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Bourdieu em pílulas (2): objetivismo, subjetivismo e praxiologia, por Gabriel Peters

Por Gabriel Peters

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A primeira parte dessa série pode ser encontrada nesse link.

 

Dos anos 70 aos anos 80: a hora da síntese 

No início dos anos 1980, Jeffrey Alexander (1987 [1982]) notou que as ciências sociais estavam presenciando um “novo movimento teórico”, do qual faziam parte autores como Jürgen Habermas, Anthony Giddens e, é claro, nosso herói Pierre Bourdieu. Ao entrarem em cena em meio a uma proliferação estonteante de abordagens rivais, tais teóricos se destacaram, em primeiro lugar, por seus esforços de síntese entre perspectivas diversas: a fenomenologia de Schutz, a etnometodologia de Garfinkel, o interacionismo simbólico de Mead e Blumer, a pragmática da linguagem do “segundo” Wittgenstein, o estrutural-funcionalismo de Parsons e Merton, as teorias marxistas e weberianas do conflito, o estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, o pós-estruturalismo de Foucault e Derrida, entre várias outras. A despeito de suas diferenças entre si, os diálogos críticos de Giddens, Habermas e Bourdieu com essas abordagens possuíam uma orientação comum, qual seja, a tentativa de superar uma série de polarizações teóricas que tamanha diversificação de visões havia legado às ciências sociais, tais como voluntarismo/determinismo, agência/estrutura, micro/macrossociologia e subjetivismo/objetivismo.

Grossíssimo modo, perspectivas como a fenomenologia, a etnometodologia e as teorias “wittgensteinianas” da ação sublinhavam, com razão, que a ordem social não é um resultado mecânico, mas uma produção continuamente levada a cabo por agentes interessados e hábeis. Ao se concentrarem sobre tais práticas habilidosas de produção e reprodução do social pelos indivíduos, essas abordagens tenderam a negligenciar, no entanto, o reverso da moeda: a produção dos indivíduos pelo social. Em outras palavras, elas passavam ao largo do fato de que as próprias habilidades cognitivas e práticas que os agentes investiam nesse trabalho de (re)constituição do mundo societário derivavam de sua socialização nas estruturas desse mesmo mundo. Em contraste, abordagens como a teoria sistêmica do último Parsons, o marxismo de Althusser e a crítica (pós-)estruturalista do sujeito estavam particularmente atentas às influências socioestruturais que pesam sobre a ação individual. Tais influências existiriam tanto sob a forma de condições históricas exteriores com as quais o agente se confrontaria, quanto sob a roupagem de propensões internas a agir, pensar e sentir de maneiras que nele foram inculcadas pela socialização. Entretanto, naquelas perspectivas, tal reconhecimento da força condicionante do social tendeu a deslizar, com frequência, para uma visão de estruturas e processos sociais como entidades autônomas, cuja existência histórica independeria das iniciativas de agentes individuais interessados, habilidosos e criativos.

Pois bem. O ponto de partida do “novo movimento teórico” foi a apreciação de que cada um dos lados dessa dicotomia que atormentava as ciências sociais possuía uma dose de razão, mas também uma dose de erro. O desafio analítico resultante era, então, a construção de uma teoria do mundo social capaz de integrar os poderes criativos do agente individual, de um lado, e os poderes condicionantes das estruturas coletivas, de outro, em um único retrato.

Objetivismo e Subjetivismo: o “mais ruinoso dos dualismos”

Em diversos momentos da sua obra, Bourdieu se referiu ao conflito entre modos “objetivistas” e “subjetivistas” de conhecimento da vida societária como a “mais fundamental e mais ruinosa…de todas as oposições que dividem artificialmente as ciências sociais” (Bourdieu, 1980: 43). A noção de “objetivismo” se aplicaria a perspectivas teóricas para as quais a faceta objetiva do mundo social (i.e., sua existência como uma força externa e independente dos indivíduos) predomina sobre sua faceta subjetiva (i.e., sua existência como objeto de representação e experiência nas mentes e corpos individuais). Dando primazia à objetividade do universo societário, tais perspectivas tendem a conceber o ator individual seja como irrelevante para a explicação sociológica, seja como um fantoche ou “marionete” (Bourdieu, 1990: 21) mecanicamente movido por forças coletivas. A expressão “subjetivismo” se referiria, naturalmente, a abordagens para as quais a relação de predominância seria a inversa, com as estruturas sociais aparecendo como produtos maleáveis de condutas individuais geradas por intenções e representações subjetivas.

