diferentes perspectivas. Esse exemplo, para Latour, possui um valor pedagógico, pois, ao propor não mais um multiculturalismo, mas um multinaturalismo, Viveiros de Castro conseguiria colocar em xeque a noção de uma natureza una, lá fora, em direção a qual a ciência, pelo estabelecimento de leis, desvelaria os princípios de seu funcionamento.

Nesse caso, a antiga Natureza, a da res extensa, torna-se então um dos casos possíveis de ligação e associação de seres múltiplos e heterogêneos, um modo particular de construção da continuidade de entidades a princípio radicalmente diferentes umas das outras. Trata-se tão somente de um modo arbitrário de se estabelecer continuidades extensivas ali onde vigem diferenças intensivas. Por isso, Latour novamente fala de multiverso em oposição ao universo. O objetivo é “deixar aberta a questão dos meios pelos quais se unifica ou não se unifica a diversidade do cosmos” (p. 195). Os cosmogramas aqui ganham o seu sentido maior: eles visam seguir, acompanhar e descrever o trabalho de unificação, antes pressuposto em conceitos gerais como o de sociedade ou de natureza, empreendido pelos seres para construir um mundo comum. Em poucas palavras, os cosmogramas bem retraçados permitem explicitar o que antes era tido como o princípio da explicação das coisas e do mundo.

De modo a melhor apresentar o mundo do espaço curvo e permeado por diferenças intensivas, o qual se opõe à desencantada “visão científica do mundo”, Bruno Latour invoca dois autores. O primeiro deles, apresentado como o “santo patrono do multiverso” (p. 198), é Charles Darwin. O segundo é von Uexküll. Do primeiro, Latour extrai a riqueza com que o autor sabe bem mostrar como, a cada geração, é necessário uma multiplicidade de infinitesimais invenções e adaptações para que a vida persevere. Do último, a Unwelt, um conceito forjado para dar conta de um nível da realidade que capte um ambiente-para-um-organismo, e faça portanto referência a um sentido que advenha dessa relação constitutiva e transacional. Nas palavras do próprio Latour, “em Darwin, é a pequena invenção singular que permite a adaptação e a transformação dos viventes, sem nenhum sentido superior para guiá-los. Em von Uexküll é a ideia de Unwelt, por oposição a de ‘entorno’, noção abstrata, inventada por pura comodidade para designar esse envelope universal que seria destinado a envolver todos os viventes”.

Mesmo as máquinas, tidas como reduto e exemplo maior do mundo mecânico e desencantado pós-revolução científica, são por Latour apresentadas sob uma nova perspectiva. Ao invés da visão imaginária de peças integradas em um funcionamento linear e retilíneo, Latour propõe reintegrá-las ao mundo e explicitá-las em seu modo de existência concreto. Enquanto máquinas-no-mundo, duas seriam a sua modalidade de aparição. De um lado, no espaço bidimensional do desenho no papel, no qual todos os deslocamentos parecem não implicar qualquer modificação ou transformação; de outro, fora do papel, onde “será preciso às máquinas todo um meio ativo, vivo, complexo, toda uma ecologia frágil para que elas cheguem a funcionar duravelmente” (p. 203)

Latour, em seguida, volta à questão da relatividade em Einstein. Aqui talvez seja necessário abrir um parêntese e explicar uma confusão comum entre relatividade, relativismo e relativização. Em primeiro lugar, Latour não advoga pelo relativismo, este entendido a partir da velha tese do senso comum segundo a qual “cada um tem um gosto diferente” ou, ainda, em sua modalidade neo-kantiana, de que cada cultura ou sociedade disporiam de filtros categorias que refratariam diversamente o modo de acesso às coisas. Segundo, a relativização pode ser entendida, como no livro De la Justification de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, como uma capacidade de que dispõem as pessoas de se distanciarem de um ponto de vista, quer dizer, de colocá-lo como uma possibilidade dentre outras possíveis. Feitas as considerações e ressalvas, assim explica o autor a noção de relatividade: “O que é a relatividade senão o esforço para restituir entre cada ponto e o seguinte a pequena descontinuidade que vai permitir de, literalmente, colocar os pêndulos na hora, e de assegurar assim, no final das contas, a continuidade das leis da natureza em todos os pontos? Ainda aí, o continuo é, sim, obtido, mas com condição de levar em conta a descontinuidade bem real, neste caso do tempo, que coloca o sinal para passar de um ponto ao outro, e o trabalho igualmente real pelo qual um observador mede o tempo superpondo os ponteiros grande e pequeno do relógio.” (p. 208).  A relatividade é, portanto, não uma forma de reduzir a realidade das coisas a mera construção. Bem ao contrário, como disse certa vez Viveiros de Castro, não importa a relatividade da verdade, mas a verdade do relativo. Nesse sentido, advogar pela relatividade é um modo de tentar, no limite do possível, lidar com as mudanças intensivas e qualitativas, sem reduzi-las a deslocamentos extensivos e quantitativos. Em oposição a epistemologia dos geômetras, a relatividade pretende restituir ao mundo sua ontologia, seus Unwelts, seu fluxo, seu devir, suas curvas e suas dobras. Em suma, ela pretende restituir à noção abstrata de massa a matéria e a energia viva de que ela é composta. Com essa discussão na qual Latour se apresenta como dentro da tradição da relatividade einsteiniana, que o sociólogo francês encerra o livro.

