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Pensando a Religião através de Wittgenstein, por Talal Asad

Por Talal Asad

Tradução de Bruno Reinhardt

Tradução do artigo de Talal Asad; Thinking about Religion through Wittgenstein. Critical Times 1 December 2020; 3 (3): 403–442.

Para acessar o original, clique aqui

Sumário: Este ensaio é uma tentativa de pensar através da filosofia de Wittgenstein, a fim de esclarecer alguns aspectos do que as pessoas chamam de “religião”. O ponto central é uma exploração da polaridade entre crença e prática e uma tentativa de reenquadrar essa polaridade em termos dos processos mutuamente interligados de ser e aprender. Ele procura abordar a velha questão da persuasão, daquilo que produz a convicção e a crítica efetiva, particularmente em relação à fé em Deus e em “outro mundo”. Em seguida, tenta aplicar as idéias de Wittgenstein a desacordos fundamentais na tradição islâmica sobre a compreensão adequada de representações aparentemente contraditórias de Deus no Corão. Finalmente, aborda a questão que Wittgenstein chamou de “a ânsia de generalidade”, e assim o papel que a abstração desempenha no impulso progressivo que caracteriza nossa forma de vida secular e capitalista.

Palavras-chave: razões religiosas, tradição, prática, abstração, a forma de vida secular


        

No que se segue, tento pensar a tradição religiosa através dos escritos de Wittgenstein. Meu objetivo não é dar conta de sua visão da religião, e muito menos contribuir para a teoria antropológica. Trata-se, no sentido mais banal, de um exercício de pensamento. Volto-me para sua filosofia para me ajudar a esclarecer algumas idéias sobre o que é chamado de “religião” em inglês. Não estou, é claro, procurando construir uma definição universal dessa palavra. Meu uso da palavra “religião” neste ensaio, bem como em outros escritos, pressupõe que nem sempre é necessário fornecer uma definição para tornar seu significado compreensível, porque e na medida em que sua gramática já o faz.[1] Seguindo Wittgenstein, presumo que o sentido das palavras particulares muda juntamente com as práticas da vida comum.

            Começo com algumas observações que Wittgenstein fez sobre um velho clássico antropológico, O ramo de Ouro, de Sir James Frazer, porque elas constituem um momento crucial no desenvolvimento de suas pesquisas filosóficas posteriores sobre a dependência mútua entre linguagem e ser.[2] O que aprendi ao lê-lo não é apenas a necessidade de pensar sobre a limitação da linguagem na compreensão do mundo, mas também a dissolução da linguagem no comportamento cotidiano, onde a vida compartilhada continua de maneira habitual. Ao falar das coisas feitas de forma habitual, não quero dizer que sejam feitas mecanicamente. Quando uma pianista praticante toca, pensativa e com sentimento, uma peça de música que dominou sem ter que ler a partitura, pode-se dizer que os signos se dissolveram em suas mãos. Dizer isso não significa que a atividade não tenha significado, mas que é o resultado de uma prática que se manifestou na capacidade de agir de uma determinada maneira. A encorporação [embodiment] é um estado geral; a capacidade é uma potencialidade. E a habilidade é sempre a capacidade de fazer uma coisa específica que se aprendeu a fazer. Neste contexto, a encorporação é necessária mas não suficiente, pois no centro da alma humana está a capacidade de aprender a usar a linguagem[3].  

            Esta é, aliás, uma das principais razões pelas quais eu acho que a filosofia de Wittgenstein é importante para a antropologia, para as tentativas antropológicas de compreender formas de vida desconhecidas por meio da observação participante: aprender a fazer o que os outros fazem, atendendo ao que é dito e o que não é dito porque é tomado por garantido – em suma, tentar viver como os outros seres humanos – não requer necessariamente acesso a seus pensamentos particulares, mas à capacidade de compreender uma determinada forma de vida e torná-la (ainda que provisoriamente) nossa. Nesse sentido, a observação participante não é meramente o método distintivo de uma determinada disciplina acadêmica, mas a essência de todo aprendizado.

            É claro que Wittgenstein reconhece que os signos, e os significados das palavras, são centrais para a aprendizagem. Meu ponto é simplesmente que ele não só nos ajuda a ver que a busca de significados sob os signos (seja na forma de escrita, voz ou gesto) está equivocada porque os significados são encorporados na prática. Ele também nos faz perceber que, na medida em que uma forma de vida foi dominada pela prática – uma vez que a prática se torna parte do cotidiano, de uma forma de vida ordinária – signos explícitos podem se tornar desnecessários. Assim, Wittgenstein nos oferece uma maneira de pensar sobre o problema da persuasão como um aspecto do aprendizado ou da reaprendizagem. Ele considera a persuasão não apenas como uma prática situada, mas também, muito importante, como um processo no tempo. No entanto, isso introduz outro problema com o qual ela não deve ser confundida. Como disse David Hume há muito tempo, o costume e a conjunção habitual nos persuadem a acreditar que certas coisas devem ser verdadeiras.[4] Ele estava, é claro, falando sobre as causas da crença a fim de contrastá-la com suas razões. Mas quando Wittgenstein nos exorta a atender a práticas que são dominadas, o que emerge não é nem a origem da crença nem o que verdadeiramente a valida. O que emerge é simplesmente a formação da capacidade de viver uma forma de vida distinta. Wittgenstein não reifica a “razão”.

            A convicção religiosa me parece paradigmática em nossa compreensão secular da persuasão em geral, de nossa abertura ou resistência a sermos movidos do absurdo para a verdade através do uso da razão. Seguindo meu breve empreendimento na questão da persuasão, no que se segue, tento aplicar algumas das idéias de Wittgenstein a um argumento histórico sobre palavras religiosas no qual aparentes contradições no Corão são respondidas de forma diferente dentro da tradição discursiva islâmica. Embora eu lide esquematicamente com as opiniões de duas categorias que os Orientalistas chamaram de “racionalistas” e “tradicionalistas” respectivamente, eu o faço principalmente não como as opiniões de pessoas históricas particulares (embora eu cite uma delas em detalhe), mas como posições contrastantes para fins de argumento. Também quero enfatizar que como estou lidando aqui essencialmente com minha tradição, sou imediatamente antropólogo e informante, tentando não apenas relatar alguma coisa àqueles que possam estar interessados nela, mas também explorar e entender por mim mesmo o que aspectos da tradição islâmica podem significar. O resultado é que às vezes falo imediatamente de dentro e de fora porque as duas posições nem sempre podem ser mantidas aparte – mesmo se acharmos desejável, por uma questão de princípio, fazê-lo.