Em termos de história das ideias, a primeira manifestação do confronto entre subjetivismo (“fenomenologia social”) e objetivismo (“física social”) com que Bourdieu se bateu foi a rivalidade entre o existencialismo de Sartre e o estruturalismo de Lévi-Strauss na academia francesa durante as décadas de 1950 e 1960. A antropologia estruturalista de Lévi-Strauss buscava demonstrar a relevância de ensinamentos da chamada “linguística estrutural”, representada por Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson, para o conjunto de ciências sociais, terminando por inserir-se em um movimento intelectual mais amplo que veio a ser chamado de “estruturalismo”. Exprimindo menos um “paradigma” articulado do que uma mudança de sensibilidade na cena acadêmica francesa, os autores então elencados como “estruturalistas” (Barthes, Lacan, o Foucault de As palavras e as coisas, Althusser) convergiam na crítica à primazia conferida por Sartre a uma suposta consciência livre do ser humano. Em contraste, esses autores sublinhavam que a consciência e a conduta individuais eram poderosamente condicionadas por estruturas sociais e/ou simbólicas largamente inacessíveis ao conhecimento e ao controle dos indivíduos. Embora simpático a essa crítica, Bourdieu julgava que o estruturalismo havia ido longe demais em sua crítica à “filosofia do sujeito” representada por Sartre, substituindo a visão sartriana de uma consciência livre de determinações sociais por uma concepção da subjetividade como mero epifenômeno de estruturas objetivas.

Uma questão de momentos

O “modo de conhecimento praxiológico” formulado por Bourdieu permanecerá, não custa lembrar, bem mais próximo da antropologia estruturalista de Lévi-Strauss do que da filosofia existencialista de Sartre. Além de um estímulo intelectual à sua transição definitiva da filosofia para as ciências sociais, o estruturalismo de Lévi-Strauss foi saudado por Bourdieu como exemplar da fecundidade do pensamento relacional na análise da vida societária. No post anterior dessa série, vimos que Bourdieu advoga uma abordagem capaz de romper com o apego “substancialista” do senso comum a entidades e processos sociais diretamente observáveis. Contra o substancialismo ordinário, a sociologia procuraria apreender as estruturas profundas que explicariam as próprias manifestações de superfície da vida social – por exemplo, a estrutura de classe por trás do modo “elegante” como um indivíduo fala e gesticula ou as posições desiguais no campo científico que orientam uma interação face a face entre um cientista consagrado e seu orientando. Como as duas ilustrações indicam, aliás, essas estruturas profundas pelas quais o mundo social afeta a conduta dos indivíduos não operam apenas “sobre” eles a partir de fora, mas também “através” deles, isto é, por meio das disposições que eles interiorizaram em sua experiência social.

Dentre os membros da Santíssima Trindade da sociologia, Marx e Durkheim também teriam oferecido diversos exemplos fecundos de abordagem relacional da existência coletiva. Com efeito, nossos dois clássicos foram influências tão decisivas sobre Bourdieu que toda a sua teoria do “poder simbólico” pode ser lida como um “marxismo durkheimiano”; mais precisamente, como uma reformulação da teoria marxista da ideologia pelo foco na conexão entre estruturas sociais e estruturas mentais proposta por Durkheim (mas isso é assunto para outro dia [Peters, 2012: 237; 241-243]). O que mais importa, no presente contexto, é que Bourdieu está de acordo com ambos quanto à tese de que estruturas e processos sociais são dotados de características que fogem cronicamente às intenções e ao conhecimento de atores individuais. Ao mesmo tempo, segundo o sociólogo francês (1990: 150-151), nossos dois clássicos deslizaram frequentemente desse sensato relacionismo para um inaceitável objetivismo, segundo o qual as vontades e consciências individuais não seriam apenas insuficientes, mas irrelevantes para a explicação sociológica. Tal erro objetivista apareceria, por exemplo, na intenção durkheimiana de explicar taxas de suicídio exclusivamente em termos de propriedades coletivas ou nos momentos em que a dialética entre agentes e estruturas dá lugar, no marxismo, a “leis” naturais e objetivas da história (Bourdieu, 1990: 41).

