teoria social em pílulas

TEORIA SOCIAL EM PÍLULAS – Do estruturalismo à praxiologia: linguagem, sociedade, sujeito

Como fazem com a concepção “gerativa” de estrutura oriunda da linguística de Saussure, as praxiologias de Giddens e Bourdieu incorporam lições centrais da crítica estruturalista do sujeito, mas tambén rejeitam os excessos objetivistas a que tal crítica foi levada no estruturalismo e no pós-estruturalismo.

Fonte: AXLE Themes/https://www.psychologytoday.com/us/blog/breaking-barriers/201811/conversation-is-everything

Os posts da série “TEORIA SOCIAL EM PÍLULAS” oferecem pequenas introduções e comentários críticos sobre perspectivas teóricas influentes nas ciências sociais. Nascidos de notas de aula rearrumadas, os textos pretendem disponibilizar recursos didáticos breves, mas tão sólidos quanto possível, a discentes e docentes da área. 

Por Gabriel Peters

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Cadê os estruturalistas?

Os rótulos pelos quais identificamos escolas de pensamento nas ciências sociais são bênçãos mistas. Por um lado, eles nos oferecem ferramentas didáticas de orientação em meio a uma paisagem intelectual vertiginosamente polifônica. Por outro, os agrupamentos de pensadores particulares em correntes teóricas, designadas por tal ou qual “ismo”, tendem a sacrificar a nuance e a complexidade das perspectivas tecidas por aqueles pensadores. São poucos os casos em que essa ressalva se faz tão urgente quanto na discussão sobre o “estruturalismo” e o “pós-estruturalismo” nas ciências humanas.

O linguista suíço Ferdinand de Saussure, forte candidato ao papel de “pai fundador” de tais correntes, não só não teve ciência do rótulo como mal usou a noção de “estrutura” em seus escritos, a começar pelo seu importante Curso de linguística geral ([1916] 1969) – tal qual Mente, self e sociedade de George Herbert Mead [1934], trata-se de uma publicação póstuma que encontra sua origem primeira em notas de aula de seus generosos alunos. Alguns dos personagens centralmente associados à transmutação do estruturalismo em “paradigma” ou, pelo menos, “sensibilidade” interdisciplinar na França dos anos de 1960, como Louis Althusser e Michel Foucault, se apressaram em espinafrar o termo. E, mesmo quando rejeitamos os vereditos dos autores listados quanto ao significado das suas próprias obras (uma desconfiança crítica em relação ao “sujeito” autoral que já tem, aliás, seu quinhão de estruturalice), ainda assim temos de lidar com a diversidade de ideias internas ao rol padrão de pensadores estruturalistas e pós-estruturalistas, como Saussure, o polímata Roman Jakobson, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o semiólogo Roland Barthes, o historiador-filósofo Michel Foucault, o teórico marxista Louis Althusser, o psicanalista Jacques Lacan, o filósofo desconstrucionista Jacques Derrida e a linguista-filósofa-psicanalista Julia Kristeva.

A despeito das discrepâncias que mantêm entre si, tais autores partilham um núcleo comum de teses filosóficas e socioteóricas, núcleo que pode ser mais bem identificado quando contrastamos tais teses com orientações analíticas como as da fenomenologia, do existencialismo e das microssociologias interpretativas. A primeira daquelas teses consiste na ideia de que achados teóricos oriundos da linguística, sobretudo tal qual desenvolvida por Saussure e seus epígonos (p.ex., na poética formalista de Jakobson, autor que exerceu tremenda influência sobre Lévi-Strauss), são decisivos para o enfrentamento de problemas mais gerais da filosofia e das ciências humanas. O programa de uma “semiologia geral” que consideraria fenômenos não linguísticos (stricto sensu) também como “sistemas de signos”, definidos por suas relações internas de oposição e diferença, já havia sido sugerido por Saussure no Curso de linguística geral (1969: 23)[i]. A partir do final dos anos de 1940, Lévi-Strauss faria uma engenhosa aplicação desse programa analítico no estudo de fenômenos como o parentesco e os mitos, tomados pelo antropólogo francês à maneira de linguagens, isto é, como “sistemas de relações…que são o produto da atividade inconsciente do espírito humano” (2008: 70).

Cadê as estruturas?