            Portanto, primeiro: Wittgenstein sobre James Frazer. Wittgenstein estava profundamente insatisfeito com a explicação da prática religiosa (ritual) fornecida por Frazer em termos de sua suposta origem. O que ele considera particularmente censurável é a extensão de Frazer dos julgamentos de verdade ou falsidade, de sentido ou absurdo, de proposições onde tais julgamentos são apropriados para situações onde não o são. É claro que existem erros e enganos em todos os aspectos da vida, mas o ponto principal de Wittgenstein é que a prática religiosa não se baseia necessariamente em uma teoria sobre o mundo; é, antes de tudo, uma forma de ser. Sua leitura crítica de Frazer marca um momento no desenvolvimento de seu questionamento sobre a forma como o mundo é imaginado essencialmente como um conjunto de coisas e a linguagem como essencialmente o meio de representá-las. Não só a linguagem não é uma coisa alinhada ou desalinhada com o mundo (“a totalidade dos fatos”[5]), mas faz parte das formas complexas e indeterminadas com que os seres humanos habitam o mundo, formando e reformando sua vida.

            A propósito, o uso do conceito de “forma de vida” por Wittgenstein não me parece necessariamente denotar “uma cultura inteira”. Refere-se a qualquer forma distinta pela qual os seres humanos falam, se comportam, pensam e interagem.[6] Entender o comportamento como forma de vida é entender como a linguagem articula, caracteriza e molda sua distintividade humana. A principal razão pela qual a tradução de conceitos de uma língua para outra é freqüentemente difícil e sempre incompleta é que a língua e a vida estão inextricavelmente ligadas entre si. É por isso que muitas vezes me refiro ao corpo que habita a linguagem como “sensível” (enfatizando os sentidos do corpo vivo) ou como “almado” [ensouled] (apontando para sua potencialidade).

            Foi Bronislaw Malinowski quem produziu um novo conceito altamente fértil nas discussões antropológicas sobre a linguagem: “alvará mítico” [mythic charter] .[7] Mitos, ele propôs, não eram relatos infantis do passado, mas narrativas que funcionavam como justificações de reivindicações sociais e instituições no presente. Esta abordagem utilitária foi posteriormente estendida por antropólogos a outras narrativas em sociedades tribais, tais como as genealogias. Ernest Gellner mais tarde polemizou que a doutrina instrumentalista de Wittgenstein (entendida geralmente como “não procure o significado, procure o uso”) não era originada nele, mas em Malinowski. Não há evidência de que Wittgenstein sabia do trabalho de Malinowski, mas o ataque de Gellner mostra como é fácil vulgarizar Wittgenstein: este último não argumenta simplesmente que o significado é necessariamente determinado pelo uso (generalizando assim a interpretação de Malinowski sobre o significado do mito), mas que as múltiplas maneiras pelas quais a linguagem é usada – pelo remetente e pelo receptor – nos obrigam a investigar as complexas relações do discurso com a vida através da idéia de “gramática”. A distinção que me parece central no trabalho de Wittgenstein é entre, por um lado, palavras, frases e discursos que são desconhecidos ou difíceis de entender, e por outro lado, aqueles que não requerem nenhuma explicação, nenhum ato de interpretação, nenhuma suspeita, porque sua gramática – como eles são inseridos na vida – foi dominada. Este último exige não apenas uma compreensão adequada do que é dito, mas uma resposta significativa ao que é dito.

            Para Wittgenstein o termo “gramática” tem um sentido muito mais amplo e flexível do que o convencional, que trata dos princípios de construção de frases (tempo, gênero, humor, sintaxe, etc.), um sentido que opõe os conceitos gramaticais e os factuais. Este exemplo de uma extensão do sentido comumente entendido de “gramática” para um sentido mais novo mostra, aliás, que para Wittgenstein a palavra, como todas as palavras, não tem um significado permanentemente fixo, que diferentes ocasiões de uso podem envolver o destaque de diferentes elementos ligados temporariamente na palavra pelo que ele chama de “semelhanças de família”, e que é, portanto, o raciocínio analógico (em oposição à lógica dedutiva) que facilita as extensões de significado – a invenção de novos significados.

            A própria palavra “significado” tem uma gramática complexa, pois aparece em diferentes domínios da vida – daí a possibilidade de confusão quando se tenta criar uma teoria do significado ou fornecer uma definição universal do mesmo. Para Wittgenstein não existe um princípio absoluto para determinar todos os significados. É a gramática que ajuda a entender as diferentes maneiras com que as palavras podem ou não fazer sentido em determinadas formas de vida. O que é importante para Wittgenstein não é simplesmente como o “significado” deve ser determinado, mas se e, em caso afirmativo, como, algo se torna inteligível e utilizável em determinadas situações.

            Assim, em oposição à sua visão anterior da linguagem no Tractatus,[8] nas Investigações Filosóficas Wittgenstein apresenta a figura de uma cidade que cresceu desigualmente com o tempo, e que não só é usada, mas também habitada, e vivenciada, de forma diferente.[9] É claro que as palavras significam, mas também fazem infinitamente mais.[10] A analogia da linguagem com a cidade enfatiza que as estruturas físicas e as palavras mudam de acordo com diferentes propósitos à medida que as circunstâncias da vida (ou da cidade em crescimento) mudam – e que, como qualquer cidade viva, a linguagem nunca é completa. A linguagem não é uma coisa única, mas um número indeterminado de práticas que surgem em tempos diferentes e que servem gradualmente para mudar os limites do possível sentido.