Qual é o dilema fundamental das abordagens objetivistas da vida social? Ainda que elas tenham razão em apontar a realidade das estruturas sociais objetivas, faltaria a tais perspectivas uma apreensão dos modos pelos quais a existência histórica dessas estruturas é mantida pelas práticas de agentes interessados e hábeis. Segundo Bourdieu, as estruturas sociais objetivas não são entidades naturais e independentes dos seres humanos, mas produtos históricos das suas práticas. Nesse sentido, identificar as propriedades estruturais de uma coletividade não basta; é preciso captar os mecanismos através dos quais as condutas individuais são geradas, no seio dessa coletividade, de modo a reproduzir suas estruturas. Ao negligenciarem essa dependência histórica das estruturas sociais em relação aos agentes individuais, o objetivismo seria forçado a pensar as sociedades e suas características estruturais quer como exteriores à história (p.ex., no estruturalismo de Lévi-Strauss), quer como entidades capazes de ação deliberada e consciente (p.ex., na “personificação dos coletivos” que afetaria tanto as teorias estrutural-funcionalistas da “consciência de grupo” quanto certas concepções marxistas da “consciência de classe” [Bourdieu, 1983: 59]).

Nesse sentido, Bourdieu afirma que os ensinamentos teóricos das abordagens objetivistas, ainda que necessários, não são suficientes para um retrato acurado da vida social. Em seu típico movimento intelectual de incorporação e crítica, o sociólogo francês sublinha que a fonte das fraquezas analíticas do objetivismo é também a fonte das suas forças. Com tais perspectivas, diz Bourdieu, aprendemos que a sociologia, se não quiser ser presa das distorções e parcialidades do senso comum, tem de partir da “floresta” para então chegar às “árvores”, jamais fazendo o percurso inverso. Em outras palavras, qualquer investigação de um mundo societário deve começar por uma caracterização exterior e distanciada desse mundo como uma configuração objetiva de relações, cujas propriedades condicionam fortemente os agentes nela inseridos, tenham eles consciência disso ou não. A primeira etapa da análise sociológica é, portanto, um “momento objetivista” no qual o universo societário é abordado segundo o que Karl Mannheim denominou de uma “visão de pássaro” ou, para usar uma metáfora mais modernosa, uma “visão Google Earth” capaz de vislumbrar uma configuração social total (por exemplo. um espaço nacional de classes, um campo de produção cultural etc.).

Isto feito, no entanto, a cientista social deve manter em mente que essa configuração coletiva não é estática, mas mantida em movimento histórico pelas ações dos agentes que nela estão imersos. Dado que tais ações não são automatismos mecânicos, mas condutas animadas por interesses estratégicos e habilidades práticas, o “momento subjetivista” do inquérito sociológico procura, então, acessar as subjetividades individuais para mostrar como operam tais interesses e habilidades na produção da ação. Como a formulação indica, os motores subjetivos da conduta individual abrangem duas dimensões. De um lado, estão os interesses que impulsionam os agentes a envolver-se com o universo social, a investir tempo, energia e recursos em algum dos seus “jogos”, em suma, a buscar determinados “lucros” materiais ou ideais: dinheiro, poder político, autoridade sacerdotal, prestígio acadêmico, consagração artística etc. De outro lado, os motores subjetivos da ação não são apenas da ordem da vontade, mas também da ordem do entendimento, incluindo os saberes e competências que habilitam os agentes a intervir na vida social de maneiras ou menos efetivas.

Bourdieu sustenta que o principal trunfo das “microssociologias interpretativas”, como a fenomenologia de Schutz e a etnometodologia de Garfinkel, foi expor como as modalidades mais cotidianas de conduta social dependem de complexas habilidades cognitivas e práticas partilhadas pelos “membros ordinários” (Garfinkel) da sociedade (Bourdieu e Wacquant, 1992: 73). Análises etnometodológicas de como os participantes de uma conversa organizam sua situação social, por exemplo, mostram que as habilidades cognitivas e práticas por trás desses eventos rotineiros são muito mais intrincadas do que parecem à primeira vista. Há um motivo por trás dessa simplicidade enganosa. Dado que os saberes que os atores investem em suas condutas são instrumentos de ação, “métodos” (Garfinkel) para intervir na vida social, boa parte dos nossos “estoques de conhecimento” (Schutz) não precisa operar de modo explícito e consciente, mas pode assumir um caráter tácito e pré-reflexivo. A maior parte dos usuários de um idioma conhece o essencial das suas regras gramaticais, não no sentido de que podem apresentá-las de modo explícito, mas, sim, de que são capazes de aplicá-las, na prática, como instrumentos de comunicação. Para dar um exemplo menos inocente, Bourdieu diria que é também por meio de um “senso prático” que os agentes situam um indivíduo nesta ou naquela classe social depois de uma rápida observação de seu comportamento, ainda que não saibam com precisão que “índices classificatórios” estão mobilizando (roupas, maneira de falar, maneira de gesticular etc.). Na medida em que os saberes que capacitam a conduta social são eminentemente práticos, eles não se reduzem a competências mentais, mas abarcam também o que Mauss denominou de “técnicas do corpo”, ou seja, maneiras socialmente adquiridas de manejo da própria corporeidade (por exemplo, o domínio prático dos modos de andar, falar, gesticular, sentar, manusear etc. que são socialmente demandados de um homem ou de uma mulher).