O “mentalismo” lévi-straussiano, em função do qual o locus último daqueles sistemas de relações deveria ser encontrado na ossatura lógica inconsciente da mente humana, não foi abraçado por todos os autores de inspiração estruturalista. Diferentemente de Lévi-Strauss, e refletindo uma oscilação original do próprio Saussure entre uma explicação “mentalista” e uma explicação “coletivista” das propriedades da língua, uma vertente “textualista” (Reckwitz, 2002) dos estruturalismos conceberia sistemas de signos, “discursos” e “textos” (lato sensu) como exteriores à subjetividade individual. (Aliás, na medida em que as subjetividades individuais só poderiam se constituir ao assumir “posições de sujeito” [Foucault, 2009: 314] pré-determinadas por aqueles discursos/textos anônimos e impessoais, o discurso deixava de ser visto como efeito do sujeito, e o sujeito é que passava a ser tomado como efeito do discurso.)

De um modo ou de outro, estava dada a deixa para que, nos anos de 1950 e 1960 já cansados de fenomenologices e existencialices, o estruturalismo aparecesse como candidato a “megaparadigma” interdisciplinar, um programa de pesquisa que se propunha a apreender fenômenos não estritamente linguísticos como “linguagens extralinguísticas” (Barthes, 2003: 214).

Quais eram as características centrais das estruturas ou sistemas de signos que, pioneiramente identificadas por Saussure no domínio da linguagem, foram então projetadas pelos estruturalistas (ou quase estruturalistas, como o Foucault de As palavras e as coisas [1966] 2002]) em outras totalidades semiológicas, como mitos e sistemas de parentesco (Lévi-Strauss), produtos da indústria cultural (Barthes), epistemes históricas (Foucault) ou o inconsciente (Lacan)? Boa parte dos argumentos de Saussure (1969: 81) repousa sobre uma tese fundamental quanto à “arbitrariedade” do signo linguístico. Segundo o linguista suíço, a unidade “signo” é formada pela união de um “significante” material (“imagem acústica”) e um “significado” ideativo (“conceito”) a ele associado. (De modo esquemático, podemos ampliar o sentido de “imagem acústica” dado por Saussure à noção de “significante” para pensá-lo como forma material – p.ex., sonora ou gráfica – do signo.) O laço entre significante e significado é arbitrário no sentido de que não há nada inerente à natureza dos sons (fonemas) ou marcas (grafemas) combinados em um significante (“tigre”, digamos) que os associem ao significado socialmente convencionado que a palavra possui em um idioma (no caso de “tigre”, a língua portuguesa)[ii]. Saussure sublinhou que a mera existência de uma multiplicidade de idiomas, os quais designam o mesmo significado (p.ex., a ideia do animal “tigre”) com significantes imensamente diversos (p.ex., 虎 em japonês) , prova a arbitrariedade do signo. Se houvesse alguma necessidade lógica ou ontológica nos laços de significante-significado que formam os signos, não existiriam diferentes línguas, as quais se fundam, por definição, sobre associações variadas de significantes e significados[iii]

Isto dito, Saussure certamente não negava que, no interior de comunidades linguísticas, a conexão entre significantes e significados não é vivenciada como arbitrária. Ao contrário, em situações particulares de comunicação oral ou escrita, usuários competentes tendem a tratar os significantes como veículos transparentes e imediatos dos seus significados. Mais do que ciente do peso das convenções sociais[iv], o ex-aluno de Durkheim que foi Saussure sublinhou que a força sentida daqueles vínculos entre significante e significado deriva da língua: um sistema impessoal de regras que existe não como propriedade de falantes particulares, mas de uma coletividade inteira. Nesse sentido, cenários específicos de uso inteligível da língua por atores particulares – i.e., situações de fala, segundo a tradução habitual do termo saussuriano “parole” (a rigor, “palavra”) – só são possíveis caso tais atores sigam as regras estabelecidas por aquela língua como um sistema impessoal que se impõe a eles. 