            Esta consciência acerca da contingência não significa, entretanto, que o conceito de essência não tenha lugar na tentativa de entender a linguagem. Pelo contrário.[11] “A essência é expressa pela gramática”, escreve Wittgenstein. “A gramática diz que tipo de objeto qualquer coisa é”.[12] E os objetos expressos pela gramática não são apenas coisas palpáveis, limitadas, mas também arranjos sociais, julgamentos morais, atitudes, sentimentos, ações, e os conceitos pelos quais são conhecidos. Conhecer a gramática é aprender a inteligibilidade das palavras dos discursos em situações mundanas. É se envolver com o mundo na e através da linguagem mesmo quando uma criança aprende a se envolver com ela e a viver nela. E com o aprendizado da criança (e do adulto) sempre incompleto da linguagem, e através de sua colocação na tradição que lhe diz não simplesmente que ela está fazendo algo errado ou certo, mas o que ela está fazendo, a criança adquire não apenas a habilidade de usar a linguagem, mas também o “eu” [self] que ela desenvolve e modifica através da vida.

            O eu não pode se fazer porque e na medida em que para construir-se a si mesmo já deve ser capaz de conceber seus próprios objetivos. É o ser preexistente (“almamento” [ensoulment]) e não o eu individual que faz o eu. Os recursos necessários para fazer o eu não são apenas aqueles disponíveis para o indivíduo ab initio, mas aqueles que se apresentam, às vezes ambiguamente, em eventos. É também por isso que o eu não é necessariamente aquele que se conhece melhor.[13] A condição prévia do eu é a potencialidade de um corpo “almado” [ensouled], a capacidade viva de agir intencionalmente na teia indefinida da vida, de ter um mundo – uma linguagem – junto com outros (nós, você, ela, ele, eles) que são eles mesmos pessoas em processo de serem feitas e refeitas.[14] Esta potencialidade permite ao eu olhar para trás em e através das múltiplas ocasiões de sua linguagem e tradição como uma história coerente. Mas o autoconhecimento não pode depender simplesmente de si mesmo: há sempre a necessidade de outro que possa rastrear os padrões de seus desejos e ações descontroladas.[15] Em nosso mundo moderno, no entanto, a essa potencialidade de auto-engano e voluntariedade destrutiva não queremos mais chamar de “a alma”. Não há nenhum objeto que possa ser chamado de alma, dizemos nós, porque sua existência não pode ser medida independentemente dos processos fisiológicos do corpo; a alma é meramente uma superstição pré-científica, ou um termo arcaico usado quando se contabiliza pessoas. No entanto, é a alma que permite à criança desenvolver um eu, aprender – não simplesmente o que existe no mundo, mas como se pode (ou não se pode) viver com humanos e animais nele.[16]

            Wittgenstein não era um crente em um sentido convencional da palavra. E embora estivesse profundamente preocupado com a questão da certeza, ele não lidou diretamente com o conceito ambíguo de probabilidade (ao mesmo tempo subjetivo e objetivo) que é tão central para nossa forma moderna de vida.[17] Lembro-me aqui de um ditado bem conhecido (hadīth) do Profeta Maomé que aceita diferentes graus de crença/fé: “Se algum de vocês vê algo repreensível, então ajudem-no a parar com sua mão, e se ele não pode fazer isso, então com sua língua, e se ele não pode fazer isso, então com seu coração – e esse é o tipo mais fraco de fé”.[18] A palavra “fé/crença” (imān), sobre a qual terei mais a dizer mais tarde, pode parecer que se refere aqui a graus de certeza sobre um mundo externo, mas na verdade ela é usada num sentido que não é nem epistemológico nem aleatório, mas sim relativo às disposições. Mesmo “o tipo mais fraco de crença” não é apresentado nem como um grau de crença que carece do que poderia ser considerado como evidência adequada; nem como uma freqüência estável no mundo humano. É descrita como fraca por causa da incapacidade do sujeito de agir para impedir algo que ele ou ela reconhece como errado. Mas neste ditado continua sendo uma forma de fé porque a confiança do crente ainda o amarra ao mundo no qual ele deve tentar viver.[19]

            Assim, quando Wittgenstein diz: “Não sou um homem religioso, mas não posso deixar de ver cada problema do ponto de vista religioso”, ele não está confessando uma crença no sentido moderno da palavra, mas referindo-se a uma disposição, uma forma de estar no mundo. Se o levarmos a sério, suas explorações gramaticais, incluindo a gramática dos jogos de linguagem religiosa e das formas religiosas de vida, podem ser vistas como relevantes tanto para sua filosofia quanto para sua própria vida ética. Embora ele esteja interessado em como os conceitos funcionam no pensamento dos filósofos analíticos, o que em grande parte o motiva não é a simples curiosidade filosófica. Sua preocupação vitalícia foi tentar expressar e viver de acordo com as exigências do que ele chamou de “valores éticos”, algo que ele considerava central para a religião, mas difícil de abordar no mundo moderno.

            É claro que Wittgenstein respeitava o conhecimento científico, embora lamentasse a influência moral que uma ideologia da ciência tinha não só sobre a filosofia, mas também sobre toda a vida moderna. Georg Henrik von Wright colocou isso de forma mais provocadora: “A metafísica que Wittgenstein está combatendo não está, portanto, enraizada na teologia, mas enraizada na ciência. Ele está combatendo a influência obscura no pensamento, não as relíquias de uma cultura morta, mas os hábitos de uma cultura viva”.[20] É claro que a “ciência” aludida por von Wright é uma construção ideológica cuja função é legitimar agendas políticas e econômicas, assim como controlar o que ele define como “religião”.[21] Pois a ciência não é uma disciplina única baseada em uma teoria distinta e um método único que a permite, e ela acima de tudo, acessar e representar a verdade: os modos de raciocínio e prática utilizados na acumulação sistemática de conhecimentos em oceanografia, climatologia, geologia, estudos de saúde – para não mencionar as “ciências sociais” – são muito diferentes daqueles empregados em astrofísica ou física subatômica.

