Por Filipe Moreno Horta (UFSCar)
here lies bob dylan
murdered
from behind
by trembling flesh
who after being refused by Lazarus,
jumped on him
for solitude
but was amazed to discover
that he was already
a streetcar &
that was exactly the end
of bob dylan
[…]
here lies bob dylan
demolished by Vienna politeness –
which will now claim to have invented him
the cool people can
now write Fugues about him
& Cupid can now kick over his kerosene lamp –
bob dylan – killed by a discarded Oedipus
who turned
around
to investigate a ghost
& discovered that
the the gost too
was more than one person [1]
Em 13 de outubro de 2016, Bob Dylan foi anunciado como ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Em silêncio nas últimas semanas, contando inclusive com a retirada de uma breve menção ao prêmio em seu sítio oficial, membros da Academia Sueca já manifestaram seu desconforto com a postura do artista. Silêncio de um lado e retorno das críticas e demanda de posicionamento de outro ecoam nos mais diversos discursos presentes nas mídias sociais. A relação conflituosa com prêmios e a própria Suécia não são fatos novos nas experiências desta persona.
O que talvez pouca gente saiba é que Dylan é sueco. Ao final abril de 1966, durante a turnê europeia o artista foi recebido por um dos mais importantes radialistas de Estocolmo, Klas Burling[2]. A entrevista, transmitida em primeiro de maio do mesmo ano, traz de forma latente os conflitos entre Dylan e a mídia que já vinham sendo construídos desde 1963:
Klas Burling: Nós estamos em Estocolmo com Bob Dylan e eu imagino agora, com você estando em Estocolmo, se você poderia explicar um pouco mais sobre você mesmo e seu tipo de música. O que você pensa que as protest songs marcam?
Bob Dylan: Eu não… uh… meu…ó Deus. Não (risos). Não. Eu não vou… Eu não vou sentar aqui e fazer isso. Eu tenho ah, você sabe, eu estou acordado a noite inteira, eu tomei algumas pílulas, eu comi comida ruim e eu li coisas erradas e eu estou fora a centenas de milhas de carro e ah, eu não vou apenas sentar aqui e falar sobre mim mesmo como um protest singer ou qualquer coisa assim. […]
Klas Burling: Como você se chamaria a você mesmo, um poeta ou um cantor, ou você pensa que escreve poemas e coloca música neles?
Bob Dylan: Não… Eu não sei… É tão boba! Eu digo, você não pode… Você não perguntaria esse tipo de questões a um carpinteiro, iria? Ou a um encanador?
Klas Burling: Bom, porque eu estou interessando em suas gravações e penso que a audiência sueca também.
Bob Dylan: Então, eu também estou interessado na audiência sueca, no povo sueco e todo esse tipo de coisa, mas tenho certeza que eles não querem saber todas essas coisas estúpidas, você sabe […]
Klas Burling: Você conhece algum sueco?
Bob Dylan: Eu conheço vários. Acontece que eu mesmo sou sueco.
Klas Burling: Ah, certamente […].
Retirando o sarcasmo, sociologicamente relevante, o discurso recai num ponto muito importante: a fuga de Dylan perante aos binarismos categoriais, às definições essencialistas e demais representações individuais e coletivas sobre o indivíduo ou a sua atividade – algo que voltou à tona nas inúmeras publicações nas mídias sociais, provenientes dos mais distintos agentes que mais uma vez tentam desesperadamente categorizar o indivíduo em macros de definição. Entre 1963 e 1965, o artista fez um considerável esforço em ultrapassar as barreiras dicotômicas que o envolviam dentro do circuito e produção folk, como young/old, white/black, left/right etc. além de romper com a imagem de preacher enquanto porta-voz da “nova geração” daquele movimento musical e cultural, bem caracterizada na música “My Back Pages”. Um momento simbólico específico, a apresentação elétrica no Newport Folk Festivalde 1965, demonstrou algumas rupturas parciais na qual Dylan então havia percebido, de outra forma, sua posição no mundo, que trazia também distâncias, alteridades e fronteiras diversas. Esses conflitos, resultantes do próprio choque do indivíduo consigo mesmo e com o meio social, vez que o conflito entre a sociedade e o indivíduo prossegue no próprio indivíduo como luta entre as partes de sua essência (SIMMEL, 1917), impulsionaram o artista a um movimento de self-transcendence (SIMMEL, 1918), levando não apenas a uma mudança em sua escrita, performance em shows e entrevistas, assim como na alteração do significado de protest-song: se antes para o movimento folk ela representava a denúncia das desigualdades na sociedade estadunidense, o termo para Dylan passou a significar precisamente sua postura crítica e subjetiva self-centred, mas que também pode ser lida na chave do reconhecimento de si e a busca por uma liberdade do Eu em relação à própria produção musical (HONNETH, 2010).