Como um sistema de signos, a língua é a condição gerativa de possibilidade de situações inteligíveis de “palavra” ou “fala” no sentido de Saussure – referente a quaisquer usos situacionais da língua por membros particulares de uma comunidade linguística, para além da “fala” no sentido estrito de uso da voz (por exemplo, um e-mail escrito por um amigo a outro é também “fala” na acepção saussuriana). É partindo dessa tese que Saussure privilegia, nos seus escritos, a análise das características da língua como sistema (o que os estruturalistas chamarão também de “estrutura”) em detrimento da fala. Frente à “descoberta” da arbitrariedade do signo, Saussure conclui que os significados linguísticos não podem ser derivados de relações de referência entre a linguagem e o mundo. Por exemplo, a substância empírica que fornece a “referência” da ideia ou imagem significativa da “água” não tem o poder de determinar qual significante será utilizado para designá-la, o que é provado pela pluralidade de significantes que a designam em diferentes línguas (e.g., “water”). Se os signos não são definidos na base da referência, diz Saussure, eles só podem ser estabelecidos mediante suas relações de diferença com os demais signos do mesmo sistema de que fazem parte.

Segundo leituras praxiológicas como as de Giddens e Bourdieu, a tese da arbitrariedade do signo frente ao universo objetal, juntamente com a ideia de que o signo obtém sua identidade das relações opositivas internas ao sistema linguístico de que faz parte, está na fonte de diversos acertos, mas também dos principais erros das tendências estruturalistas e pós-estruturalistas na filosofia e na teoria social. Se o estruturalismo está certo em escapar a uma visão simplista do significado como referência, o erro consiste em partir dessa tese para tomar o código como realidade autônoma em relação ao mundo, em vez de buscar uma teoria alternativa do significado que ainda dê centralidade à relação entre linguagem e mundo, entre o “texto” (lato sensu) e o “fora do texto”. Em lugar dessa última via analítica, tem-se, entre estruturalistas e pós-estruturalistas, o que Giddens chamou de “retirada para o código” (1999: 293). Tal retirada se reflete, por exemplo, na desconsideração última do papel constitutivo do mundo para a linguagem em Saussure ou, ainda, na sugestão de que não há mundo fora da linguagem no pós-estruturalismo de Derrida (“não há fora do texto”, escreveu o homem, quando a desconstrução ainda se chamava gramatologia [Derrida, 1973: 199]). Recorrendo à pragmática da linguagem de Wittgenstein, Giddens e Bourdieu já indicam como pensam, contra os estruturalistas, o “mundo” sem o qual a linguagem não adquire inteligibilidade: os fazeres ou práticas pelos quais a vida social é produzida, reproduzida e transformada.

Cadê a linguagem?

O legado mais geral do estruturalismo e do pós-estruturalismo para a teoria social consistiu, vimos há pouco, no recurso a modelos oriundos da linguística estrutural na apreensão de uma multiplicidade de fenômenos humanos: dos sistemas de parentesco aos mitos (Lévi-Strauss), do desejo (Lacan) à moda (Barthes), dos modos de produção (Althusser) até as próprias ciências humanas como formações discursivas (Foucault). A ancoragem partilhada na linguística em sua matriz estrutural não impediu, decerto, que tal matriz fosse levada para direções as mais discrepantes. Isto é patenteado, para dar somente um exemplo, pelo contraste entre a preocupação com a genuína cientificidade nos estruturalismos de Lévi-Strauss e Althusser, de um lado, e o agnosticismo epistêmico dos pós-estruturalismos de Foucault e Derrida, de outro. Em todos esses casos, entretanto, a constelação estruturalista e pós-estruturalista contribuiu decisivamente para a chamada “virada linguística” nas ciências humanas, somando-se a outros influxos dessa virada advindos da filosofia, quer em sua vertente “analítica” (de Russell ao jovem Rorty, passando por John Austin e pelos “dois Wittgensteins”), quer na sua versão continental (p.ex., os veios heideggerianos em Gadamer ou no próprio Derrida).

A comparação entre o estruturalismo francês e a pragmática da linguagem de base britânica (p.ex., John Austin e o segundo Wittgenstein) ilumina duas versões da virada linguística nas ciências humanas e, por extensão, dois modos de apreender a relação entre linguagem e sociedade. De um lado, o estruturalismo representa uma aposta analítica na transposição de insights teóricos e metodológicos oriundos da linguística para outros objetos das ciências humanas – objetos que, sendo “estruturados como uma linguagem”, podem ser apreendidos de acordo. De outro lado, a pragmática da linguagem de autores como Austin (1975) e Wittgenstein (2000), em vez de tomar sistemas linguísticos como modelos da sociedade, considera a sociedade – como um domínio de atividades práticas – a fonte indispensável para a elucidação da linguagem. Portanto, a “linguisticização” estruturalista das ciências sociais dá lugar, na pragmática da linguagem, a uma espécie de “sociologização” da análise linguística, o que servirá de instrumento à crítica praxiológica que autores como Giddens e Bourdieu (aliás, também o Sahlins de Ilhas de História [1999]) fazem do estruturalismo. A despeito da multiplicidade de insumos que entram nas versões giddensiana, bourdieusiana e sahlinsiana de praxiologia, é pertinente apresentá-las, como fez Vandenberghe (2013: 107) em referência aos dois primeiros autores, como uma síntese crítica entre estruturalismo e pragmática da linguagem.