            Além disso, porque “problemas científicos” e “desenvolvimento tecnológico” estão estreitamente interligados, a direção e as técnicas de pesquisa em cada um desses domínios são significativamente moldadas pelas exigências das instituições governamentais e corporações privadas, que avaliam o significado da pesquisa para seus próprios propósitos e as financiam ou não em conformidade. Em outras palavras, as ciências estão sujeitas a diferentes tipos de avaliação, intervenção e direção, tanto internos quanto externos. Não há uma única comunidade científica que decide sobre todos estes assuntos, embora existam diferentes projetos científicos. E em cada caso somente aqueles que dominaram as práticas do projeto científico relevante, aqueles que sabem qual modelo deve ser seguido, adquirem a autoridade para falar por ele. A visão popular do “cientista” como um buscador fundamentalmente desprendido e crítico da verdade é meramente ideologia vulgar.[22] Por isso, talvez fizesse mais sentido von Wright ter dito que Wittgenstein está lutando contra a adoração da “ciência” como a forma suprema de entender e lidar com o mundo. É exatamente o que Wittgenstein chamaria de generalização ou reificação da “teoria científica” que facilita sua função ideológica como o garantidor de uma cultura secular.

            Portanto, um aspecto crítico da filosofia de Wittgenstein é a necessidade de atender às diferenças e convergências entre ser e fazer que compõem nossas formas de vida: usar e ser usado pela linguagem (as palavras podem atingir fisicamente), expressar e atender ao movimento corporal e ao som, escolhendo o silêncio e a quietude em vez da verbalização. Mas se aceitarmos o que seu amigo e aluno Maurice O’Connor Drury descreveu como uma forte “exigência ética” em todo seu pensamento, então o que von Wright chama de sua luta contra o obscurantismo pode ser visto como uma espécie de crítica moral religiosa.[23]

Crítica, Persuasão, Obediência

            A crítica epistemológica e política da religião é essencial para a credibilidade do secularismo como ideologia. Os críticos apontam para a impossibilidade virtual de provar a existência de Deus na Era da Ciência e, consequentemente, argumentam a rejeição da autoridade religiosa em questões políticas e sociais, que tão facilmente leva à desordem e à violência. Nesta visão, a crítica responsável é vista como fundamentalmente dependente da ordem secular do Estado-nação e do direito à livre expressão (incluindo a crítica à religião) garantido a seus cidadãos, os quais, por sua vez, devem ter sensibilidades seculares. Mas aqui eu quero perguntar se a crítica é possível na filosofia de Wittgenstein e, em caso afirmativo, se ela é necessariamente de caráter secular.

            Aqueles que reclamam que a importante tarefa da crítica política e da crítica epistemológica não pode ser conciliada com uma filosofia que insiste em “deixar tudo como estava “[24] também tendem a citar a declaração de Wittgenstein, “Só podemos descrever e dizer que a vida humana é assim”.[25] Mas, na verdade, tais declarações nos lembram que todo propósito deve começar com uma descrição, e que o que fazemos, ou pensamos que fazemos, quando descrevemos nem sempre é a mesma coisa.[26]

            Se a linguagem está enraizada em formas de ser e de fazer, a descrição não é meramente necessária para criticar; ela pode ser crítica. Tomemos a gramática do conceito de “crueldade”. Geralmente implica uma intenção individual de causar sofrimento. Quando essa palavra é usada para descrever o sofrimento infligido na guerra (descrito como dano colateral) ou na paz (por exemplo, a produção industrial de carne), muitas vezes se pensa que é inapropriado porque o sofrimento em tais casos não é intencional. Entretanto, um conceito de crueldade ao qual a intenção não é essencial torna possível uma nova descrição da responsabilidade pelo sofrimento. Para mudar a compreensão da responsabilidade, pode-se ter que re-descrever uma forma de vida de outra forma que não a que geralmente nos é familiar. É claro que temos uma gramática para esta palavra que não assume intencionalidade – como quando se diz que uma doença, como o Alzheimer, é “cruel”. Este uso muda a atenção direta do perpetrador para o que sofre, e assim invoca – de forma implícita – a necessidade de julgar nossas formas de vida e nossas necessidades. Este senso de “crueldade” não depende mais da noção de um agente condenável (alguém a ser punido), mas da questão de como podemos enfrentar a dor humana e animal em nossa forma de vida.

            O objetivo da crítica na vida comum é persuadir um interlocutor (se não também para saborear seu desconforto ou dúvida) e levá-lo, em algum sentido, a se comportar de forma diferente. A crítica é intrínseca para aprender a fazer algo corretamente. Em nosso entusiasmo moderno pela crítica baseada em modelos estatísticos de conhecimento objetivo (“ciência”), às vezes tendemos a esquecer que a persuasão funciona através da linguagem ordinária – provérbios, piadas, anedotas, exortação, promessa, apelo, falsidade, intimidação, encorajamento, etc. – e assim através da força que a linguagem ordinária carrega, bem como através do apelo às banalidades da vida ordinária compartilhadas por aquele que persuade e aquele que deve ser persuadido. A linguagem ordinária é inserida nos vários motivos para persuadir e ser persuadido: o desejo de evitar danos e aborrecimentos, de ganhar vantagem, de agradar a alguém, ou simplesmente de fazer o que é certo, seja por padrões seculares ou religiosos. A crítica, portanto, se origina de uma descrição particular que, por sua vez, é enquadrada em uma tradição particular de pensamento e prática. Ela tem vários propósitos que não são necessariamente de caráter emancipatório. Mas a primeira e principal crítica é uma atividade enraizada e dirigida ao que une as pessoas a suas formas de vida, não simplesmente uma expressão de “argumento racional”.