Com relação aos livros anteriores, Cogitamus representa três grandes avanços. Primeiro, ele verdadeiramente consegue reintegrar toda a trajetória intelectual de Bruno Latour em uma  sensibilidade comum – que, indo além da própria auto-definição autor, podemos chamar de pragmatista. Ainda que isso possa ser efeito de uma narrativa retrospectiva que faz tudo concorrer para a sua preocupação mais recente voltada para os “modos de existência”, o esforço nos parece legítimo e consistente.

Segundo, a ênfase na noção de prova e de controvérsia reverbera questões centrais da sociologia francesa pós-bourdieusiana. Ainda que Latour possa ser legitimamente lido como integrante da sociologia pragmática francesa, cuja caraterística maior tem se pautado pela ênfase nas situações de prova, nos momentos coletivos incerteza, nos grandes affaires públicos e controvérsias, isso não o impede de apresentar e impor um estilo particular nos seus trabalhos. Diferentemente da pragmática dos julgamentos ordinários de Luc Boltanski e Laurent Thévenot que, em uma versão neo-kantiana da noção de prova, sublinham as operações categoriais engendradas pelos princípios morais mobilizados pelos atores submetidos a um imperativo de justificação, Latour enfoca sobretudo as operações de ordem ontológica – aproximando-se, nesse sentido, da abordagem de Francis Chateauraynaud e Christian Bessy no livro Experts et Faussaires (1995). Quer dizer, importa a Latour a descrição da forma como os próprios atores, em situação controversa, fazem emergir novos instrumentos, entidades, objetos, etc, enfim, uma nova composição do mundo. O escopo é analisar a atuação dos atores e dos dispositivos técnicos nas situações em que a realidade, com o perdão da redundância, se faz real, a diferença se faz diferente e o novo se faz novidade. A questão dos cosmogramas e das cartografias é apenas uma ampliação dessa problemática das provas, agora extensíveis às discórdias duráveis, quer dizer, aos momentos críticos irredutíveis às situações de curta duração. Mesmo que na sociologia pragmática francesa mais recente abundem exemplos de propostas de acompanhamento de crises coletivas duráveis, Bruno Latour, juntamente com Francis Chateauraynaud e Daniel Cefaï, é o que parece ter melhor forjado instrumentos para seguir esses processos. Dentre esses, Latour é o autor cuja reflexão parece mais amadurecida quanto às implicações ontológicas de um processo controverso, o que o leva à postura bastante corajosa de propor uma cosmopolítica. É o ex-professor da École de Mines, portanto, que melhor explora a ideia de que, em uma controvérsia, os atores não renegociam diferentes visões ou versões acerca do mundo, mas, antes, experimentam a própria diferença existente em seus respectivos mundos. Como afirmamos acima, os atores, para Latour, discordam não tanto porque as suas respectivas visões de mundo divergem, mas suas perspectivas divergem porque seus respectivos mundos são diferentes. A epistemologia se encontra a reboque da ontologia. Dito isso, é preciso imediatamente acrescentar que a ontologia não é mais de um princípio metafísico da filosofia, mas uma espécie de metaontologia oriunda da própria confrontação das ontologias dos atores-eles-mesmos (ver a resenha de Patrice Maniglier [2012] do livro de Latour sobre os modos de existência). Trata-se da pior metafísica do mundo, exceto todas as outras: se antes, na filosofia, a metafísica era uma metafísica do eu, sempre idêntica a si mesmo, agora ela é uma metafísica experimental do nós, em constante processo de mudança e de transformação.

Ainda nesse ponto, é interessante notar como Bruno Latour se aproxima das reflexões de antropólogos contemporâneos como Philippe Descola, Eduardo Viveiros de Castro e Tim Ingold. Esses três antropólogos produzem uma detalhada crítica da ontologia naturalista das sociedades Ocidentais, cuja formatação seria dada por um multiculturalismo mantido ao preço de um uninaturalismo. Mas se Viveiros de Castro Viveiros de Castro e Tim Ingold colocam em questão esse divisor Natureza/Cultura(s), pelo viés da ontologia animista, Latour mantém certa originalidade, pois parte de dentro da própria ontologia naturalista, para colocá-la em xeque. Não podemos esquecer que o fato de sua antropologia das ciências ter sempre se voltado para os centros de produção de verdade e de realidade das sociedades Ocidentais, como, primeiramente, a ciência, mas também, em seguida, o direito, a arte, a religião, etc. Nesse sentido, pode-se dizer que a sociologia de Bruno Latour é, na verdade, uma endo-antropologia (ver Candea, 2011).