Mas no que mais isso se conecta com o Prêmio Nobel, com o desejo/demanda dos críticos, acadêmicos e fãs de Bob Dylan, dialogando com o silêncio? Ou melhor, como insistimos em não aprendermos com os fatos e processos históricos?
O prêmio Tom Paine e o jantar de 13 de dezembro de 1963
-1ºC. Fez um frio comum para uma sexta-feira noite de inverno de Nova Iorque. Naquele dia, 13 de dezembro de 1963, cerca de mil e quinhentas pessoas da “velha esquerda” estadunidense, mais alguns da “nova classe média” e “radicais suavizados” (SHELTON, 2011), se reuniram no salão do Americana Hotel em Midtown Manhattan. A ocasião, um jantar em comemoração ao Bill of Rights, organizado pela Emergency Civil Liberties Committee (ECLC)[3] e cujo foco, além da arrecadações de donativos, era a entrega do Tom Paine Award, concedido às figuras políticas que simbolizassem a luta pela “igualdade” e “liberdade”. Em 1962, o homenageado foi Lord Betrand Russel, que naquele ano havia mediado a crise dos mísseis em Cuba. Já em 1963, os nomes foram os de James Baldwin e Bob Dylan.
Dylan estava depressivo naquela época e já dava sinais de irritação com alguns setores da mídia. Um dos principais motivos de conflito foi uma matéria da Newsweek publicada um mês antes: além de expor o nome verdadeiro, Robert Allen Zimmerman, a reportagem desmentia toda a construção de que o artista era um órfão. Isolado em Big Sur, California, o artista não acreditava ser merecedor do prêmio. Cogitou não ir ao jantar. Mas foi. Não preparou um discurso e “começou a beber cedo demais” naquela noite (SHELTON, 2011). Estava desconfortável com suas várias percepções sobre aquele encontro. Esta foi a fala:
Estou sem violão, mas posso falar. Quero agradecer-lhes pelo Tom Paine Award em nome de todo mundo que foi até Cuba [Dylan e alguns amigos apoiavam Fidel Castro e alguns chegaram a ir para Cuba após a Revolução Cubana]. Primeiro de tudo, porque eles são todos jovens e eu levei muito tempo para me tornar jovem e, agora, me considero jovem[…] Não é um mundo de pessoas velhas. Não tem nada a ver com pessoas velhas. […]E eles falam sobre negros e falam sobre preto e branco. E eles falam sobre cores vermelha e azul e amarela. Cara, eu apenas não vejo nenhuma cor nenhuma quando olho para fora. Eu não vejo nenhuma cor mesmo e se as pessoas têm aprendido ao longo dos anos a olharem através da cor… […] Para mim, não há mais preto e branco, esquerda e direita; só há para cima e para baixo e para baixo é muito perto do chão. E estou tentando ir para cima sem pensar em nada trivial, como política, que não tem nada a ver com isso. […]Quero aceitá-lo[Tom Paine Award] em meu nome, mas não o estou realmente aceitando em meu nome e não o estou aceitando em nome de nenhum tipo de grupo, nenhum grupo negro ou algum outro tipo de grupo. […] Vou me impor e ser inconciliável em relação a isso, o que tenho de ser para ser honesto, simplesmente tenho de ser, ao chegar a admitir que o homem que atirou no presidente Kennedy, Lee Oswald, não sei exatamente onde, o que ele pensou que estava fazendo, mas tenho de admitir com honestidade que eu também, eu vi algo de mim mesmo nele (vaias). Não acho que isso teria chegado, não acho que isso poderia ir tão longe. Mas tenho de me impor e dizer que vi coisas que nele sentia em mim, não para ir tão longe e atirar (vaias e assobios). Vocês podem vaiar, mas as vaias não têm nada a ver com isso. É só um… Eu só, ah… Eu tenho que dizer, cara, é o dia da Bill of Rights, é a liberdade de expressão (e alguém diz a Dylan: “o tempo acabou”).Só quero admitir que aceito esse Tom Paine Award em nome de James Forman, do Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil[Student Nonviolent Coordinating Committee – SNCC], e das pessoas que foram a Cuba (vaias misturadas a aplausos). (grifo meu).[4]
A noite foi um fiasco. A arrecadação ficou 30 mil dólares abaixo da expectativa. Nos dias seguintes, incomodado com a crescente repercussão do fato, Dylan enviou uma carta aberta ao comitê descrevendo seu mau humor, sua característica de compositor e não orador público; reforçou que não tratava-se de um pedido de desculpas e que, mesmo orgulhoso de ter sido homenageado, se disponibilizava a devolver o prêmio se fosse preciso e, inclusive, se dispôs a pagar o prejuízo com as arrecadações.