            Alasdair MacIntyre, um filósofo provocador com cujos escritos aprendi muito ao longo dos anos – ele próprio muito influenciado por Wittgenstein – colocou a questão desta forma: “Todo raciocínio ocorre dentro do contexto de algum modo tradicional de pensamento, transcendendo através da crítica e da invenção as limitações do que até então tinha sido raciocinado naquela tradição; isto é tão verdadeiro para a física moderna quanto para a lógica medieval. Além disso, quando uma tradição está em boa ordem, ela é sempre parcialmente constituída por uma discussão sobre os bens cuja busca confere a essa tradição seu ponto e propósito particular.”[27] A única qualificação que eu faria a esta afirmação é que a própria noção de “boa ordem” pode estar sujeita a disputa – que enquanto o autocultivo ético tem por definição uma estrutura teleológica, uma tradição discursiva é ao mesmo tempo aberta e expressiva de uma orientação essencial: quando o mundo muda, a tradição fornece os meios pelos quais a “boa ordem” (não apenas nosso modo de pensar, mas também nossos modos de agir e de viver) pode ser discutida e reformulada. Em outras palavras, enquanto a aprendizagem e o domínio do comportamento têm, é claro, um ponto e uma finalidade, a “boa ordem” é um ideal. Quando se sente que as coisas em geral não são como deveriam ser, há uma sensação geral de que a “boa ordem” precisa ser restaurada como um arranjo e orientação imanente que dá sentido às práticas constituintes. Portanto, a “boa ordem” também está embutida em seu tempo, ao mesmo tempo eterno e contingente. A meu ver, uma tradição discursiva não é nem um marco definidor de identidade (em contraposição a outras tradições) nem um anseio nostálgico pelo passado; é um presente insistente, que disciplina aqueles que lhe pertencem através de uma herança (uma língua, uma atividade, um modo de ser).

            Conversa e polêmica acontecem através de tradições, mas não necessariamente levam à vitória da “tradição mais racional”. Em vez disso, elas podem levar, com o tempo, a um envolvimento mais produtivo com os recursos conceituais da própria tradição discursiva, à luz das críticas feitas por outra. A boa ordem não é apenas o que dá à tradição seu ponto e propósito (um pensamento); é o que uma tradição procura manter (uma atividade). Justamente porque e na medida em que uma forma de vida é articulada como uma tradição (modos de vida e apegos entre pessoas, que são transmitidos de uma geração para outra), ela também é um modo de habitar a incerteza e o desacordo sobre o que é “dentro” e o que é “fora”. Várias tradições – especialmente, mas não apenas aquelas agora conhecidas como “Abraâmicas” – podem compartilhar um espaço de possibilidade, relacionando-se umas com as outras de forma agonística, oportunista e de apoio mútuo. A exclusividade rígida (“ou vitória ou morte”) é o sinal do que MacIntyre chamaria de uma tradição moribunda, enquanto que uma tradição discursiva viva visa o interrogatório mútuo e o aprendizado contínuo. Portanto, de onde vem uma crítica pode ser menos significativa do que como ela se envolve com o entendimento atual – o próprio e o dos outros – porque é isso que, em grande parte, determina sua capacidade de persuasão.

            No entanto, MacIntyre insiste que existe uma base racional para a escolha entre as tradições em conflito – as transações que se confrontam “de fora”. Citando o debate de Aquinas com os seguidores do filósofo aristotélico muçulmano Ibn Rushd, ele argumenta que o Aristotelismo Tomista fornece

um ponto de vista que sofre de menos incoerências, é mais abrangente e mais engenhoso de uma determinada forma. Entre esses recursos . . está uma capacidade não apenas de identificar limitações, defeitos e erros à luz dos padrões da própria visão oposta, mas também de explicar em termos precisos e detalhados o que é a visão oposta que gera exatamente essas limitações, defeitos e erros particulares e também o que é a visão que deve privá-la dos recursos necessários para se manter de pé, superá-los e corrigi-los.[28]

            Este é um argumento atraente (não é a crença liberal de que “o melhor argumento sempre vence” parte de sua atração?), mas não posso razoavelmente afirmar que com o tempo pode ser possível superar ou explicar os defeitos aparentes voltando aos recursos de minha própria tradição? Em outras palavras, enquanto MacIntyre aponta os critérios para julgar a vulnerabilidade racional de determinadas crenças tradicionais, ele não diz quando os argumentos baseados nesses critérios se tornam decisivos. Para agarrar a força de uma crítica niveladora de toda a minha tradição “de fora”, meu ser persuadido por essa crítica requer uma mudança não apenas em minhas opiniões, mas mais importante ainda em minhas relações com aqueles que ajudam a sustentar e dar sentido à minha vida – meus parentes, amigos e vizinhos que eu valorizo e confio, assim como as gerações mortas que me proporcionaram ideais e as crianças que estou educando para o futuro. Então, quando terei tempo para consultar outros em minha tradição, especialmente aqueles que considero como autoridades amigáveis (e portanto solidárias), ou para pensar mais profundamente sobre a questão e aprender mais sobre as implicações práticas do abandono de minha forma de vida? Todas as consequências de aceitar um argumento de mudança não surgem imediatamente, mas quando esperar para ver antes de tomar uma decisão final se torna exageradamente longo? Quando minha relutância em ser convencido de um argumento contra minha tradição muda de irrazoável [unreasonable] para irracional? Wittgenstein observa,

Fundamentar, no entanto, justificar a evidência, chega a um fim; – mas o fim não é quando proposições nos surpreendem imediatamente como verdadeiras, ou seja, não é um certo tipo de visão de nossa parte; é a nossa atuação [acting], que está no fundo do jogo linguístico.

Se o verdadeiro é o que está fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro, nem ainda falso.[29]

            Em outras palavras, ao contrário da crença, a ação leva tempo para acontecer; então, se a ação está no centro do jogo de linguagem, quanto tempo leva para que a persuasão como ação falhe em acontecer?[30] Quando a Racionalidade é trazida como método, o diálogo não entra em colapso?

