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Bourdieu, Sartre e o garçom de café: notinha de sociologia existencial sobre o nada (que somos), por Gabriel Peters

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Por Gabriel Peters (UFPE)

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Espíritos fardados: o eu e seus uniformes

Machado de Assis definiu seu conto O espelho, logo no subtítulo, como um “esboço de uma nova teoria da alma humana”. Não há dúvida de que o Bruxo pensou nesta grandiloquente expressão com um sorriso irônico nos lábios (ou, pelo menos, na alma). No entanto, como sempre ocorre nas mesclas machadianas do mundano com o metafísico, o recurso galhofeiro ao subtítulo pomposo não deve esconder a real densidade filosófica do conto. A narrativa descreve o curioso caso de Jacobina, um personagem que, defronte ao espelho, só conseguia ver seu reflexo integral quando estava vestido com sua farda de alferes da guarda nacional. Sem o prestigioso uniforme, o que aparecia ao sujeito não era uma imagem precisa, mas um reflexo “disperso, esgaçado, mutilado…” (ASSIS, 2007, p. 161). Em seu belo texto “Esquema de Machado de Assis”, que merecia (este sim!) um título mais eloquente, Antonio Candido (1995, p. 29) interpreta a cena de Jacobina diante do espelho como alegoria de uma tese sociopsicológica: não experimentamos nossos papéis ou posições sociais como meras máscaras externas às nossas “verdadeiras” identidades, mas, sim, como aspectos íntimos e indissociáveis do nosso ser. Segundo diz Augusto Meyer em outra brilhante análise do conto machadiano:

Jacobina somos nós. Botamos a farda e representamos…não na vida social apenas, na vida profunda do espírito, que anda quase sempre fardado. (…) Quem tira a farda, quem tenta ver além da fantasmagoria organizada em seu proveito pela inconsciência vital, sente a vertigem de si mesmo e de tudo, e acaba falando sozinho diante do espelho, como o alferes Jacobina. Aliás, logo torna a vesti-la, num movimento reflexo de defesa: ‘Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e…não lhes digo nada: o vidro reproduziu então a imagem integral” (MEYER, 2008, p. 54).

Um animal sedento de justificação

Por que os indivíduos investem, por vezes tão intensamente, seu tempo, sua energia, seus recursos vitais, sua “libido” nos papéis societários que lhes são atribuídos ou ofertados em seus cenários de vida? Que anseios existenciais movem os agentes humanos à atribuição de tamanha importância para as identidades que assumem aos olhos dos outros e, por extensão, de si próprios? Nas suas tardias Meditações pascalianas, o sociólogo francês Pierre Bourdieu apresenta esse investimento vital em “postos” socialmente reconhecidos como resultante de um anelo humano pela “justificação” da própria existência (2001: 289). Conferindo um sentido particular à ideia durkheimiana de que “a sociedade é Deus”, Bourdieu retrata a vida social como uma vasta máquina de produção e distribuição (desigual e competitiva) de justificações e razões para existir. Tais justificações assumem a forma dos certificados simbólicos de identidade social graças aos quais indivíduos biológicos são imbuídos de funções ou missões coletivas. Como uma criatura interiormente movida por um anseio de justificação e, ao mesmo tempo, submetida a uma “dependência universal do juízo dos outros” (BOURDIEU, 2000, p. 100), o ser humano só pode manter a sensação íntima de estar “justificado em existir como existe” (2001, p. 290) caso a sua vida seja legitimada por um veredito social:

Votado à morte, esse fim que não pode ser encarado como fim, o homem é um ser sem razão de ser. É a sociedade, e apenas ela, que dispensa, em diferentes graus, as justificações e as razões de existir; é ela que, produzindo os negócios ou posições que se dizem “importantes”, produz os atos e os agentes que se julgam “importantes”, para si mesmos e para os outros, personagens objetiva e subjetivamente assegurados de seu valor e assim subtraídos à indiferença e à insignificância. (…) De fato, sem chegar a dizer, como Durkheim, que “a sociedade é Deus”, eu diria: Deus não é nada mais que a sociedade. O que se espera de Deus nunca se obtém senão na sociedade, que tem o poder de consagrar, de subtrair à fatuidade, à contingência, ao absurdo” (1988, p.56; 58)

Fatuidade, contingência, absurdo – o vocabulário utilizado por Bourdieu remete deliberadamente ao existencialismo de Jean-Paul Sartre. Ainda que as alusões do sociólogo francês a Sartre e Heidegger sejam com frequência indiretas, Bourdieu apresentou versões sociologicamente reformuladas de todo um conjunto de temas heideggerianos e sartrianos. Vejamos.

