Da Série Verbetes
Albert Ogien (CNRS, França) e Louis Queré (CNRS, França)[1]
Tradução: Diogo Silva Corrêa
I – O tema da intersubjetividade foi introduzido para caracterizar o meio particular de interação dos seres humanos e distinguir sua socialidade da socialidade animal. Como o nome indica, uma relação intersubjetiva é uma relação entre sujeitos, o que se dá por oposição a uma relação entre sujeito e objeto. Quando se defende que os membros de um mundo social se referem uns aos outros segundo a modalidade da intersubjetividade, isso quer dizer, por um lado, que eles pressupõem um mundo compartilhado em comum e, de outro, que o meio em que eles agem e interagem é um meio no qual cada um se sente obrigado vis-à-vis aos outros, reconhece a autoridade de normas e de padrões impessoais sobre si mesmo, e presume que o mesmo seja válido para todos.
A pressuposição de um mundo comum é a pressuposição de uma comunidade de pessoas na qual o próprio sujeito percipiente supõe que, além dele, todos percebem, ou podem perceber, as mesmas coisas que ele, o que inclui adotar a mesma perspectiva ou compartilhar os mesmos sistemas de pertinência. Essa pressuposição é também a pressuposição de um mundo objetivo que existe independentemente do sujeito que percebe e que é acessível a todos que são dotados das mesmas capacidades perceptivas. Essa pressuposição é ativamente mantida pelos agentes, sobretudo nas situações de divergência perceptiva.
II – As expectativas normativas recíprocas que estruturam um universo de relações intersubjetivas se distinguem das expectativas concernentes à regularidade simples no comportamento das coisas, dos objetos e das pessoas. Por exemplo, um agente pode antecipar o comportamento de um outro em virtude do conhecimento que ele possui de suas disposições e hábitos; se sua antecipação se mostra falsa e sua expectativa se frustra, ela não vai buscar fazer valer os seus direitos diante desse fato. Contudo, o mesmo não acontece quando a expectativa encontra-se fundada na existência de normas sociais ou em uma distribuição de direitos e obrigações recíprocas. Nesse caso, toda decepção ou frustração pode se tornar uma ofensa e justificar uma reivindicação por direitos.
A intersubjetividade aparece, assim, como uma base essencial da ação: cada um agente pressupõe que os outros se referem aos mesmos enquadramentos institucionais e às mesmas crenças legítimas concernentes à vida social; e pressupõe que o agente, assim como todos que foram socializados em um mesmo contexto, conhecem esses enquadramentos e essas crenças e as subscrevem. Ou ainda: todos agem pressupondo que os outros percebem os mesmos eventos que eles, não produzindo outras interpretações além daquelas que são fundadas no senso comum; todos, também, subscrevem uma concepção idêntica a respeito do que é o curso normal das coisas ou da maneira normal de proceder na vida em sociedade. Trata-se de pressuposições pragmáticas revisáveis que, habitualmente, são tácitas (elas não são tematizadas por atos expressos). Sua presença operatória não se torna manifesta senão quando um problema de coordenação surge.
III – Uma das questões presentes nos debates atuais é: a problemática da intersubjetividade dá acesso à própria consistência do mundo social? Ou ainda: como se passa de uma relação intersubjetiva a uma relação social? Uma das fontes da reflexão contemporânea sobre a intersubjetividade foi a análise fenomenológica acerca do “problema de outrem”, isto é, da percepção ou, melhor ainda, da constituição, pelo Ego, de um Alter Ego (Benoist et Karsenti, 2001). Porém, mostrou-se impossível, a partir de uma problemática do reconhecimento de outrem, do encontro de subjetividades ou da cooperação de sujeitos, daí derivar uma descrição apropriada da vida social, pois “o social é (…) outra coisa além de ‘muitas, muitas, muitas’ ‘intersubjetividades’” (Castoriadis); é precisamente isso o que torna a subjetividade e a intersubjetividade possíveis. Alguns (Habermas, por exemplo, retomando e desenvolvendo certas intuições de G. H. Mead) tentaram sair da reflexão sobre a intersubjetividade da metafísica do sujeito introduzindo uma problemática da comunicação e da linguagem. A comunicação é, de fato, um lugar importante de constituição da intersubjetividade, e o é pelo jogo inerente que lhe é inerente de trocas de papéis comunicativos entre a primeira e a segunda pessoa, e pelo desenvolvimento que ela permite de interações cuja mediação é assegurada pelos “símbolos significativos” e pela adoção do ponto de vista do “outro generalizado”. Mas, a comunicação produz mais relações dialógicas que se estabelecem entre os sujeitos através de atos mais ou menos independentes uns dos outros do que relações sociais. A marca do social é o “coletivo anônimo”. Ela é também a distribuição regrada da ação entre, ao menos, dois polos diferentes embora complementares, e a interdependência das operações: não apenas um dos agentes realiza sua parte enquanto que o outro realiza a parte complementar (como na interação professor/aluno); mas também um não pode realizar a sua parte a não ser que o outro realize a sua: é preciso, como diz Vicent Descombes, que “alguém mais opere com o sujeito”.
Duas perspectivas muito diferentes sobre a coordenação da ação resultam dessa distinção entre o intersubjetivo e o social. Em um caso, trata-se de assegurar a ligação e o encadeamento de decisões e de atos que não dependem uns dos outros senão de modo externo: cada um tem em conta a ação dos outros, a antecipa e a ela se ajusta; mas cada sujeito é independente. No outro caso, a conexão é interna: trata-se de uma única e mesma ação distribuída sobre dois ou vários polos, e há uma interdependência forte das operações. Em um caso, a coordenação está totalmente ao encargo dos agentes, que apoiam-se sobre diferentes pontos de localização comuns, que são as convenções; no outro, a coordenação é sempre já assegurada pela instituição, ainda que aos agentes fique a tarefa de realizar o trabalho concreto de encadeamento (sequencial, entre outros) de contribuições correspondentes a parte de cada um. O primeiro caso corresponde muito bem à definição que Max Weber dava da atividade social – trata-se de uma experiência intersubjetiva de ajuste recíproco. O segundo corresponde sobretudo à concepção que havia George Herbert Mead do “ato social”: o ato social é um ato complexo cujos componentes são distribuídos entre indivíduos diferentes e controlados por sua conduta, a qual aparece nos atos de cada um deles.
[1] A versão original do texto encontra-se em “Vocabulaire de la sociologie de l’action”, Paris, Ellipses Édition, 2005, pp. 68-71.
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