            Se a rendição ao que é considerado como uma posição superior ocorre imediatamente, então é discutivelmente mais próxima ao que os secularistas desprezam como “conversão religiosa” do que a uma conclusão totalmente fundamentada, porque o abraço ou rejeição de uma tradição depende essencialmente não de proposições, mas de práticas estendidas, ensinadas e apreendidas ao longo do tempo. Isso não é conseguido pela simples superioridade teórica do discurso do crítico, mas pelo sentido que ele dá à vida do ouvinte. Sob a gramática dos conceitos é uma parte necessária da avaliação crítica de argumentos particulares, mas não necessariamente (“racionalmente”) decisiva. A persuasão como minha capacidade ou vulnerabilidade a ser convertida em outra opinião – ou em outra forma de vida em um determinado momento (neste momento de minha vida e na vida de minha tradição) – pode também depender de minha disposição de me enganar a favor do crítico. Não posso, de qualquer forma, fugir da dúvida fundamental que minha crítica externa procura plantar em mim, recusando uma defesa teoricamente enquadrada e recorrendo, em vez disso, à prática que me moldou em minha tradição? Será que não posso me recusar a falar neste momento em sua defesa e, em vez disso, retomar minha vida comum? E se eu puder, por que isso é “irracional”?

            Estas preocupações, aliás, têm sérias implicações para compreender a diferença entre as restrições temporais na persuasão política e o tempo disponível para persuasão em um contexto íntimo e pessoal. O tempo necessário para determinar o que é a verdade, para avaliar a “carga emocional” das palavras usadas, pode ser estendido mais facilmente em situações íntimas do que na política eleitoral moderna.[31] É talvez por isso que é fácil para os estrategistas políticos manipularem as predisposições inconscientes daqueles que eles chamam (um pouco desdenhosamente) de “persuadíveis”.[32] Manipular as predisposições inconscientes das pessoas não é necessariamente assumir a existência do “Inconsciente” como um território da linguagem simbólica que pode ser acessado de “fora” e traduzido semiologicamente – um processo que Wittgenstein, apesar de sua admiração por Freud, criticou fortemente.[33] Mas a política agonística, como a análise, assume o desdobramento estratégico da crítica dirigida àqueles que devem ser persuadidos.

            Existe uma literatura moderna considerável que procura distinguir o criticismo [criticism], no sentido da censura, da crítica [critique], num sentido derivado de Kant. Assim, Judith Butler se refere a uma distinção entre os conceitos de criticismo e crítica da seguinte forma: “O criticismo geralmente toma um objeto, e a crítica [reformulando o sentido kantiano original] se preocupa em identificar as condições de possibilidade sob as quais um domínio de objetos aparece”.[34] A primeira pode ser vista como a prestação de um julgamento (moral) e a segunda como uma prática pela qual as suposições que tornam um objeto real, ou um argumento confiável, são reveladas. O que me interessa aqui, entretanto, não é a delimitação de dois conceitos diferentes, mas a questão de como um vocabulário complexo, com sentidos parcialmente sobrepostos (as “semelhanças de família” de Wittgenstein) e diferentes tipos de sentimentos, trabalha para persuadir – na vida como na literatura. Assim, enquanto Raymond Williams considera a crítica literária [literary criticism] (ele não usa o termo “critique”) infectada com a ideologia do “bom gosto”, e sugere que uma concepção mais construtiva da crítica seria considerá-la como uma prática e não como um julgamento, eu sou levado a responder: quando o objeto de uma crítica literária (romance, peça, épico) envolve a recontagem de conseqüências humanas particulares de julgamentos (errados) feitos no decorrer de uma vida, ela pode ajudar o leitor a identificar aspectos particulares da história e assim desenvolver sua capacidade de pensamento moral. Para um leitor atento ou membro do público de uma peça, isto não significa necessariamente seguir a provocação do crítico sobre “bom gosto”, mas pode envolver tanto julgamento quanto prática (julgar não equivale a ser um absolutista moral [judgmental]).

            Immanuel Kant procurou minar as ilusões da metafísica, argumentando sobre os limites da razão e as possibilidades epistemológicas que estes limites implicavam (“crítica”). Mas não é o princípio do Iluminismo que a “maturidade” exige que se “pense por si mesmo”, que se recuse toda autoridade, também uma instância de censura? Não é sem significado que a palavra alemã Kritik, assim como usada em todo o Kritik der reinen Vernunft, teve que ser traduzida em inglês (Critique of Pure Reason) às vezes como criticism e às vezes como critique. Será porque o tradutor pensou mais claramente do que Kant? Dificilmente. “Nossa era”, assim diz uma famosa passagem, “é em especial grau, a era da crítica, e à crítica [Kritik] tudo deve ser submetido. A religião através de sua santidade, e a lei através de sua majestade, pode procurar se isentar dela. Mas então despertam apenas suspeitas, e não podem reivindicar o respeito sincero que a razão só se conforma ao que foi capaz de sustentar o teste do exame livre e aberto”.[35] Negar o direito de se apegar a algo essencialmente porque está enraizado nos hábitos e compromissos da vida comum, em vez de submetê-lo continuamente à crítica da razão hipostatizada (“continuamente” porque uma vez pode não ser suficiente) é sugerir que o criticismo como censura e a epistemologia como prática não devem eventualmente ser mantidos separados. Eles estão juntos em uma forma de vida.

            O lema de Kant para o Iluminismo – Sapere aude! (“Atreva-se a saber!”) – é também um ideal básico que justifica a vigilância governamental moderna, tanto para fins de bem-estar social quanto de controle político. Johann Georg Hamann, contemporâneo e conhecido de Kant, traduziu este famoso slogan como Noli admirari! (“Não se maravilhe!” [Marvel not]), que ele modificou da expressão bíblica Nil admirari (“Não se maravilhe com nada”).[36] Estar pronto para criticar tudo, diz Hamann, é atacar tudo o que é valioso, tudo o que merece admiração (inclusive, pode-se acrescentar, o slogan Sapere aude!). Para Hamann, era sempre o estilo moral de engajamento que era primordial. Exigir que “à crítica tudo deve ser submetido” já é exigir que o primeiro passo para a derrota seja dado. A crítica pode ser inteiramente justificada e a crítica pode produzir resultados inestimáveis, mas pode não persuadir se o resultado for depreciativo. Isso pode não importar, é claro, se o objetivo principal for humilhar antes de forçar a verdade – o que é o objetivo, afinal, da tortura que pode ser justificada por algum princípio liberal elevado. Mas a persuasão funciona melhor quando a linguagem do poder não é usada para confrontar aquele que deve ser persuadido.

