Notícula preliminar: Um artigo meu sobre a concepção de objetividade científica na sociologia reflexiva de Bourdieu foi publicado na revista Sociologias. No entanto, como a presente série de apresentação da obra de Bourdieu em doses controladas foi projetada para ser autossuficiente, pensei com meus botões que valeria a pena incluir, na dita cuja, um post sobre o mesmo tema. Eis aqui a ressalva de que não há praticamente nenhuma ideia no texto abaixo que não seja tratada, de modo mais detalhado e em uma perspectiva mais crítica, naquele artigo. Por outro lado, como convém ao formato fármaco-estilístico da “pílula”, a prosa desse post é, pelo menos em intenção, um tanto mais leve.
O pântano de Münchhausen
Em mais de uma ocasião, Bourdieu sustentou que sua principal contribuição à sociologia consistia na insistência sobre a reflexividade, tomada como um procedimento metodológico indispensável ao estudo científico do mundo social. No léxico de Bourdieu, uma ciência social reflexiva é aquela que busca explicar e compreender suas próprias condições sócio-históricas de possibilidade, fazendo uso, para tanto, das mesmas ferramentas analíticas (teorias, métodos, conceitos) que ela utiliza para tornar inteligíveis outros fenômenos. Nesse sentido, tal como pensada pelo autor francês, a sociologia reflexiva não se restringiria a uma especialidade ou subcampo da disciplina – à maneira, digamos, da “sociologia da religião” ou da “sociologia econômica”. Para Bourdieu, a sociologia da sociologia teria de se tornar, em vez disso, um componente sine qua non do fazer sociológico como tal, isto é, das exigências de método associadas ao seu status científico.
O acento sobre a reflexividade sociológica é também o caminho pelo qual Bourdieu enfrenta uma questão clássica na epistemologia das ciências sociais: como alcançar um saber objetivamente válido sobre o mundo societário, uma vez que os pontos de vista dos próprios cientistas sociais são condicionados por seu pertencimento a esse mundo? Todos aqueles que almejam a produzir um retrato científico do universo social estão eles próprios imersos, de algum modo e em alguma medida, em um contexto societário que influencia suas perspectivas sobre o objeto que pretendem conhecer. Para usar a terminologia de Bourdieu: quaisquer “pontos de vista” sobre o mundo social são “vistas a partir de um ponto” (Bourdieu; Wacquant, 1992: 74) particular desse mesmo mundo, carregando assim as limitações de visão inerentes à posição da qual emanam. Nos posts anteriores, vimos que a teoria do habitus identifica o mecanismo através do qual uma posição no espaço social se traduz, graças à socialização em certas condições de existência, em esquemas subjetivos de apreensão do real. As disposições do habitus são condicionamentos infraconscientes do pensamento consciente. Dessa forma, as influências sociais que pesam sobre o sujeito cognoscente não poderiam ser identificadas e controladas simplesmente através de um esforço autoconsciente, isto é, de uma busca deliberada de domínio sobre os próprios preconceitos e “pré-noções” (Durkheim).
Para sublinhar o irrealismo de uma concepção de objetividade nas ciências sociais que apela apenas à vigilância consciente dos próprios preconceitos, o pensador marxista Michael Löwy (1991; 2000) comparou aquela concepção a um fantástico feito contado pelo personagem mitomaníaco Barão de Münchhausen. Certa feita, o Barão galopava em seu cavalo quando ambos se viram afundando rapidamente em solo pantanoso. Não tendo onde se agarrar para sair do pântano, ele estava prestes a dizer adeus a esse mundo até que teve uma brilhante ideia: retirar-se do pântano, juntamente com seu cavalo, puxando-se pelos próprios cabelos. A analogia proposta por Löwy sugere que é da própria natureza do preconceito não ser explicitado como tal na mente de quem o possui. Nesse sentido, a ideia de que a influência dos próprios preconceitos na pesquisa do mundo social poderia ser neutralizada através do mero esforço introspectivo soaria tão implausível e irrealista quando a história de Münchhausen.