Grossíssimo modo, o existencialismo sartriano pensa o ser humano como angustiado ou “nauseado” por um “nada” que o habita desde dentro, a contingência radical de uma criatura obrigada a inventar a si própria sem qualquer suporte no mundo objetivo ou em uma entidade transcendente como Deus: “o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem” (SARTRE, 1978, p. 10). A famosa tese existencialista de que “a existência precede a essência” (op. cit., p. 5) veicula essa rejeição veemente da ideia de que o ser humano possuiria uma essência fixa, a qual apenas se manifestaria em “existentes” humanos específicos. Para Sartre, os seres humanos não são nada além do que fazem de si com a própria liberdade, ainda que nos marcos de uma “situação” histórica não escolhida. Tal como Heidegger, Sartre costumava examinar certos estados de humor como fontes de insights sobre o modo caracteristicamente humano de “ser-no-mundo”. Seguindo esse caminho, ele tomou de empréstimo a Kierkegaard a análise da angústia como “vertigem da liberdade”, isto é, experiência em que o ser humano intui sua inescapável condição de criador de si próprio. Assoberbado pela responsabilidade de invenção de si em meio a tantas possibilidades contingentes, o ser humano é tentado a fugir de tal responsabilidade pela má-fé (1997, p. 92): a tentativa autoenganosa de conceber a si próprio e se comportar como coisa ou “ser em-si”. Sartre tinha o hábito de escrever em cafés, e precisou somente levantar a cabeça para achar uma ilustração que se tornaria famosa:

Vejamos esse garçom. Tem gestos vivos e marcados, um tanto precisos demais, um pouco rápido demais, e se inclina com presteza algo excessiva. Sua voz e seus olhos exprimem interesse talvez demasiado solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta-se, tentando imitar o rigor inflexível de sabe-se lá que autômato…Sua mímica e sua voz parecem mecanismos, e ele assume a presteza e rapidez inexorável das coisas” (ibid., p. 106).

Bourdieu evita o componente moral condenatório do conceito sartriano de má-fé. Ele parte, no entanto, dessa descrição fenomenológica para tomar a encarnação de um papel social como um esforço em passar não tanto de nada a coisa, mas de um ser contingente (i.e., mais um indivíduo biológico “votado à morte”) a um ser socialmente justificado como necessário (i.e., um agente imbuído de missão coletiva). Assumir uma identidade socialmente reconhecida e, portanto, imbuída com certo volume de “capital simbólico” significa escapar à fatuidade e à contingência do anonimato. Se o ser humano está “condenado a ser definido em sua verdade pela percepção dos outros” (BOURDIEU, 2001, p. 202), o sentimento mais íntimo de que a própria vida não é sem-sentido ou absurda, mas justificada e dotada de sentido, depende de um certificado de aprovação coletiva. Os mecanismos de reconhecimento social impedem que os indivíduos sejam abandonados à experiência solitária da própria contingência (ou do próprio “nada” que são). Ao intimar o agente com tarefas, exigências, contratos e projetos, o social desperta nele a convicção íntima de “contar para os outros, ser importante para eles, logo para si mesmo”, achando “nessa espécie de plebiscito permanente que vêm a ser os testemunhos incessantes de interesse – pedidos, expectativas, convites – uma espécie de justificativa continuada para existir” (ibid., p. 294).

Bourdieu esposa alguma convergência com Sartre ao caracterizar esse investimento nos “jogos” do mundo social (illusio) como, em última análise, uma ilusão. O mesmo se aplica à sua afirmação de que “funções sociais”, não importa quão zelosa e intensamente sejam desempenhadas, “são ficções sociais” (1988, p. 54). Com efeito, o aspecto de “má-fé” presente nos investimentos psíquicos e condutas práticas associados a uma função social consiste em uma versão da naturalização ideológica que está na raiz da violência simbólica: o processo em que condições sociais historicamente contingentes são experimentadas como naturais, evidentes e necessárias (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 136).