            Quando Kant estipulou o que considerava as pré-condições conceituais, tornando possível o conhecimento do que existe, ele argumentou que ir além dos limites definidos por essas precondições era entrar no domínio do incognoscível. Filósofos posteriores o criticaram por tentar desta forma colocar limites epistemológicos sobre o que se poderia pensar, porque a própria distinção entre coisas conhecíveis e não conhecíveis implicava que se saberia quando se estivesse realmente encontrando estas últimas – e, portanto (paradoxalmente) se teria algum conhecimento do que se dizia ser incognoscível. Este paradoxo sobre os limites do pensamento é retomado por Wittgenstein no prefácio do Tractatus Logico-Philosophicus, onde ele introduz a idéia (posteriormente elaborada) de que os limites do pensamento não são epistemológicos, mas gramaticais[37] – embora a palavra “gramaticais” como forma de rastrear os limites do uso linguístico significativo ainda não tenha aparecido no Tractatus. Ele argumentaria mais tarde explicitamente que é a gramática dos “jogos de linguagem” embutidos nas formas de vida que definem os limites do sentido e tornam algumas das coisas que os filósofos dizem sobre o mundo absurdas ou paradoxais.

            Embora Wittgenstein pareça sustentar que não há posição externa à linguagem para discutir o que a linguagem representa, ele não está comprometido com a visão de que o que não pode ser representado não existe. Sua principal alegação, como eu a entendo, é que não se pode articular nenhum pensamento fora da linguagem e que o termo “nonsense” se aplica às práticas lingüísticas, incluindo a linguagem da matemática.[38] (Nonsense nem sempre requer apenas ser ignorado: pode provocar mais reflexão resultando em um resultado valioso).

            Em matemática, sinais abstratos convencionais indicando procedimentos a serem realizados (por exemplo, +, ÷), e símbolos representando quantidades não especificadas (por exemplo, x, y) são parte integrante das linguagens da ciência e tecnologia para entender “o mundo natural” através da manipulação e controle – e os seres humanos como parte da natureza. Para Wittgenstein, a matemática não representa simplesmente algo sobre o mundo que os seres humanos descobriram; ela consiste em um corpo em desenvolvimento de técnicas que foram criadas e unificadas para fins humanos específicos.[39] Isso não significa, naturalmente, que ele considerava os números como meros produtos da mente. Como engenheiro treinado, ele sabia que eles eram cruciais para a resolução de problemas práticos não apenas na fabricação de máquinas, mas também na elaboração e reprodução de arranjos sociais. Mas uma consequência paradoxal bem conhecida da centralidade da matemática no conhecimento prático tem sido que enquanto a ciência clássica assume um mundo determinista, acredita-se que os seres humanos (e os estados nacionais em que vivem) estão agindo livremente. A mudança para a incerteza em desenvolvimentos relativamente recentes no pensamento científico – um conceito que recebe um caráter semelhante ao de lei através da teoria da probabilidade – ajuda a resolver este paradoxo[40], de modo que o domínio do acaso é visto como ampliando o espaço de controle humano dos mundos “social” e “natural”.

            Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein tenta mostrar como os limites do sentido são constituídos pela gramática dos conceitos, por como os conceitos (incluindo conceitos matemáticos) são realmente utilizados em uma forma de vida. Mas quando a gramática dos conceitos é traduzida como tradição discursiva – como a passagem aberta do comportamento e estilos de argumento em que a linguagem e a vida através das gerações são entrelaçadas – a temporalidade torna-se essencial para as formas como o significado é feito e desfeito, onde “dentro” e “fora” não são permanentemente fixos, porque a distinção tem a ver com o que é tomado como certo apenas dentro e por um determinado tempo.[41] É por isso que para Wittgenstein a crítica “externa” é possível. E por que se pode dizer que o próprio processo de argumentação consiste em uma série de traduções: “Você disse . . . e isso significa”, e “Não, o que eu quis dizer é . .”.

            O argumento de Wittgenstein de que os argumentos extraem sua plausibilidade de um “sistema” de declarações e atitudes que se aprendeu, e não de um axioma ou fundamento indiscutível, é freqüentemente citado, mas às vezes mal compreendido. “Todos os testes, toda confirmação e desconfirmação de uma hipótese”, escreve ele, “já ocorrem dentro de um sistema”. E este sistema não é um ponto de partida mais ou menos arbitrário e duvidoso para todos os nossos argumentos: não, ele pertence à essência do que chamamos de argumento. O sistema não é tanto o ponto de partida, mas o elemento em que os argumentos têm sua vida.”[42] Mas “sistema” (a palavra alemã que Wittgenstein emprega é a mesma) é a palavra certa aqui? Em seu sentido rígido, ela não se fundamenta confortavelmente na idéia de Wittgenstein de que o raciocínio se baseia em diferentes propósitos, sentimentos, condições de vida e significados de palavras que podem se sobrepor umas às outras e se deslocar ao longo do tempo, elementos pelos quais o ponto que estamos tentando fazer se torna persuasivo para determinados públicos em determinados momentos e lugares. Um termo que indique que as circunstâncias estão desigual e contingentemente ligadas entre si (como “teia” ou “rede”, digamos) não seria mais apropriado ao ponto que Wittgenstein está fazendo do que “sistema”?[43] Mas é claro que há um sentido importante no qual um todo espontâneo é necessário para suas partes e vice-versa. Desde que não pensemos neste arranjo como permanentemente fixo, o uso de “sistema” aqui faz sentido. (Isto nos devolve à idéia da “boa ordem” de uma tradição, discutida acima).