Cada um desses três autores certamente incorporou à sua teoria do social uma ideia central do legado estruturalista: as atividades humanas no mundo societário dependem, na sua geração mesma, do recurso a estruturas simbólicas partilhadas. A dependência que a produção de falas inteligíveis, geradas por agentes particulares, possui em relação à língua, como propriedade estrutural de uma coletividade impessoal, torna-se uma instância particular daquela relação entre ações individuais e estruturas culturais (ou ideacionais). Assim, para dar outro exemplo, a interpretação do significado religioso de um evento particular por um fiel (p.ex., sua conclusão de que a morte de um conhecido é resultado da vontade divina) só pode ser compreendida à luz da cosmologia religiosa que, tendo sido por ele incorporada via socialização em uma coletividade, é uma condição “gerativa” do seu ato interpretativo individual (p.ex., ato informado por uma cosmologia que abriga uma concepção geral dos planos de Deus para a duração das vidas de indivíduos particulares). Como sublinhou Giddens, a influência estrutural que a cosmologia exerce sobre a interpretação individual é tanto restritiva quanto capacitadora: por um lado, na medida em que canaliza a atividade interpretativa do indivíduo para uma via específica, ela serve como limite a possibilidades de interpretação abertas por cosmologias distintas (p.ex., a morte como uma ocorrência completamente contingente e não “planejada” do ponto de vista metafísico); por outro lado, é graças à cosmologia socialmente aprendida pelo agente individual que ele tem à mão (ou melhor, à mente) alguma ferramenta que permite a ele conferir inteligibilidade ao real e orientar-se, na prática, em relação ao mundo que o circunda. 

O que os críticos praxiológicos do estruturalismo afirmam é que tais estruturas culturais ou ideacionais, como um idioma ou uma cosmovisão socialmente partilhada, são condições necessárias, mas não suficientes, das práticas que as mobilizam. As práticas sociais não são meras execuções das estruturas na ação, mas dependem também do papel relativamente autônomo da agência. Isto significa: dos modos criativos pelos quais os agentes humanos utilizam as estruturas em contextos particulares, com base nos interesses pragmáticos e competências práticas que movem sua utilização. No que tange aos interesses assim como às competências, o fato de que devemos seguir as estruturas da língua para produzir e interpretar falas inteligíveis, por exemplo, não significa que a língua especifique exatamente o que devemos em dizer em qualquer situação. No caso dos interesses, pode-se falar com o propósito de aprender, persuadir racionalmente, enganar por quaisquer meios disponíveis, seduzir para provocar admiração e assim por diante. No caso das competências, por seu turno, pode-se falar com maior ou menor conhecimento da variedade interna da língua, com maior ou menor criatividade no seu uso, com maior ou menor senso da eficácia prática de diferentes construções linguísticas etc.   

Às suas respectivas maneiras, tanto Giddens quanto Bourdieu sustentam que as mais diversas abordagens estruturalistas e pós-estruturalistas sofrem de um déficit sociológico de origem, retraçável à decisão saussuriana de que é possível levar a efeito um estudo da língua fazendo-se abstração dos seus contextos sociais práticos de uso. Por mais que partidários do estruturalismo admitam que a separação entre língua e fala é um procedimento analítico, não um postulado de que a separação vigoraria na realidade mesma, permanece o fato: um exame das propriedades estruturais de um idioma que não leve em consideração os seus modos de utilização e transformação em falas contextuais já desfigura, de saída, o próprio modo de existência da língua qua estrutura. A produção de significado só ocorre caso os falantes adaptem as estruturas gerais da língua aos seus contextos particulares de uso, de maneira que o domínio competente da língua como ferramenta social de comunicação vai muitíssimo além da capacidade de produzir sentenças formalmente corretas. Para funcionar na prática como competência comunicativa, a competência linguística pressupõe…   

… não apenas o domínio sintático de sentenças, mas o controle das circunstâncias em que determinados tipos de sentenças são viáveis. Nas palavras de Hymes: ‘a pessoa adquire competência a respeito de quando falar e quando calar, o que falar com quem, onde e como’. Em suma, o domínio da língua é inseparável do controle da variedade de contextos em que essa língua é utilizada” (Giddens, 1999: 287).