A síntese entre objetivismo e subjetivismo avançada por Bourdieu trabalha com uma espécie de “lei da lucidez e da cegueira cruzadas”: X enxerga algo que Y não enxerga, mas, por isso mesmo, Y também enxerga algo que X não enxerga. Como acontecia com os modos objetivistas de análise do social, os trunfos teóricos e metodológicos do subjetivismo têm sua contraparte desvantajosa. Por um lado, a fenomenologia e a etnometodologia estavam corretas em sublinhar que as estruturas sociais não se reproduzem por conta própria, mas são historicamente reproduzidas pelas práticas de agentes subjetivamente movidos por interesses e habilidades. Por outro lado, ao concentrarem-se sobre esse trabalho motivado e habilidoso de construção e reconstrução do mundo social, elas teriam se esquecido de que os interesses e habilidades que animam esse trabalho são produtos de uma socialização prévia no próprio mundo que os agentes (re)produzem. Nas palavras do homem:

ainda que…os fenomenólogos…e os etnometodólogos…tenham razão de lembrar, contra a visão mecanicista, que os agentes sociais constroem a realidade social, eles omitem a questão da construção social dos princípios de construção dessa realidade empregados pelos agentes nesse trabalho de construção (Bourdieu, 2001: 212)

 

Ainda que possa enfurecer alguns de seus leitores, a ênfase repetida sobre a ideia de “construção” é uma forma de sublinhar a dialética entre a constituição dos indivíduos pela sociedade e a constituição da sociedade pelos indivíduos. Segundo Bourdieu, no entanto, tal dialética começa pelo primeiro processo, assim como o “momento objetivista” tem precedência sobre o “momento subjetivista”. A sociedade tem primazia biográfica sobre qualquer indivíduo particular, já que é este quem terá sua subjetividade moldada por circunstâncias existenciais que ele não escolheu, mas que se impõem a ele. Por meio da socialização, as condições sócio-históricas em que o indivíduo é lançado (por exemplo, as oportunidades e restrições econômicas associadas à posição de classe de sua família) são internalizadas na sua subjetividade sob a forma de um conjunto de disposições mentais e corpóreas duráveis, as quais formam o que Bourdieu chamará de habitus. Através do habitus, as condições de vida em que somos socializados são como que “depositadas” ou “sedimentadas” em nossas subjetividades sob a forma de propensões a agir, pensar e sentir associadas àquelas condições.
Por exemplo, diz Bourdieu (2007), a socialização em condições de privação material gera, em indivíduos das classes populares, disposições duráveis de consumo em que a “função” prática predomina sobre a “forma” – assim, digamos, alimentar-se significa ingerir uma quantidade propícia à recuperação das próprias energias, assim como fotografar significa registrar momentos importantes da vida. Por contraste, a socialização em condições de afluência econômica gera, em indivíduos das classes mais abastadas, um privilégio da forma sobre a função, uma “estilização” da vida que reflete sua distância da necessidade material – por exemplo, alimentar-se significa experimentar diferenças de qualidade tanto no sentido descritivo (comer comida tailandesa na quinta e mexicana na sexta) quanto avaliativo (comparar vinhos em uma degustação), assim como o fotografar não é apenas o registro realista de momentos importantes, mas a experimentação estética de quem pode se dar esse privilégio. Seja como for, nas duas situações, o “produto” da socialização não é uma entidade passiva, mas um agente dinâmico. Ao mobilizarem suas disposições socialmente adquiridas em suas práticas cotidianas, os agentes individuais deixam de ser somente efeitos de estruturas objetivas. Eles passam a ser também suas causas; ou, pelo menos, parte da cadeia de causas pelas quais as propriedades estruturais do mundo social são historicamente reproduzidas.