Eu não posso falar. Eu não posso conversar.
Eu posso somente escrever e eu posso somente cantar […]
O que eu deveria ter dito era “muito obrigado, senhoras e senhores”
Sim isso era o que eu deveria ter dito
Mas infelizmente… Eu não disse […]
Eu deveria ter lembrado “Eu sou BOB DYLAN e eu não preciso falar
Eu não preciso dizer nada se eu não quero”
Mas
Eu não me lembrei […]
Eu sou um escritor e um cantor de palavras que eu escrevo
Eu não sou um orador nem nenhum político […]. (grifo meu). [5]
Uma resposta veio no dia 19 de dezembro quando Corliss Lamont, escritor, educador e herdeiro de uma fortuna e um dos dignitários do evento enviou uma carta ao público que esteve presente:
[…] Muitos de nossos amigos desaprovaram nossa escolha por Bob Dylan para o Tom Paine Award. Sem defender seu discurso, eu gostaria de dizer a vocês por que nós sentimos que ele mereceu o prêmio. […] Aprovando ou não, Bob Dylan se tornou o ídolo dos jovens progressistas de hoje, independentemente de suas facções políticas […]. Walt Whitman e Woody Guthrie, os antecedentes culturais de Bob Dylan, não foram apreciados por suas sociedades até que eles estivessem muito velhos. Nós pensamos que seria melhor fazermos o esforço agora em compreender o que Bob Dylan está dizendo para e pela juventude.É verdade que ele não é tão respeitável quanto Lorde Russel, o ganhador do prêmio no ano passado, mas nem Tom Paine o foi, e nossa história é cheia em desconsiderara mensagens importantes que não foram respeitadas em seu tempo […]. (grifo meu).[6]
Cerca de seis meses depois, Dylan deu sua versão a um jornalista do New Yorker:
Não faço parte de Movimento nenhum. […] Caí numa armadilha […] Me senti desconfortável […] As pessoas que estavam comigo não puderam entrar […] Fiquei desconfortável mesmo. Comecei a beber. Eu vi um monte de pessoas que não tinham nada a ver com o meu tipo de política. […] Lá estavam essas pessoas que estiveram todas envolvidas com a esquerda na década de 30 e agora eles estavam apoiando manifestações pelos direitos civis. Isso é maneiro, mas eles também estavam usando peles e jóias, e é como se estivessem doando seu dinheiro por culpa. Levantei-me para ir embora e eles me seguiram e me pegaram […] Quando subi para fazer meu discurso, àquela altura só podia dizer o que estava passando pela minha cabeça […] O presidente ficava chutando minha perna por debaixo da mesa […]Vou lhe dizer, nunca mais vou ter algo a ver com organização política alguma pelo resto da vida. (SHELTON, 2011, p. 290-291, grifo meu).
Segundo o poeta beat e amigo, Allen Ginsberg: “na noite em que Dylan recebeu o prêmio, ele aparentemente levantou cheio de atitude e disse que ele não era um poeta politizado e nem empregado de ninguém da esquerda e sim um trovador independente ou algo do tipo. E deixou todos putos da vida por não ser mais uma foca bem treinada”[7]. Mais de cinco décadas depois e vários prêmios recebidos as discussões são as mesmas: merecimento/meritocracia, definição de categorias e inscrição desses discursos e representações coletivas no corpo do artista, delimitando até onde pode ir ou o mínimo que se espera em tais eventos. De forma geral, todo um fluxo de acontecimentos se combinam num processo histórico no qual podemos observar não apenas o jantar de 1963, mas as críticas de sempre que acompanham o artista, assim como sua reação ou resistência nessa relação historicamente conflituosa.