Eis a dica para que tanto Giddens quanto Bourdieu, assim como o Sahlins de Ilhas de história, ofereçam uma crítica imanente do estruturalismo com base na pragmática da linguagem. Se a capacidade de compreender e produzir enunciados linguísticos é inseparável da capacidade de agir – ou “saber prosseguir” (Wittgenstein, 1958: § 151, 154, 155) – em uma “forma de vida” social particular, os usos da linguagem não são divorciáveis dos demais aspectos das práticas sociais cotidianas. Nesse sentido, longe de se reduzir a abordagens que tomam a linguagem como o modelo para pensar a vida social, uma virada linguística informada pela pragmática defende que é na elucidação da vida social, qua domínio de práticas, que se encontra a chave para a compreensão da linguagem.        

Cadê o sujeito?

Juntamente com a tese da aplicabilidade de modelos linguísticos para o conjunto das ciências humanas, o “descentramento do sujeito” é comumente sublinhado como contribuição capital do(s) estruturalismo(s) e pós-estruturalismo(s) para a teoria social. Como já acontecia com a “virada linguística”, as perspectivas estruturalistas ofereciam versões próprias de uma ampla reação crítica, no século XX, à “filosofia do sujeito” ou da “consciência”: a tendência de boa parte da filosofia moderna, no mínimo desde Descartes, a tomar a consciência individual como fundamento primeiro e ponto de partida da teorização sobre a condição humana. Nesse sentido, ainda que poucas dessas reações tenham sido tão radicais e virulentas quanto aquelas de um Lévi-Strauss ou de um Derrida, avatares da “crítica do sujeito” já haviam aparecido, por exemplo, na tese heideggeriana do primado do ser sobre a consciência em Ser e tempo, na ênfase de George Herbert Mead sobre a constituição relacional da autoidentidade, nos ataques de Wittgenstein à possibilidade de uma “linguagem privada” e, claro, na psicanálise de Freud, toda ela construída em cima da tese de que o “ego” não é “senhor em sua própria casa”.

No contexto intelectual francês após a Segunda Guerra, a herança da “filosofia do sujeito” fora atualizada com tremenda influência pela fenomenologia existencialista de Sartre. Não surpreende, então, que as espinafradas dirigidas por Lévi-Strauss à moderna figura conceitual do sujeito, o “menino mimado” da filosofia ocidental, assumissem a forma de um ataque a componentes centrais da filosofia de Sartre, como a rejeição sartriana da existência mesma de um inconsciente ou seu postulado de que a consciência estaria imbuída de uma liberdade irrevogável (1997). Combinando a ideia de que “a existência precede a essência” à tese de que a causalidade não opera no domínio da subjetividade, Sartre (1978: 5) concluiu que o ser humano, a despeito de seu caráter “situado”, torna-se o que faz livremente de si mesmo. Já que tanto da energia intelectual mobilizada nos estruturalismos consistia em desmistificar as ilusões da consciência sobre si própria, mediante a demonstração das determinações inconscientes que operam “por detrás” dela, não surpreende que as flechas dirigidas a Sartre não tenham advindo somente do arco de Lévi-Strauss. Fosse na roupagem fenomenológico-existencialista de O Ser e o Nada [1943], fosse na vestimenta hegeliano-marxista de Crítica da razão dialética [1960], o subjetivismo sartriano foi alvejado pelas demais vertentes associadas à guinada estruturalista na França dos anos de 1950 e 1960: a teoria literária e cultural de Barthes, a leitura de Marx feita por Althusser, a reinterpretação lacaniana de Freud e a arqueologia das ciências humanas de Foucault. Como disse um comentador arguto:

Lévi-Strauss malhou o eurocentrismo de Sartre; Lacan denunciou o mito da unidade e autonomia do ego (o para-si, fundido mas não abolido nos ‘grupos em fusão’ da violência revolucionária); Althusser fustigou a filosofia do sujeito, a herança hegeliana do existencialismo; e a sentença retumbante de Sartre ‘o existencialismo é um humanismo’ não resistiu à desmoralização dos humanismos filosóficos empreendida por Foucault” (Merquior, 1981: 194) 

Como sucede com a concepção “gerativista” de estrutura oriunda da linguística saussuriana, a relação das perspectivas praxiológicas de Giddens e Bourdieu com a crítica estruturalista do sujeito incorpora algumas de suas lições fundamentais, mas também rejeita os excessos objetivistas a que tal crítica foi levada nas obras de autores como Lévi-Strauss (e, no caso de Giddens, Foucault, Derrida e Kristeva [2018: cap.1]). As lições principiam pela ideia de que a subjetividade individual não pode ser tomada como um dado não problematizado da filosofia e das ciências humanas; ao contrário, ela deve ser pensada a partir de suas condições de constituição. Decerto, a identificação de tais condições de formação da subjetividade varia conforme os autores estruturalistas e pós-estruturalistas, incluindo das estruturas lógicas inconscientes do “espírito humano” em Lévi-Strauss a dispositivos históricos de saber-poder no Foucault da fase genealógica. De qualquer modo, embora a ênfase na moldagem social da subjetividade seja mais forte em Bourdieu do que em Giddens, ambos sublinham o caráter social e historicamente variável das condições de existência nas quais as subjetividades individuais adquirem suas disposições de conduta, seja no âmbito motivacional (i.e., os interesses e vontades que impulsionam os agentes a intervir no mundo social), seja na esfera “hábil” ou procedimental (p.ex., as competências e habilidades práticas que capacitam aquelas intervenções).

Cadê o inconsciente?  

Cada um na sua, tanto Giddens quanto Bourdieu também notaram a diferença entre o “saber prático” tal qual trabalhado por certa tradição britânica (p.ex., Polanyi, Wittgenstein), de um lado, e o conceito “forte” de inconsciente oriundo de uma tradição francesa mais influenciada pela psicanálise e pelo(s) estruturalismo(s) (p.ex., Lacan, Lévi-Strauss), de outro. O contraste entre a noção kuhniana de “paradigma” em A estrutura das revoluções científicas ([1962] 1996) e a ideia foucaultiana de “episteme” em As palavras e as coisas ([1966] 2002) é ilustrativo da mencionada diferença, já que se mostra em duas obras influentes da década de 1960 voltadas, mutatis mutandis, à história do conhecimento científico. Em comum, Kuhn e Foucault abraçam o pressuposto “construtivista” de que o acesso epistêmico ao real é mediado por estruturas de significado partilhadas no seio de coletividades históricas. Ambos certamente concordam também quanto ao fato de que o papel “construtor” daquelas estruturas de significado social e historicamente variáveis não se resume a representações explicitamente articuladas na linguagem. Na verdade, as estruturas de significado referidas por noções como “paradigma” e “episteme” fornecem os pressupostos cognitivos infraconscientes com base nos quais são erigidas as formulações conscientes das subjetividades moldadas por aquelas estruturas. Isto dito, a relação que Kuhn postula entre o raciocínio explícito e os pressupostos tácitos de um paradigma é muito mais flutuante e permeável do que o que é sustentado por Foucault acerca do caráter inconsciente das epistemes. Kuhn afirma que diversos dos pressupostos ontológicos e metodológicos de um paradigma (i.e., respectivamente, pressupostos sobre como o mundo é e sobre como o mundo deve ser estudado) operam na prática científica de modo tácito, mas não deduz disso, entretanto, que eles seriam inacessíveis. Já em um autor tão desconfiado quanto às prerrogativas que o sujeito outorga a si próprio, como o Foucault da fase arqueológica, a ideia de que o pensável e o nomeável possuem condições impensadas e inominadas de possibilidade transborda para a tese mais radical de que tais condições seriam, ipso facto, impensáveis e inomináveis pelos sujeitos estruturados por elas.