Estatística das condições, etnografia dos condicionamentos: notícula sobre a teoria em ato

 

Nesse monumental estudo da sociedade francesa que é A distinção (2007), Bourdieu mostra que sua perspectiva teórica funciona, na prática, como orientação intelectual de pesquisa. Primeiramente, através de ferramentas estatísticas, o autor busca apreender o espaço de classes da França como uma macroestrutura objetiva de relações entre agentes diferencialmente posicionados, com suas posições sendo determinadas por seus volumes desiguais de capital econômico e cultural. Eis o momento objetivista, voltado à captura das estruturas objetivas nas quais os agentes são socializados e atuam. Em um segundo passo da sua pesquisa, no entanto, ele combina tal análise estatística a observações etnográficas para mostrar como as “condições” objetivas de existência associadas a uma posição de classe se traduzem em “condicionamentos” subjetivos, isto é, em disposições de conduta que se exprimem em variadas esferas dos estilos de vida dos membros de uma classe (de suas preferências à mesa até suas escolhas de vestuário, de suas relações com a arte até suas inclinações políticas). Eis o momento subjetivista, dirigido ao exame das disposições socialmente aprendidas que os atores investem nas suas ações; ações que contribuem, por sua vez, para reproduzir os ambientes estruturais em que tais atores estão imersos.

O exemplo mostra que o caráter de síntese da teoria do mundo social proposta por Bourdieu tem uma contraparte metodológica, ao solicitar um casamento inteligente entre métodos quantitativos e qualitativos de investigação.

Conclusão: práticas como produto, praxiologia como síntese

 

A articulação das lições do subjetivismo e do objetivismo em um quadro teórico que transcenda os limites de ambos é possível, segundo Bourdieu, graças à relação dialética (i.e., de interdeterminação histórica) entre as próprias facetas objetiva e subjetiva do mundo social. O mundo social não pode ser explicado somente em termos de condições objetivas ou de disposições subjetivas, mas, sim, como o encontro histórico dessas duas instâncias sob a forma de práticas sociais. Ao caracterizar sua teoria sociológica como uma “praxiologia”, Bourdieu está, em primeiro lugar, oferecendo uma caracterização das práticas como produto dessa dialética entre o social como objetividade e o social como subjetividade. Uma teoria praxiológica não é, no entanto, apenas uma teoria da prática, mas uma teoria do universo social como prática ou, em outros termos, uma teoria da prática como o modo fundamental de existência da vida societária. O sociólogo francês encontrou um ancestral para tal perspectiva em um texto dileto da sua juventude: as Teses sobre Feuerbach, nas quais Marx sustenta que “toda a vida social é essencialmente prática” (2000: 113). Marx chega a desdobrar essa tese na ideia de que “todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução na práxis humana e na compreensão dessa práxis” (idem). Sem chegar a tanto, Bourdieu situou no cerne de sua praxiologia a tese de que uma ontologia do mundo social como cenário de práticas é o que possibilita transcender não apenas o confronto entre objetivismo e subjetivismo, mas toda uma série de outras dicotomias que há muito maltratam a filosofia e as ciências sociais, como indivíduo/sociedade, material/simbólico e mente/corpo. Uma das ferramentas teórico-metodológicas mais importantes no trabalho desse exterminador de dualismos será o conceito de habitus, cuja ancestralidade na filosofia e nas ciências sociais remonta, no mínimo, a Aristóteles e São Tomás de Aquino.

Tal noção será tema do próximo texto dessa série.

Referências:

ALEXANDER, Jeffrey. “O novo movimento teórico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 2, 1987.
BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris, Les Éditions de Minuit/La Maison des Sciences de l’homme, 1980.
________Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
________Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
________A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo/Porto Alegre, Edusp/Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loic. An invitation to reflexive sociology. Chicago, University of Chicago Press, 1992.
MARX, Karl. Manifesto do partido comunista & Teses sobre Feuerbach. São Paulo, Martin Claret, 2000.
PETERS, Gabriel. “O social entre o céu e o inferno: a antropologia filosófica de Pierre Bourdieu”. Tempo Social, 24, 1, 229-261, 2012a. [http://www.scielo.br/pdf/ts/v24n1/12.pdf]

 

13 comentários em “Bourdieu em pílulas (2): objetivismo, subjetivismo e praxiologia, por Gabriel Peters

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  2. VICTOR BATISTA BRANCO

    Bom texto! Muito bom trabalho de propedêutica!

  3. PABLO ORNELAS ROSA

    Baita texto!! Super interessante para pensarmos epistemologicamente o tempo presente, sobretudo no campo da política, compreendendo os alcances e limites da praxiologia bourdieusiana e sua problematização acerca das abordagens objetivistas e subjetivistas, em relação à praxiologia utilitária apresentada por Mises em Ação humana. Seria demais uma análise do Gabriel sobre a praxiologia misesiana, no sentido de evidenciar os seus limites teóricos e metodológicos!! Beijos

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