Vista em conexão com sua sociologia crítica da violência simbólica, a desmistificação da illusio como ilusão não resulta somente, é claro, da influência sartriana. A bem da verdade, tal desmistificação pode ser creditada à “filosofia da suspeita” que constitui uma das propensões intelectuais mais profundas do habitus sociológico de Bourdieu, rastreável a uma série de inspirações de sua obra: a defesa da “ruptura epistemológica” com o senso comum em Bachelard, o afastamento sistemático das “pré-noções” advogado por Durkheim, a crítica da ideologia em Marx, o desbancar do sujeito consciente (o “menino mimado” da filosofia ocidental) pela busca de estruturas inconscientes na antropologia de Lévi-Strauss, entre outras. Com efeito, tais influências sobre a sociologia de Bourdieu aparecem no seu rechaço de várias das teses de Sartre quanto ao desempenho de papéis sociais. Como veremos, os erros sartrianos são, segundo Bourdieu, todos remontáveis à incapacidade de Sartre em distinguir sua atitude existencial diante do mundo daquela dos agentes que ele examina. O mestre do existencialismo não estava sozinho nessa falha, mas ofereceu sua própria versão do que Bourdieu reputava ser um erro endêmico na filosofia e nas ciências sociais: a “falácia escolástica” (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 123). Ao observá-lo no conforto de sua mesa, Sartre projeta na mente do garçom de café as considerações filosóficas que ele só é capaz de levar a cabo devido às suas particularíssimas condições de existência. Por exemplo, é o desligamento em relação às demandas práticas urgentes que pesam sobre a conduta do garçom (como os pedidos incessantes de diferentes mesas) que provê a Sartre a oportunidade de uma atitude reflexiva e contemplativa diante do mundo. Gozando dos benefícios sociais e, por extensão, das circunstâncias psicológicas que possibilitam sua existência como intelectual, Sartre “imbui todos os sujeitos com quem resolve se identificar…com sua própria experiência como um sujeito puro e livremente flutuante” (BOURDIEU, 1980, p. 77). Em face da análise que Sartre faz do garçom de café, Bourdieu afirma que o grande filósofo recai em um exercício de teratologia, fabricando um “monstro com corpo de garçom de café e cabeça de filósofo” (2001, p. 189). A fonte da falha sartriana é sua inconsciência da distância social que separa o agente mergulhado na urgência da prática e da necessidade material, de um lado, e o intelectual que pode se permitir contemplar o mundo e seus “atores” como um espectador reflexivo, de outro. Ao negligenciar tal diferença radical de condições, o pensador Sartre projeta-se na subjetividade do garçom para tentar vivenciar sua experiência “a partir de dentro”, sem abdicar, no entanto, do privilégio de continuar a pensar como filósofo:

“Tento realizar o ser-Em-si do garçom, como se não estivesse justamente em meu poder conferir a meus deveres e direitos de estado seu valor e urgência, nem fosse de minha livre escolha levantar toda manhã às cinco ou continuar deitado, com risco de ser despedido do emprego. Como se, pelo fato de manter existindo esse papel, eu não transcendesse de ponta a ponta o ser-Em-si que pretendo ser ou não me constituísse como um mais Além de minha condição (SARTRE, 1997, p. 107).

A resposta de Bourdieu, sob a forma de uma pergunta retórica, é impagável:

…talvez fosse preciso ter a liberdade de ficar na cama sem ser dispensado para apreender aquele que se levanta às cinco horas para varrer as salas e fazer funcionar a máquina de fazer café, antes da chegada dos clientes, como se estivesse se liberando (livremente?) da liberdade de ficar na cama, pronto a ser demitido?” (BOURDIEU, 2001, p. 189).