É possível sair do pântano de Münchhausen? Bourdieu dirá que sim. Porém, para entender a originalidade de sua resposta ao problema da objetividade nas ciências sociais, é preciso contrastá-la com outros tratos epistemológicos da mesma questão, especialmente em face do caráter socialmente posicionado do sujeito cognoscente no estudo da vida societária. De Karl Marx e Friedrich Engels (1974) até Sandra Harding (1996) e Donna Haraway (1988), de Georg Lukács (2003) e Karl Mannheim (1936) até Patricia Hill-Collins (2000), essa questão se desdobrou em uma série de problemas interconectados. O primeiro deles diz respeito a quais são, afinal, os fatores sociais que influenciam de maneira mais decisiva os pontos de vista sobre o mundo societário: classe, raça, gênero, sexualidade, postos no campo acadêmico, “intersecções” entre tais fatores etc. O segundo abrange os mecanismos pelos quais posicionamentos sociais se tornam influências epistêmicas, problema que evoca, grosso modo, mecanismos da ordem da vontade (p.ex., o interesse de um grupo dominante na justificação da sua dominação ou o interesse de um grupo oprimido em revelar as raízes profundas do sistema social que o oprime) e mecanismos da ordem do entendimento (p.ex., os esquemas cognitivos de percepção do mundo oriundos da socialização em tal ou qual posição de classe, gênero, raça etc.). A terceira questão envolve o status cognitivo das posições sociais a partir das quais o mundo social é interrogado: seriam elas sempre obstáculos a um saber fidedigno sobre o universo social (p.ex., a visão de Durkheim) ou seriam algumas posições epistemicamente privilegiadas no acesso à vida societária (p.ex., a “consciência de classe” do proletariado segundo Lukács e, na esteira de Lukács, do próprio Löwy)? Finalmente, se se evita o relativismo pluriperspectivista, para o qual todas as visões se equivalem no seu valor cognitivo, qual é o caminho adequado a um retrato fidedigno da vida social? A identificação dos pontos de vista sociais cujos horizontes epistemológicos seriam mais vantajosos? A síntese de diversos pontos de vista feita por uma “intelligentsia socialmente flutuante” (Mannheim)? Vejamos como Bourdieu responde a tais perguntas.
Pontos de vista como vistas de pontos
Como vimos anteriormente, o esquema analítico de Bourdieu apreende o mundo social em termos topológicos, isto é, como um espaço de posições objetivas, as quais são determinadas pela posse desigual de recursos materiais e simbólicos (i.e., formas de capital) que facultam o exercício de poder naquele espaço. As diferentes posições objetivas no mundo social estão associadas a condições de existência também diferenciadas, as quais, por seu turno, são interiorizadas via socialização em um conjunto de condicionamentos subjetivos: modos socialmente inculcados de agir, pensar, sentir, perceber, classificar, avaliar etc. As disposições do habitus, como também já ressaltamos, são tanto da ordem da vontade quanto do entendimento. Tais disposições envolvem, assim, tanto os interesses que impulsionam os agentes a se engajar nas disputas por bens escassos (materiais e/ou ideais) no universo social quanto as competências cognitivas e práticas que os habilitam a participar de um ou mais “jogos” da vida societária.
Aplicada ao sujeito cognoscente (Bourdieu, 2001:18), a teoria do habitus revela que seus condicionamentos posicionais são tanto de caráter volitivo (simpatias e antipatias, atrações e aversões) quanto de caráter estritamente cognitivo (esquemas de percepção, formas de classificação). A socialização do pesquisador ao longo de coordenadas de classe, gênero, raça etc. o imbui de disposições subjetivas que afetarão cada estágio de sua investigação do mundo social: seleção da temática, formulação de problemas, escolha de um quadro conceitual, métodos de pesquisa mobilizados e assim por diante. O acento de Bourdieu sobre a operação infraconsciente do habitus (1983a: 46) sugere que, mesmo entre os profissionais do conhecimento discursivo, os condicionamentos sociais do pensamento sobre o social se impõem primeiramente de modo não discursivo. No seu Esboço de autoanálise (2005: 55-56), o próprio Bourdieu admitiu, por exemplo, que seus posicionamentos em relação às figuras de seu cenário intelectual assumiram primeiramente a forma de estados de ânimo, isto é, de simpatias (p.ex., uma atração pelo rigor metódico de Georges Canguilhem) e antipatias (p.ex., uma aversão pelo estilo opinioso de Jean-Paul Sartre), as quais encontraram fundamentações racionais e discursivas apenas posteriormente.