As críticas de sempre e os isolamentos
Entre 1963 e 1965, Dylan foi acusado e criticado por vários motivos: se trabalhava num blues, ele era um “branco roubando a música negra”; se desenvolvia o talking blues, um “imitador”; quando não compunha músicas de protesto, os tradicionalistas diziam que ele era um “traidor” e “apolítico”, quando era subjetivo, era taxado de “existencialista centrado em si mesmo” (SHELTON, 2011). O álbum Another Side Of Bob Dylan, lançado em agosto de 1964, já mostrava claramente aquilo que pretendia: um outro lado do artista. Trouxe não apenas o desgaste do artista perante sua posição e situação no circuito cultural, o seu cinismo, a rejeição a mitos sociais – como o “amor”. Alguns críticos foram indiferentes e a “esquerda folk” denunciou o que seria “subjetividade demais”.
Se por um lado a relação com a mídia piorava a cada ano, o mesmo se dava com o público folk. Após as hostilidades do Newport Folk Festival de 1965, não foram raras as vaias em outras apresentações nos EUA e Inglaterra, nas quais era comum parte da plateia se retirar dos auditórios e, em entrevistas, criticavam-no chamando-o de “traidor”, que ela havia se “prostituído”. Durante a turnê inglesa de 1966, jornais ingleses aprofundaram as críticas: o Glocuster Citizen escreveu: “A maior parte do público que permaneceu no teatro demonstrou uma indiferença gelada quando ao sacrifício de letras e melodias realizada pelo ídolo em favor da batida do rock; um carta publicada pelo Bristol Evening Post dizia: “O incrível poeta que significou tanto para a minha vida arruinou a si mesmo […] Eles enterraram Dylan numa cova de guitarras e bateria ensurdecedora. O meu consolo é que Woody Guthrie não estava presente”. O Brimingham Mail deu a manchete: “Dylan, A Lenda, desaponta”. O embate da mídia se transferiu para a interação da plateia com o próprio artista em vários shows da turnê. Um caso simbólico ocorreu em Manchester, em 17 de maio de 1966: após tocar a música “Ballad of a Thin Man”, canção extremamente crítica a tudo e todos que rodeavam o artista, um membro da plateia gritou “Judas!” ao qual Dylan respondeu “I don’t believe you! You’re a liar!” e se dirigindo a banda, disse “Play it fucking loud!”, emendando os acordes iniciais de “Like a Rolling Stone”.[8]
Em todos esses anos a animosidade era recíproca e o distanciamento entre as partes aumentava. E compreendia que era tipo por um objeto perante as demais relações que possuía:
Entrevistador: Por que ser tão hostil?
Bob Dylan: Porque você está sendo hostil comigo. Você está me usando. Eu sou um objeto para você. Eu passei por isso antes nos Estados Unidos. Não há nada pessoal. Eu não tenho nada contra você. Eu apenas não quero ser incomodado com seu artigo, isso é tudo. Eu apenas não quero ser parte disso. (Entrevista para Laurie Henshaw, 12 de maio de 1965).
Como retratado na música “Maggie’s Farm”, que não por acaso sua primeira apresentação abriu a setlist do Newport Folk Festival de 1965, Dylan se via explorado e limitado pelo que esperavam e queriam dele:
[…] Eu tento o meu melhor
Para ser igual eu sou
Mas todo mundo quer que você
Seja como eles
Eles cantam enquanto você se escraviza e eu só fico entediado
Denúncia não apenas em algum eu-lírico, mas deixava bem pontuada a situação de seu próprio trabalho em entrevista:
Na última primavera. Eu acho que eu iria parar de cantar.Eu estava muito drenado, e o caminho que as coisas estavam indo era uma situação muito exaustiva […]De qualquer forma, eu estava tocando um monte de músicas que eu não queria tocar. Eu estava cantando palavras que eu realmente não queria cantar […] Mas “Like a Rolling Stone” mudou tudo: eu não me importava mais depois disso sobre escrever livros ou poemas ou o que fosse. (Entrevista para Nat Hentoff da revista Playboy dos EUA no segundo semestre de 1965, publicada em março de 1966, grifo meu).