Um animal de habitus 

Bourdieu continua a retratar os agentes no mundo social como movidos, em última instância, pela busca de uma justificação socialmente reconhecida para a própria existência, capaz de neutralizar a vivência de si próprio como alguém abandonado “à indiferença e à insignificância” e, portanto, “à fatuidade, à contingência, ao absurdo” (Bourdieu, 1988, p.56; 58).  No entanto, ele afirma que tais inquietações existenciais não são formuladas de modo consciente e explícito, como se fossem considerações filosóficas sistemáticas, mas vividas cotidianamente na carne e nos afetos. A pergunta pelo sentido da existência não é um enigma intelectual, mas o motor de uma empreitada prática diária de “justificação para uma existência particular, singular” (2001, p. 290) em meio aos “jogos” sérios que povoam a vida social. Em outras palavras, assim como autores tão diferentes no espírito e na letra quanto Viktor Frankl (2004) e Cornelius Castoriadis (1982: 177-178), Bourdieu sublinhou que os seres humanos são obrigados a inventar respostas, na sua atividade concreta, às questões existenciais últimas que a filosofia articula discursivamente.

Os atos de doação de sentido e de busca de justificação “não implicam forçosamente a consciência e a representação” (BOURDIEU, 2001, p. 294), mas se desenrolam, na maior parte do tempo, em um domínio tácito, não reflexivo e pré-discursivo da subjetividade do agente. O acento sobre o caráter predominantemente tácito dos motores subjetivos da conduta é, naturalmente, um componente central da teoria bourdieusiana do habitus. Atada a esta ênfase está a tese de que, ao longo de uma trajetória prolongada de experiências socializadoras, o agente incorpora disposições duráveis de conduta. Tais disposições se espraiam mesmo para os âmbitos mais íntimos da sua subjetividade, aqueles mesmos onde a causalidade não operaria segundo Sartre.

Eis, portanto, outro ponto de ruptura, desta feita ainda mais radical, entre o filósofo e o sociólogo. Ao pintar o “para-si” como uma “consciência sem inércia”, o autor de O ser e o nada conclui que o ser humano está condenado a inventar a si próprio ex nihilo – isto é, a partir do nada (sic) – a cada momento de sua existência. Assim como aconteceria na relação do sujeito com os objetos aos quais sua consciência se dirige, um nada sempre se interporia entre o seu passado e o seu presente. Longe de poder contar com a inércia do antes no agora, a subjetividade se veria obrigada, a cada novo “presente”, a decidir livremente o que será. Em compasso com essa psicologia “instantaneísta”, Sartre rejeitava qualquer distinção ontológica entre potência e ato:  

Tudo está em ato. Por trás do ato, não há nem potência, nem ‘hexis’, nem virtude. Recusamos a entender por gênio, por exemplo – no sentido em que se diz que Proust “tinha gênio” ou “era” um gênio –, uma potência singular de produzir certas obras que não se esgotasse justamente na sua produção. O gênio de Proust não é nem a obra considerada isoladamente, nem o poder subjetivo de produzi-la: é a obra considerada como conjunto de manifestações da pessoa” (SARTRE, 1997, p. 16).

Algumas centenas de páginas dificílimas depois, o filósofo francês conclui que “o passado carece de força para construir o presente e prefigurar o porvir” (ibid., p. 609). Tal ideia de uma descontinuidade radical que se interpõe entre o passado e o presente da subjetividade não discrepa apenas da teoria disposicional da ação desenvolvida por Bourdieu. Ela também destoa das concepções de outros luminares da própria tradição fenomenológica a que Sartre se filia. Edmund Husserl, por exemplo, sublinhou que o repertório de experiências acumuladas pela subjetividade deixa nela rastros, que assumem a forma de propensões a agir, pensar e sentir de determinados modos. Tal como Bourdieu, Husserl salientou que estas “sedimentações” de vivências anteriores manter-se-iam em estado potencial ou disposicional, prontas para serem atualizadas em resposta aos estímulos de uma situação presente. E, bem antes do sociólogo do Béarn, o pai da fenomenologia resolveu recuperar a noção aristotélico-tomista de habitus para tratar dessas disposições subjetivas que testemunham o peso do passado sobre o presente:

…a própria experiência vivida, bem como o momento objetivo nela constituído, podem se tornar ‘esquecidos’; mas, apesar disso, a experiência de modo algum desaparece sem deixar traço; ela apenas tornou-se latente. Com respeito ao que foi nela constituído, trata-se de uma possessão sob a forma de um habitus, pronta a qualquer momento para ser novamente despertada por uma associação ativa…(…) O objeto incorporou a si próprio as formas de sentido originariamente constituídas…através de um conhecimento sob a forma de um habitus” (HUSSERL, 1973, p. 122).