Cada um na sua (de novo), Giddens e Bourdieu procuraram alguma espécie de conciliação entre as filosofias anglo-saxãs do inconsciente no sentido “fraco” e as perspectivas francesas do inconsciente no sentido “forte”. Como já vimos no caso giddensiano, a distinção entre “consciência discursiva” e “consciência prática” supõe que a fronteira entre uma e outra é flutuante e permeável, já que os agentes são capazes, em princípio, de aprender a formular discursivamente os saberes práticos que aplicam em suas condutas cotidianas. No modelo “estratificado” oferecido na teoria da estruturação, a subjetividade também abarca um “inconsciente” em sentido próximo ao freudiano, tomado como um domínio de impulsos e representações que estão completamente subtraídos à consciência ou aparecem nela apenas sob formas semioticamente distorcidas, como sonhos, sintomas neuróticos e atos falhos. A barreira da repressão é localizada por Giddens não entre as consciências prática e discursiva, mas na relação entre ambas as modalidades de consciência, de um lado, e o inconsciente, de outro. Bourdieu, por sua feita, infunde elementos das concepções “anglo-saxã” e “francesa” do inconsciente na sua noção de habitus. Ao trabalhar a caracterização do habitus como “senso prático”, por exemplo, o sociólogo francês mobiliza as reflexões do segundo Wittgenstein sobre “seguir uma regra” (2009) para fustigar os modos pelos quais Lévi-Strauss pensou a influência das regras sobre a conduta social. Como um “saber prosseguir” socialmente adquirido em experiências pregressas, o senso prático rompe tanto com as concepções de “regras” como determinações mecânicas inconscientes quanto com o “juridicismo” intelectualista (Bourdieu, 1990: 96) que as toma como representações explícitas na mente dos agentes. Por outro lado, quando a questão é o acesso consciente e reflexivo dos agentes aos princípios do seu próprio habitus, Bourdieu abraça um ceticismo que o aproxima mais dos estruturalismos franceses do que das filosofias anglo-saxãs da ação. Como tais estruturalistas, às vezes ele parece supor que as estruturas infraconscientes da consciência seriam, como que por definição, inacessíveis à mesma consciência.

Aliás, o eixo estruturalista do inconsciente “forte” se junta por vezes, nos escritos de Bourdieu, a um eixo psicanalítico. Tal qual disse uma pílula, as disposições do habitus possuem tanto uma dimensão volitiva ou motivacional (i.e., os interesses que movem a ação) quanto hábil ou procedimental (i.e., as capacidades que habilitam o agente a intervir no mundo social). Pois bem: quanto àquela primeira dimensão, seguindo uma linha próxima àquela da psicanálise, o sociólogo francês identifica a existência de mecanismos subjetivos de resistência pelos quais os agentes escondem de si próprios, pelo menos parcialmente, os interesses e investimentos que os movem. Seria o caso, por exemplo, do volume de autointeresse egoísta que subjaz aos atos aparentemente altruístas de um ciclo da dádiva (2009: cap. 7) ou, ainda, do grau em que artistas, sacerdotes e cientistas estão investidos nas recompensas simbólicas mundanas oferecidas por seus respectivos campos, para além da dedicação “intrínseca” às suas atividades.    

Conclusão: ecce subjectum

A crítica encarniçada ao argumento cartesiano do cogito, nas correntes estruturalistas e pós-estruturalistas, estende ao “eu” pressuposto no “penso, logo existo” de Descartes as características de quaisquer outros signos em sistemas semióticos. Sua identidade não derivaria da “referência” (nesse caso, a estados de consciência individuais), mas de suas relações de diferença quanto a outras unidades significantes na mesma totalidade semiológica. Nesse sentido, a autotransparência imediata pressuposta pela tese cartesiana dá lugar à ideia de que mesmo o “eu” só pode tomar a si próprio como objeto a partir do seu envolvimento com um sistema coletivo e impessoal de significação. A centralidade de instrumentos simbólicos intersubjetivos para a própria operação da subjetividade individual é certamente acolhida por Giddens como uma importante lição estruturalista (1999: 98). O problema, uma vez mais, é a frequência com que tal tese serviu não a um modelo reconstruído do sujeito que levasse em consideração suas condições sócio-históricas de constituição, assim como seu feitio internamente múltiplo, mas a uma desconstrução que dissolvia o agente no “jogo” (Derrida, 1971: cap.10) de estruturas semióticas impessoais e anônimas.   