Em termos de Marx (2009), a atividade autoconsciente do artista concentrou-se não apenas em sua escrita, performances, mudanças estéticas de vestuário e no que Robert Shelton chamou de “antientrevista”. O ato político daquele que busca algum tipo de emancipação – na verdade a do cidadão moderno típico da sociedade capitalista que não resulta na emancipação humana – reduz o indivíduo à um tipo específico e aparente de independência e o submete a processo de constate individualização, que também coincide com as críticas, não raras, sobre o caráter “egoísta” de Bob Dylan ou de seu isolamento social (SILVEIRA, 1994), reforçado pelo artista diversas vezes, como durante a turnê inglesa de 1966, ao dizer: “é sempre solitário onde eu estou”.
Segundo a agenda oficial, em 1962 foram 7 apresentações, sendo cinco em New York, uma em Minneapolis e uma em Montreal (Canadá). Em 1963, 20 apresentações, passando por oito estados estadunidenses e uma apresentação na Inglaterra. Em 1964, 28 apresentações, passando por dez estados, incluindo uma apresentação no Hawaii e outra na Inglaterra. Em 1965, 65 apresentações, passando por quinze estados, duas cidades canadenses e sete cidades inglesas. Antes de embarcar para a terceira turnê europeia, em março de 1966, Dylan confidenciou a Robert Shelton:
É preciso de muitos remédios para manter esse ritmo. É muito duro, cara. Uma turnê como essa quase me matou. Está sendo assim desde outubro [1965] Isso me enlouquece, de verdade. Nunca aconteceu nada parecido antes. Tem sido um período bem estranho, me derrubou mesmo. Vou reduzir o ritmo. No ano que vem, a turnê vai durar apenas um mês ou dois. Só estou fazendo isso, esse ano, porque quero que todos saibam o que estamos fazendo. (SHELTON, 2011, p. 476).
Em 1966, ápice dos conflitos com parte do movimento folk, fãs e mídia, num período de 112 dias entre 04 de fevereiro a 27 de maio, foram 45 apresentações incluindo uma apresentação no Hawaii, três cidades canadenses, cinco australianas, seis outras cidades europeias (na Suécia, Dinamarca, Irlanda, Irlanda do Norte, França), duas cidades escocesas e oito cidades inglesas. Em 112 dias, uma estimativa de mais de 54 mil km percorridos. Ao regressarem aos EUA, Dylan e a banda que o acompanhava,The Hawks, foram informados que o empresário do artista, Albert Grossman (que foi demitido em 1970), havia agendado mais 64 shows para os meses seguintes daquele ano. Desgastado e recusando novas apresentações, isolou-se por dois meses no interior do estado de Nova Iorque, em sua casa de Woodstock. Uma saída? A sua própria “morte”. Em 29 de julho sofreu um grave acidente de moto, cujo detalhes não foram revelados. Voltou a realizar uma turnê apenas oito anos depois[9]. Mas isso não o impediu de lançar em 1967 um álbum inesperado e inspirado na Bíblia, o John Wesley Harding. As críticas (previsíveis) foram sobre transformação em “religioso”, “conservador” e outras…
“CALEM A BOCA! […] E DEIXEM-NO CANTAR” ou apenas ficar em silêncio
Ainda em março de 1964, Johnny Cash deu a declaração acima à Broadside em defesa do artista. Há muitas décadas que a relação do artista com a mídia, entrevistas e conferências para impressas ou contato com público e fãs foram suprimidas ou reduzidas drasticamente, algo também observado presentemente durante a Never Ending Tour. Nesta semana, as manchetes dos principais jornais internacionais trazem as críticas de membros da academia sueca que o silêncio de Bob Dylan é “indelicado” e “arrogante”. Se o artista faz um discurso sendo honesto consigo mesmo, é criticado; se fica em silêncio, também. Talvez ele tenha lembrado:“Eu sou BOB DYLAN e eu não preciso falar/Eu não preciso dizer nada se eu não quero”. Já que os viscerais “Mr. Jones” de ontem e hoje sempre demandam e exigem algo, em termos de discurso e prática daqueles a quem submetem certas críticas, devemos aguardar o desenrolar deste evento e como os múltiplos lados se apresentarão ao palco, dentro deste processo histórico composto por inúmeras relações de conflito e adoração. Mas não se enganem, o silêncio é, antes de qualquer categorização que queiram impor à persona, um ato político que tem sua gênese há muitas décadas atrás.