Bourdieu veio a identificar três tipos de condicionamentos sociais que pesam sobre o sujeito cognoscente nas ciências humanas. Ele sublinhou, primeiramente, os pressupostos cognitivos derivados da socialização no espaço social mais amplo, os quais incluem os traços de classe, gênero e raça por exemplo (Bourdieu, 1989b:138). A segunda leva de pressupostos cognitivos sublinhada por Bourdieu consiste naqueles que um pensador deve à sua participação em tal ou qual campo de produção simbólica (p.ex., literário ou filosófico). Tais pressupostos abarcam tanto as crenças formativas da doxa própria àquele jogo quanto aquelas atreladas à posição específica do pensador na estrutura de relações do campo. Um campo de produção intelectual é um espaço de posições não apenas diferentes, mas diferenciais, isto é, definidas umas com relação às outras (Bourdieu, 2003: 119-126). Conforme um vínculo entre posições objetivas e disposições subjetivas que vale em todos os campos, as visões de diferentes autores no seu interior refletem suas divisões de poder internas, as quais derivam da distribuição desigual do capital de autoridade simbólica próprio daquele campo. Como vimos, o foco sobre as influências que os campos de produção simbólica exercem sobre perspectivas intelectuais é o cerne da crítica de Bourdieu a abordagens marxistas da cultura (Bourdieu, 1990: 115). Segundo o sociólogo francês, tais abordagens vinculariam posições de classe a produções intelectuais de modo demasiado direto (através de um “curto-circuito” [Bourdieu, 1989: 13]). Para o autor, os condicionamentos ideológicos de classe, assim como aqueles advindos de outras propriedades que atravessam os diferentes campos no espaço social (p.ex., gênero e raça), só impactam produções culturais de modo mediado, isto é, passando por uma “refração” provocada pelo campo como tal e pela posição específica que o produtor nele ocupa.
Bourdieu sublinha, por fim, uma terceira categoria de pressupostos cognitivos oriundos dos condicionamentos societários que pesam sobre a atividade intelectual, quais sejam, os pressupostos que derivam das próprias condições de possibilidade do ofício do intelectual. Segundo o autor, a dedicação à produção intelectual depende de uma situação de skholè ou otium: a liberdade em relação às urgências práticas do mundo social, a qual possibilita uma atitude contemplativa diante dele e, portanto, a existência dos campos de produção erudita (Bourdieu, 2001). Como quaisquer outras disposições subjetivas, a devoção à empresa intelectual pelo homo scholasticus se ancora em certas condições sócio-históricas. Estas incluem o estabelecimento de ambientes sociais que facultem uma postura contemplativa em face da realidade, postura devidamente protegida das pressões da necessidade material ou da “urgência da prática” cotidiana. Como sublinhamos anteriormente, a “crítica da razão escolástica” levada a cabo por Bourdieu sustenta que os intelectuais se mostram comumente pouco conscientes da excepcionalidade de suas condições sociais de existência. Em função disso, eles terminam por projetar a postura intelectualista que define sua relação com o mundo social nos próprios agentes que estão nele mergulhados, esquecendo, assim, que a orientação existencial dos últimos não é teórica, mas, sim, eminentemente prática. Na medida em que a maior parte das situações práticas no universo social possui uma “urgência” que demanda respostas rápidas, impedindo longas deliberações, o principal motor subjetivo das condutas humanas não é a consideração consciente de alternativas de ação, mas o “senso prático” adquirido através de experiências socializadoras. Ao passarem ao largo da diferença entre uma relação teórica e uma relação prática com o mundo social, várias perspectivas nas ciências sociais recairiam no que Bourdieu chama de “erro escolástico”: o pressuposto de que os procedimentos analíticos pelos quais o cientista social dá sentido à conduta dos agentes que estuda correspondem aos seus motores efetivos na subjetividade dos mesmos agentes. Segundo Bourdieu, este seria o caso, como já vimos anteriormente, das teorias que explicam a ação como resultante de um cálculo racional explícito ou da conformidade consciente a normas coletivas (Bourdieu; Wacquant, 1992: 123).