O Derrida maduro nunca virou praxiólogo, mas até ele, no fim das contas, viria a concordar com o juízo anterior. Na fase mais tardia da sua obra, marcada que foi por uma série de esforços “reconstrutivos”, o autor francês sublinharia que as críticas à filosofia do sujeito que alimentaram seus questionamentos não desembocavam na aniquilação da subjetividade, mas em um trabalho preparatório a uma compreensão renovada do “subjectum:

Para esses…discursos (Lacan, Althusser, Foucault) e para alguns dos pensadores que eles privilegiam (Freud, Marx, Nietzsche), o sujeito pode reinterpretado, restaurado, reinscrito – ele certamente não está ‘liquidado’. (…) O questionamento ontológico que lida com o subjectum, em suas formas cartesianas e pós-cartesianas, é tudo menos liquidação” (Derrida, 1995: 257).  

Portanto, o sujeito não morreu. Só perdeu um bocado das suas ilusões. 

Notas

[i]A língua é um sistema de signos que exprimem ideias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas. Pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social… chamá-la-emos de Semiologia (do grego sêmeion, “signo”).(…) A Linguística não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Linguística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos humanos” (Saussure, 1969: 23).

[ii]A ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante” (Ibid.: 81).

[iii]como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf (“boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro” (Ibid.: 82).

[iv]todo meio de expressão aceito numa sociedade repousa em princípio num hábito coletivo ou, o que vem a dar na mesma, na convenção. (…) A palavra arbitrário requer também uma observação. Não deve dar a ideia de que o significado dependa da livre escolha do que fala (ver-se-á, mais adiante, que não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo uma vez que esteja ele estabelecido num grupo linguístico); queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (Ibid.: 82-83).          

Referências

AUSTIN, John. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 1975.

BARTHES, Roland. Ensayos críticos. Buenos Aires: Seix Barral, 2003.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

DERRIDA, Jacques. 1971. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva.

________Da gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. 

________Points…interviews 1974-1994. Stanford: Stanford University Press, 1995.

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WITTGENSTEIN, Ludwig. (1958), Philosophical investigations. Oxford: Basil Blackwell.

4 comentários em “TEORIA SOCIAL EM PÍLULAS – Do estruturalismo à praxiologia: linguagem, sociedade, sujeito

  1. Marcos César Alvarez

    Ótimo texto! Talvez pudesse explorar também questões do assim chamado terceiro momento do Foucault, o da Ética. Mas complica bem a discussão o fato de que Foucault não “recupera” simplesmente o sujeito na sua última fase …

    • bloglabemus

      Muito obrigado, Marcos! Fico feliz que tenha gostado! O comentário é pertinentíssimo…e o ideal é que fosse respondido por um texto de sua autoria aqui no blog.😉 Acho que o terceiro Foucault é interessante justamente porque suas propensões objetivistas anteriores são corrigidas por um “retorno” do sujeito que não é, ao mesmo tempo, retorno a qualquer espécie de subjetivismo. O Thomas Lemke diz que a noção de “experiência” passa a designar, nesse último Foucault, a relação dinâmica entre os temas das três fases: regimes de verdade, modalidades de poder e formas de subjetividade. Embora a categoria-chave seja “experiência” e não “prática”, tenho a sensação de que, depois do “quase estruturalismo” da arqueologia e do “pós-estruturalismo” da genealogia, Foucault desembocou em uma espécie de……praxiologia – mas essa interpretação pode ser mera vontade de arregimentá-lo pro meu time teórico, hahaha. Abraço

      • Marcos César Alvarez

        Oi, Gabriel, penso também que é por aí. Acho apenas que as “etapas” do pensamento de Foucault não são tão demarcadas. Por exemplo, já no início dos anos 70, ele caracterizava seus trabalhos como movendo-se entre as dimensões sujeito/poder e verdade. Agradeço o convite e vou tentar rabiscar algo. Gostaria de desenvolver o argumento de que o diálogo da teoria social, e mesmo sociológica, é deficitário em relação a Foucault, pois toma alguns pontos de sua trajetória – As Palavras e as Coisas, Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir – como pontos de chegada teóricos, quando na verdade são momentos de uma reflexão bem mais complexa. Habermas, Giddens e mesmo Bourdieu acabam fazendo esse diálogo restrito. Honneth sai um pouco disso e alguns autores mais contemporâneos, mas daria para avançar mais ainda no debate com a teoria social. Enfim, ideias para uma boa conversa, abçs

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