Para fazer Sartre parecer ainda mais solitário na paisagem fenomenológica, poderíamos lembrar, ainda, que a distinção entre potência e ato no âmbito da subjetividade também está implicada na metáfora do estoque utilizada por Alfred Schütz para tratar dos saberes que capacitam a conduta social cotidiana. Seja como for, a diferença entre Sartre e Bourdieu vem, agora, mais nitidamente à baila. Para Sartre (1997, p.106-107), o garçom de café age livremente como se fosse determinado por sua identidade social de garçom. Nesse sentido, ele seria “determinado” apenas na medida em que determina a si próprio, em uma tentativa de negar a própria liberdade pelo desempenho teatralizado de seu papel social. Para Bourdieu, em contraste, as ações do garçom não derivam de decisões livres e descontínuas entre si, mas da atualização das disposições incorporadas ao longo de uma trajetória de socialização. A conduta do garçom é, nesse sentido e com o perdão da heideggerianice, a “presentificação” de um passado incorporado, um passado que não é apenas uma história pessoal de socialização, mas também uma história institucional. Nos termos de sua tentativa de superar a dicotomia subjetivismo/objetivismo, poderíamos dizer que as práticas do garçom são o encontro entre “a história objetivada nas…instituições” e a “história encarnada nos corpos” (1988, p.40-41):

O garçom de café não representa o papel de garçom de café, como queria Sartre. Ao envergar seu uniforme…e cumprir o cerimonial da ligeireza e do desvelo,…ele não se torna coisa (ou “em si”). Seu corpo, onde está escrita uma história, esposa sua função, ou seja, uma história, uma tradição, que ele sempre enxergou encarnada em corpos, ou melhor, nesses trajes como que habitados por um certo habitus a que se denomina garçons de café” (BOURDIEU, 2001, p. 187-188).

Isto quer dizer que Bourdieu reduz o garçom de café a um autômato? Não. Ao “encarnar” no corpo do garçom através da socialização, a história institucional o dota de motivações e capacidades práticas que o habilitam a desempenhar, com eficiência e certa dose de inventividade, sua função. Ainda assim, se o garçom de Sartre é determinado a ser garçom apenas porque determina a si próprio, o garçom de Bourdieu é capaz de determinar a si próprio apenas porque é determinado. É sua socialização posicionada no seio de estruturas objetivas que molda a sua subjetividade para atuar segundo tais ou quais princípios. O desempenho prático do papel de “garçom de café” não é incompatível com a espontaneidade, mas ancorado em uma espécie de espontaneidade socialmente inculcada por uma trajetória posicionada em um ambiente social.

A má-fé coletiva

Mesmo quando acata o linguajar sartriano para descrever o que o envolvimento nos jogos da vida societária acarreta de má-fé e autoengano (1988, p.34), Bourdieu ressalva que a conduta do garçom não deve ser compreendida em termos individualistas. Ao contrário, o investimento existencial em um jogo, a illusio, é, como disse Durkheim sobre a religião, uma “ilusão bem fundada”, ou seja, poderosamente apoiada pelos suportes simbólicos e institucionais da coletividade. A ideia de “coisificação” que Sartre emprega para descrever o comportamento do garçom pode ser aplicada com mais propriedade, diria Bourdieu, à experiência do mundo social como tal: um modo de organização historicamente contingente que aparece aos seus membros como a ordem natural e evidente das coisas. Graças a esse arranjo “institucionalmente organizado e garantido” (BOURDIEU, 1980, p.190), os sentidos e valorações que os agentes atribuem ao mundo não são vividos como construções humanas arbitrárias e falíveis. Tais sentidos e valores são experimentados como realidades objetivamente presentes no próprio mundo.