Auto-objetivação sociológica; ou galhos e cipós para sair do pântano
Segundo Bourdieu, ao trazer à luz os condicionamentos sociais que pesam sobre a própria tentativa de apreensão científica do social, a sociologia da sociologia possibilita uma dose de liberdade em relação a tais condicionamentos. Nesse sentido, ainda que o autor francês acentue com vigor que os “pontos de vista” sobre a vida social tendem a ser “vistas a partir de pontos” socialmente particulares, ele não entrega os pontos para o relativismo pluriperspectivista, isto é, para a ideia de que não haveria como decidir sobre a validade das diferentes perspectivas sobre o mundo societário. Ao contrário, na sociologia reflexiva de Bourdieu, o reconhecimento do caráter socialmente condicionado das visões de mundo dos cientistas sociais é o ponto de partida para a busca de um saber sociológico objetivamente válido, capaz de transcender as parcialidades e distorções de cada visão particular. Ao objetivar o espaço dos pontos de vista sociocientíficos, a socióloga ganharia condições de objetivar a si própria, isto é, de compreender como sua própria perspectiva sobre o mundo social é condicionada por uma trajetória posicionada nesse mesmo mundo. Ao dar-se conta de tais condicionamentos, a cientista social pode submetê-los a um controle reflexivo. Tomando consciência das influências sobre o retrato da vida societária que ela procura construir, ela pode transcendê-las ao menos em certa medida e, assim, progredir na direção de um conhecimento objetivamente válido acerca do seu objeto.
Central para Bourdieu é a ideia de que a sociologia reflexiva não é um exercício meramente introspectivo, mas uma empreitada radical de auto-objetivação, a qual envolve, por definição, a caracterização científica do espaço inteiro de forças e lutas no qual o “sujeito objetivante” está imerso (1990: 114) A concepção bourdieusiana do percurso que leva à objetividade nas ciências sociais não recorre, portanto, à exortação ao autocontrole psicológico que Löwy havia espinafrado ao compará-la ao feito fantástico do Barão de Munchhausen. A tese de que pressupostos cognitivos inconscientes poderiam tornar-se conscientes pelo simples recurso à introspecção é, segundo Bourdieu, mais um erro escolástico: “a ilusão da onipotência do pensamento” (Bourdieu, 2001: 19). Nesse sentido, para diferenciar seu estilo de sociologia reflexiva da mera reconstrução intimista de vivências sociobiográficas, o autor francês defende que os ardis da introspecção precisam ser enfrentados através das ferramentas mais brutais de objetivação desenvolvidas ao longo da história da ciência social, como a análise estatística, a observação etnográfica e o levantamento histórico (Ibid.: 20).
Assim como na interrogação de quaisquer outros objetos sociológicos, o exame reflexivo do sujeito cognoscente vai de um “momento objetivista” a um “momento subjetivista”. Em primeiro lugar, a “objetivação do sujeito da objetivação” (Bourdieu, 1990: 114) revela tal sujeito como uma “subjetividade socializada” cujas disposições foram e são moldadas por sua posição e trajetória no espaço societário (p.ex., em tal ou qual fração de classe) e em seus campos e subcampos (p.ex., no domínio acadêmico da sociologia). Bourdieu não para, no entanto, no âmbito exterior à pele do pesquisador, mas busca acessar seus pressupostos mais profundos de visão e apreensão da realidade social, tomados como traços dessa própria realidade que foram inculcados no sujeito cognoscente via socialização. A objetivação reflexiva do sujeito cognoscente busca alcançar, portanto, todo o conjunto das coações que afetam suas intelecções mais ou menos espontâneas do universo social, tanto objetivas (p.ex., o volume de capital específico atrelado a uma posição no campo acadêmico) quanto subjetivas (p.ex., os interesses estratégicos e esquemas de percepção associados a tal posição objetiva e transformados em disposições subjetivas). Foi concebendo sua auto(socio)análise nesses termos que Bourdieu produziu o seu Homo Academicus (2011), um estudo do campo intelectual inteiro no qual ele estava imerso como um agente – portanto, submetido às suas forças e engajado nas suas lutas.
A partir do momento em que a cientista social objetiva os pressupostos e limites do seu pensamento, ela se torna capaz de superá-los ao menos em certa medida, intensificando, assim, o grau de validade objetiva dos seus retratos de fenômenos sociais. A tese pode ser explorada por um retorno à analogia com a historieta do Barão de Münchhausen: dado que a reflexividade sociológica proposta por Bourdieu não se ancora na mera apologia da introspecção ou da busca sincera da verdade, mas sim em uma explicação-compreensão sociológica de si, a conquista da objetividade não depende da esperança irrealista de “puxar-se pelos próprios cabelos”. Isto porque as ferramentas de objetivação acumuladas ao longo de toda a história das ciências sociais são como cipós ou galhos de árvores nos quais o cientista social pode se apoiar para escapar ao pântano dos seus próprios preconceitos sociocognitivos:
“Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 1988: 5-6).