Notas
[*] Este curto texto, adequado à proposta do Blog do Sociofilo, apresenta algumas sínteses de trabalhos desenvolvidos em disciplinas de teoria sociológica durante o mestrado, investigação paralela à investigação da dissertação, estimulada e guiada pelo prof. Frédéric Vandenberghe (IESP/UERJ); atualmente desenvolvo a temática em trabalhos de disciplinas de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar), onde encontro diálogo com a profa. Maria Aparecida de Moraes e Silva e prof. Gabriel de Santis Feltran. Os possíveis avanços aqui apresentados são oriundos dessas valiosas contribuições às quais agradeço.
[1] Trecho de “The Vandals Took the Handles (An Opera)” que integra o livroTarântula, escrito e finalizado por Bob Dylan em 1966, publicado pela primeira vez em 1971.
[2] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yXaSrDJyF9I>. Acesso em out. 2016. Tradução do autor.
[3] Comitê de Emergência pelas Liberdades Civis, fundado em 1951 pelo Partido Comunista dos Estados Unidos da América.
[4] Discurso de Bob Dylan, 13 de dezembro de 1963, Nova Iorque. Versão integral disponível em: <http://www.corliss-lamont.org/dylan.htm>, acesso em out. 2016. Tradução do autor. Lembrando que o ex-presidente John Kennedy foi assassinado três semanas antes, em 22 de novembro, na cidade de Dallas.
[5] Carta A message, escrita por Bob Dylan e disponível no sítio da organização de Corliss Lamont. Versão integral disponível em: <http://www.corliss-lamont.org/dylan.htm>. Acesso em out. 2016. Tradução do autor.
[6] Carta disponível no site da organização de Corliss Lamont. Versão integral disponível em: <http://www.corliss-lamont.org/dylan.htm>. Tradução do autor. Entretanto, um ano depois, entre outubro e novembro de 1964, novas farpas foram trocadas através do jornalNew Yorker, a respeito do evento. Em fevereiro de 1965, um contrato de show foi quebrado, pois o artistaestava na Europa e novas cartas foram trocadas publicamente em dezembro. O caso foi encerrado apenas em 1968: a ECLC convidou Bob Dylanpara um almoço comemorativo: não tiveram retorno (SHELTON, 2011).
[7] Depoimento de Allen Ginsberg no documentárioNo Direction Home, dirigido porMartin Scorsese, 2005, 208 min.
[8] Show no Manchester Free Trade Hall e o indivíduo da plateia era Keith Butler. Áudio disponível noThe Bootleg Series Vol. 4: Bob Dylan Live 1966, The “Royal Albert Hall” Concert.No documentárioNo Direction Home(2005) parte da cena está disponível.
[9] Após o show de 27 de maio de 1966, em Londres, o seguinte aconteceu apenas em 20 de janeiro de 1968, único naquele ano, no Carnegie Hall (NY). Em 1969 realizou apenas três shows, voltando a se apresentar somente em 1971 noConcert for Bangladesh, organizado pelo amigo George Harrison. Depois, mais dois anos sem subir aos palcos, retornando apenas em 3 de janeiro de 1974, ao iniciar uma turnê acompanhando pelaThe Band.
Referências:
DYLAN, Bob.Tarantula. Frogmore: Panther Books, 1975.
HONNETH, Axel.Liberty’s entanglements: Bob Dylan and his era. In:Philosophy & Social Criticism, September, v.36, n.7, 2010, p. 777-783.
MARX, Karl.Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
SILVEIRA, Paulo. Da alienação ao fetichismo: formas de subjetivação e de objetivação. In:Elementos para uma teoria marxista da subjetividade.SILVEIRA, P.; DORAY, B. (Org.). Enciclopédia aberta da psique (Coleção), 1994, p. 41-76.
SIMMEL, Georg.Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
______.The view of life: four metaphysical essays with journal aphorisms. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1992.
SHELTON, Robert.No direction home: a vida e música de Bob Dylan.São Paulo: Larousse, 2011.
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