A “cumplicidade ontológica” entre o mundo social objetivado, de um lado, e as subjetividades por ele socializadas, de outro, gera um efeito de naturalização ideológica central a todos os jogos do mundo societário, que dependem de um investimento existencial que eles próprios engendram: “só existe sagrado para o sentido do sagrado, que, no entanto, reencontra o sagrado como plena transparência”. E o que vale para o “sagrado”, nos sentidos religioso ou artístico, “é verdadeiro para qualquer experiência de valor” (BOURDIEU, 1988, p. 53). Ao experienciarem o universo social segundo estruturas subjetivas de percepção que derivam de sua socialização nesse mesmo universo, os indivíduos não o vivem como uma construção contingente, mas como facticidade natural e “transparência plena”.

A naturalização de funções ou missões socialmente valorizadas, bem como da engrenagem institucional que as sustenta, opera como uma fonte de “teodiceia societária” ou, na expressão que Bourdieu toma de empréstimo a Raymond Aron, “sociodiceia”. É graças à cumplicidade entre o jogo e o sentido do jogo que os seus participantes são capazes, assim, de vivenciarem ao jogo inteiro e a si próprios como necessários. A “sociedade é Deus” (BOURDIEU, 2001, p. 300), portanto, pois é apenas pelo engajamento intenso nos seus jogos que os seres humanos tornam-se capazes de dotar de sentido e justificação uma existência que, de outro modo, seria lançada de volta à sua angustiante contingência e absurda finitude. Isto significa que as funções de teodiceia desempenhadas pelas esferas de atividade no mundo societário estão abertas a todos? Longe disso. Combinando a visão agonística e conflitual das suas heranças weberiano-marxistas à tese estruturalista de que a identidade só pode ser definida de modo diferencial e distintivo, Bourdieu conclui que a busca de reconhecimento social ou “capital simbólico” ocorre em jogos de soma-zero nos quais a vitória de uns implica necessariamente a derrota de outros. A tese está posta em uma passagem melancolicamente bela:

O que se espera de Deus nunca se obtém senão na sociedade, que tem o monopólio do poder de consagrar, de subtrair à fatuidade, à contingência, ao absurdo; mas – e aí está a antinomia fundamental – apenas de maneira diferencial, distintiva. Todo sagrado tem o seu profano complementar, toda distinção produz sua vulgaridade e a concorrência pela existência social conhecida e reconhecida, que subtrai à insignificância, é uma luta de morte pela vida pela morte simbólicas. (…) O julgamento dos outros é o julgamento derradeiro; e a exclusão social, a forma concreta do inferno e da danação. É porque o homem é um Deus para o homem que o homem é também o lobo do homem” (BOURDIEU, 1988a, p. 56-58).

*Um tratamento detalhado do “social como céu e inferno” na obra de Bourdieu pode ser encontrado aqui, embora numa prosa mais pesada do que a deste post. Mando um agradecimento amoroso à minha consultora literária Maria Helvécia Moura, a quem me refiro às vezes por “mamãe”, que dirigiu minha atenção, bem cedo, para o conteúdo sociológico d’O espelho de Machado.

Referências

ASSIS, M. O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana. In: GLEDSON, J. (org.). 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p, p. 154-162.

BOURDIEU, P. Le sens pratique. Paris, Les Éditions de Minuit/La Maison des Sciences de l’homme, 1980.

________Lições da aula. São Paulo: Ática, 1988.

________O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas, Papirus, 2000.

________Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992.

CANDIDO, A. Esquema de Machado de Assis. In: CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo, Paz e Terra, 1982.

FRANKL, V. Man’s search for meaning. Boston: Beacon Press, 2004.

HUSSERL, E. Experience and judgment. Evanston: NorthWestern University Press, 1973.

MEYER, A. Machado de Assis, p. 1935-1958. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958. Reedição: Rio de Janeiro, José Olympio/ABL, 2008.

SARTRE, J., P. 1978. O existencialismo é um humanismo. In: Sartre. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

________O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.

13 comentários em “Bourdieu, Sartre e o garçom de café: notinha de sociologia existencial sobre o nada (que somos), por Gabriel Peters

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  2. ADEMAR BOGO

    muito bom! texto excelente!

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