Um racionalismo historicista
No período mais maduro de sua carreira, marcado por escritos como Meditações pascalianas (2001 [1997]) e Ciência da ciência e reflexividade (2004 [2001]), Bourdieu refinou seu retrato da objetividade na investigação científica em geral e nas ciências sociais em particular. Sem abandonar seu acento sobre a auto-objetivação, o autor francês defendeu que um saber científico objetivamente válido não derivaria da empresa de um agente singular, mas constituiria, em última instância, um efeito relacional da lógica do campo científico. A análise bourdieusiana da ciência como um “campo de forças e lutas” sublinha tanto suas semelhanças quanto suas dessemelhanças em relação a outros campos, tais como o artístico e o religioso. Ao tomar o mundo da ciência como uma instância particular da “economia geral das práticas” (2009: 203), Bourdieu critica, de saída, visões da atividade científica como “desinteressada” em relação a quaisquer bens ou recompensas mundanas. Ao mesmo tempo, submetida ao filtro da teoria dos campos, a ciência se mostra como um espaço de disputa animado por formas específicas de capital, bens e interesses, precisamente aqueles que levam os cientistas a “desinteressar-se” pelas modalidades de recompensa mais comumente ligadas à ideia de conduta estratégica, como dinheiro ou poder político. À maneira de quaisquer outros campos, o campo científico é movimentado pelo conflito em torno de um tipo particular de capital simbólico, manifesto nos certificados sociais de “glória, honra, crédito, reputação, notoriedade” (Bourdieu, 2001: 202) operantes naquele domínio de atividade.
A posição de Bourdieu quanto à noção de “verdade científica” envolve, como de costume, o trilhar de uma via média – nesse caso, entre o historicismo relativista e o racionalismo transcendentalista. Contra o racionalismo transcendentalista, o sociólogo francês reconhece a especificidade e a contingência das condições sócio-históricas de possibilidade do conhecimento científico, recusando-se a projetá-lo, por assim dizer, para fora da história. Contra o historicismo relativista, Bourdieu procura mostrar que a historicidade da ciência como atividade não a impede de produzir verdades objetivamente válidas, isto é, de alcance trans-histórico. A peculiaridade da visão bourdieusiana da ciência resulta de seu esforço em compatibilizar duas ideias frequentemente retratadas como incompatíveis entre si: de um lado, o reconhecimento do caráter interessado e agonístico da atividade científica; de outro, a tese de que essa atividade gera produtos intelectuais objetivamente válidos, ou seja, irredutíveis aos interesses particulares dos agentes que os geraram. O cerne de seu “historicismo racionalista” ou, o que vem a dar no mesmo, “racionalismo historicista” (Bourdieu, 2001: 148) é a hipótese de que as regras de operação do campo científico forçam os cientistas individuais a perseguirem seus interesses privados (i.e., a acumulação de capital simbólico) apenas mediante contribuições públicas, impessoais, para uma empreitada coletiva. Desse modo, Bourdieu evita os retratos ingênuos do “desinteresse” dos cientistas sem negar, no entanto, a validade objetiva e universal dos produtos intelectuais que emergem de suas disputas autointeressadas (“vícios privados, benefícios públicos”, como reza a Fábula das Abelhas de Mandeville).
Como acontece em quaisquer outros campos, a história do campo científico é movida por uma dialética entre “dois estados do social”: “a história objetivada nas coisas…na forma de instituições” e “a história encarnada nos corpos, sob a forma desses sistemas de disposições duráveis que chamo de habitus” (1988: 40). A cristalização institucional da ciência na forma de um campo científico autônomo andou a par e passo, nesse sentido, com o cultivo das disposições subjetivas necessárias à participação nessa esfera de atividade, as quais incluem o interesse nos lucros simbólicos específicos à ciência e as competências cognitivas necessárias ao engajamento nos seus “jogos”. A illusio particular ao campo científico é, na provocativa formulação de Bourdieu, um “interesse pelo desinteresse” (Bourdieu, 2001: 246), na medida em que o investimento dos seus participantes na busca de lucros científicos faz com que eles se “desinteressem” dos bens mais frequentemente associados pelo senso comum à ideia de “ação interessada” (p.ex., dinheiro ou poder político).