O terceiro ponto que merece destaque, por fim, refere-se ao aprofundamento apresentado por Latour de uma dimensão até então negligenciada por sua teoria do ator-rede. Em sua excessiva ênfase nas redes de associações heterogêneas, as quais eram redutíveis a um universo plano, carecia à teoria latouriana uma dimensão que, por falta de melhor termo, chamo de fenomenológica. Refiro-me a um plano a partir do qual os pontos interligados no mundo pudessem ser relacionados ou mesmo ancorados no próprio mundo. Esse é, inclusive, o principal ponto da muito bem trabalhada crítica à ANT feita por Tim Ingold em sua obra, também recém traduzida para o português, Being Alive (2011). O antropólogo inglês propõe “não uma rede (network) de pontos conectados, mas uma malha (meshwork) de linhas entrelaçadas”, sendo as linhas vistas não como “linhas abstratas e geométricas”, mas “linhas reais de vida – de movimento e surgimento”. Ainda em confrontação com o paradigma das redes, e brincando com o acrônimo ANT (formiga), Ingold propõe a SPIDER (aranha) e sublinha que a “ANT defende que os eventos são efeitos de uma agência que é extensamente distribuída na rede de actantes, comparável à teia da aranha. Mas a teia (…) não é realmente uma rede nessa acepção. Suas linhas não conectam; antes, elas são as linhas ao longo das quais ela [a SPIDER] percebe e age”. De modo a dar conta desse problema, Latour, na discussão em que traz à tona a Unwelt de Uexküll, parece se referir a um nível da realidade em que há tanto um ambiente-para-um-organismo quanto um organismo-para-um-ambiente. Assim, acha-se uma modalidade do existente que reenvia tanto a uma dimensão de sensibilidade fenomenológica quanto pragmatista, desde que nos atenhamos às considerações de John Dewey sobre a relação transacional do organismo e o ambiente. O universo plano das ANTs parecem, enfim, ter readquirido alguma densidade e uma espessura ontológica variável. Depois de ter afastado o domínio da natureza una, lá fora e desencantada, Latour parece se reconciliar com a dimensão do mundo que reencontra um multiverso. Claro, não mais o mundo infinito do universo de Koyré, mas o mundo complicado do pluriverso.

Ao terminarmos a leitura, fica a sensação de que Cogitamus é um livro de maturidade. Para além da brincadeira entre as palavras cogito e cogitamos, talvez essa seja efetivamente a única semelhança com as Meditações Metafísicas de Descartes: assim como o filósofo francês em suas famosas meditações, desde o início de Cogitamus Latour parece bem saber de onde vai partir e em que lugar ele quer chegar… Seria enganoso pensar que por se tratar de um texto introdutório e escrito em linguagem simples e clara, Cogitamus nada seria além de uma mera vulgarização de trabalhos e textos anteriores. Ao contrário, justamente por ser um livro de síntese de temas já amadurecidos, pode-se dizer que ele não apenas se permite avançar em temáticas até pouco tempo evitadas, como realiza um belo exercício de filosofia especulativa bem temperada com uma concreta antropologia das ciências e das técnicas. Sem dúvida, uma admirável síntese dos elementos heterogêneos da longa trajetória de Bruno Latour.

Referências bibliográficas:

Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. De la justification: Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

Candea, Matei. “Endo/Exo.” Common Knowledge 17, no. 1: 146–50, 2011.

Cefaï, Daniel. Pourquoi se mobilise-t-on ? Les théories de l’action collective, La Découverte, coll. “Bibliotheque du Mauss”, 2007.

Chateauraynaud, Francis & Bessy, Christian. Experts et Faussaires: Pour une sociologie de la perception. Paris: Métaillé, 1995.

Corrêa, Diogo Silva  &  Dias, Rodrigo de Castro. A crítica e os momentos críticos: De la justification e a guinada pragmática na sociologia francesa. Mana [online]. 2016, vol.22, n.1, pp.67-99. ISSN 0104-9313.  http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132016v22n1p067.

Dewey, John. Logic: The Theory of Inquiry. Holt, Rinehart and Winston, New York, 1938.

Ingold, Tim. Being alive: Essays on movement, Knowledge and description. London: Routledge, 2011.

Maniglier, Patrice. “Un tournant métaphysique”, Critique , n°786, p. 916-932, 2012.

Viveiros de Castro, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena, In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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