O que explica a “alquimia” interna ao campo científico, graças à qual um jogo movido por agentes com interesses privados torna-se capaz de engendrar produtos intelectuais irredutíveis a quaisquer desses interesses? No cerne dessa alquimia, diz Bourdieu, está a institucionalização de regras impessoais de verificação empírica e crítica racional mútua. Animado por agentes interessados em seus lucros específicos, como o capital simbólico de prestígio científico ligado a um indivíduo ou a uma instituição, o campo da ciência distribui tais lucros apenas aos autores de contribuições intelectuais capazes de sobreviver àquelas normas impessoais de confronto de ideias e, portanto, de gerar benefícios públicos à ciência como empreitada coletiva:
“Esses universos fundados na skholè e na distância escolástica em relação à necessidade e à urgência, sobretudo econômicas, favorecem trocas sociais em que os constrangimentos sociais assumem a forma de constrangimentos lógicos (e vice-versa). Mesmo quando favoráveis ao desenvolvimento da razão, tal ocorre porque é preciso fazer valer razões, para que se possa aí fazer valer; assim como para triunfar neles, é preciso fazer triunfar neles argumentos, demonstrações ou refutações. Os “móbiles patológicos” [i.e., interesses privados na obtenção de lucros específicos] a que se refere Kant…somente podem se tornar eficazes nesses universos contanto que se ajustem às regras do diálogo metódico e da crítica generalizada” (Bourdieu, 2001: 132-133).
Segundo Bourdieu, são esses mecanismos institucionais de comunicação regulada e crítica recíproca que possibilitam o progresso do conhecimento no campo científico. A competição entre os cientistas é institucionalizada de tal modo que qualquer lucro simbólico particular só possa ser conquistado ao preço da oferta de contribuições intelectuais públicas e impessoais ao campo como tal. O caráter público e impessoal das contribuições de um agente particular é criticamente averiguado, é claro, pelos demais agentes imersos no campo, os quais são tanto pares como rivais. É esse mecanismo de universalização que “descola” os produtos intelectuais gerados por cientistas interessados nas recompensas do campo daquilo que aqueles produtos devem aos interesses particulares destes cientistas. De modo mais amplo, este é o mecanismo que permite gerar, no seio da história, “verdades irredutíveis à história” (Bourdieu, 2001: 132):
“O fato de que produtores tendam a ter como seus clientes apenas os seus competidores mais rigorosos e vigorosos,…aqueles…mais inclinados e mais capazes de dar à sua crítica força plena, é…o ponto arquimediano no qual podemos nos apoiar para dar uma caracterização científica da razão científica, para resgatar a razão científica da redução relativista e explicar como a ciência pode progredir…na direção de maior racionalidade sem ter de apelar para alguma espécie de milagre fundador” (Bourdieu, 2001: 54).
Da ciência à ética e a política
Como vimos, o principal sentido em que Bourdieu mobiliza a noção de reflexividade sociológica é epistemológico: uma sociologia reflexiva é aquela que analisa sociologicamente suas próprias condições de possibilidade, isto é, as circunstâncias sócio-históricas nas quais ela emerge e é levada a cabo como disciplina intelectual. Na visão de Bourdieu, a sociologia da sociologia não deve consistir em uma área específica do conhecimento sociológico, mas em um requisito metodológico indispensável à sua cientificidade. Ainda que a maior parte de suas referências à dimensão reflexiva da sociologia derive dessa posição epistemológica, o sociólogo francês também veio a atribuir um papel ético-político à reflexividade sociológica. Como aplicação do método científico ao estudo do mundo social, a sociologia está comprometida com a identificação dos determinismos que pesam sobre a conduta dos agentes imersos naquele mundo, o que inclui não apenas as determinações que operam “sobre” eles a partir do exterior, mas também aquelas que operam “dentro” ou através deles, graças à moldagem da sua subjetividade via socialização. Ao mostrar quão fundo o mundo social penetra na subjetividade dos indivíduos, moldando suas disposições mentais e corpóreas, a sociologia de Bourdieu adquire, é claro, um aspecto desencantador. Ao mesmo tempo, o autor enfatiza que o diagnóstico sociológico dos determinantes da conduta social não precisa desembocar em uma postura de resignação e impotência diante de tais determinantes. Ao contrário, precisamente por expor os fatores objetivos e subjetivos que moldam nossas práticas, a sociologia possibilita a conquista de uma margem de liberdade em relação a eles. O determinismo como um instrumento de liberdade? É disso que trataremos na próxima pílula, com a qual concluiremos a presente série.
Referências
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________Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
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________Homo academicus. Florianópolis, UFSC, 2011.
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________As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2000.
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
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