            A ambigüidade na linguagem ordinária, uma fonte sempre presente de criatividade lingüística, bem como a incompreensão, também minam a noção de um “sistema” permanente. Embora a ambigüidade seja geralmente entendida como incerteza sobre o significado de uma palavra, frase ou passagem original, a intenção original pode não ser necessariamente uma preocupação primária na sua avaliação. A ambigüidade pode refletir motivos contraditórios no leitor ou ouvinte e o uso que ele quer fazer do que ele lê ou ouve. Em qualquer caso, o “fazedor” [doer] raramente é a autoridade final para determinar o que fez: a linguagem através da qual ele age não é somente dele. Assim, embora tudo não possa ceder em resposta às críticas ao mesmo tempo, os limites da rede dentro da qual os argumentos acontecem mudam de acordo com os propósitos em questão. Existem “inúmeros tipos diferentes de uso do que chamamos de ‘símbolos’, ‘palavras’, ‘sentenças’. E esta multiplicidade não é algo fixo, dado de uma vez por todas; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, como podemos dizer, passam a existir, e outros se tornam obsoletos e esquecidos”.[44] Para ser plausível, um argumento deve portanto ressoar com elementos diferentes na rede, com a mesma palavra usada de forma diferente, e possivelmente ambígua, na vida comum.

            Para os secularistas, a noção de seguir uma regra religiosa transmite o sentido de um poder de comando arbitrário oposto à razão e de obediência religiosa na vida ordinária como irracional, porque impulsionada pela emoção. Mas a obediência religiosa não pode ser reconhecida como parte integrante da razão da vida ordinária? Wittgenstein argumenta que a tentação de considerar o significado de uma determinada prática como sendo “governada” por uma regra nos leva a pensar na regra como causadora em relação aos casos em que ela é “obedecida”, mas que a gramática de uma regra é mais complicada do que isso. Assim, embora o significado de uma palavra possa ser compreendido em um instante, seu uso de acordo com uma regra verbalmente declarada não pode, porque isso requer o reconhecimento de que a mesma prática seja repetida em um futuro indefinido. “Mas nós entendemos o significado da palavra quando a ouvimos ou dizemos; nós a captamos num instante, e o que captamos desta forma é certamente algo diferente do ‘uso’ que se prolonga no tempo”.[45] Na medida em que há aqui um paradoxo, ele vem primeiro da questão de como estabelecemos “o mesmo” (o raciocínio analógico é central aqui). Em segundo lugar, vem do fato de pensarmos no significado como uma coisa privada (puramente mental), e assim pensamos no significado de uma regra como imediatamente aparente para a consciência e ao mesmo tempo estendida indefinidamente para um futuro desconhecido. Mas Wittgenstein, em seguida, aponta: “obedecer a uma regra” é uma prática. E pensar que se está obedecendo a uma regra não é obedecer a uma regra. Portanto, não é possível obedecer a uma regra ‘privadamente’: caso contrário, pensar que se está obedecendo a uma regra seria a mesma coisa que obedecê-la”.[46] A questão não é que a obediência a uma regra não pode, em nenhum sentido, ser associada à mente. É que a regra e sua aplicação são uma só, que a “autoridade” de uma regra não é separável da “obediência” a ela ou da vida compartilhada que a encarna. Quando regra e aplicação são uma só, a tendência – tanto por parte dos crentes quanto dos não crentes – de explicar a autoridade “religiosa” em termos causais pode ser vista como ilusória. Mais uma vez: a persuasão de uma crítica em particular está enraizada em uma forma particular de vida.[47]

            A idéia de que o significado de uma regra declarada depende necessariamente de como ela é interpretada, que a interpretação fixa o significado da regra, está equivocada, diz Wittgenstein, porque a interpretação requer critérios próprios para como uma interpretação adequada da “interpretação” deve ser feita – e isso leva a um retrocesso infinito (isto é, por quais critérios algo deve ser interpretado? Como os próprios critérios devem ser interpretados?). Uma conseqüência desta confusão é que uma gama considerável de diferentes atos pode ser acomodada a uma determinada regra através da interpretação – e isto é uma fonte bem conhecida de desacordo e disputa em uma tradição discursiva sob pressão de mudanças. Wittgenstein contesta a afirmação de que a autoridade da regra é sua origem – que a origem é a autoridade. Nossa confusão está enraizada, diz ele, precisamente em separar “uma regra” de sua prática, reificando-a, e depois considerando a regra como o fundamento do que a prática significa:

Pode-se ver que há aqui um mal-entendido pelo simples fato de que no curso de nossa discussão damos uma interpretação atrás da outra; como se cada uma nos contentasse pelo menos por um momento, até pensarmos em mais uma posição atrás dela. O que isto diz é que existe uma maneira de entender a regra que não é uma interpretação, mas que é exibida no que chamamos de “obedecer à regra” e “ir contra ela” em casos reais.

Portanto, há uma inclinação para dizer: toda ação de acordo com a regra é uma interpretação. Mas devemos restringir o termo “interpretação” à substituição de uma expressão da regra por outra.[48]

A rigor, não se deve falar de seguir uma regra como uma seqüência de eventos (uma declaração da regra seguida de obediência a ela), mas da própria atividade que expressa a compreensão do praticante da regra.

            O relato de Wittgenstein sobre seguir regras pode ajudar a entender a gramática do conceito moderno de “ética” que ele associou à “religião”. Kant via a moralidade como legislar regras para si mesmo e, portanto, a pessoa moral como dividida em duas, ao mesmo tempo o legislador livre e aquele vinculado pela legislação.[49] Em cada caso, a “moralidade” em nossa forma moderna de vida é pensada como seguir regras, e uma prática é avaliada “moralmente” como sadia ou defeituosa de acordo com uma regra. Mas sua abordagem sugere que não se deve argumentar que “regras morais” foram agora desligadas de sua fonte religiosa, e desta forma se secularizaram, mas que a emergência de um agente de livre escolha em nossa forma moderna de vida exige a reconstrução de uma forma moderna de ética expressa na gramática de “direitos” e “obrigações”, onde ambos pertencem ao agente livre e ainda assim responsável: a ética é agora uma questão de julgar livremente para agir de acordo com regras que estão enraizadas na consciência.[50] John Caputo coloca bem a questão:

Se uma obrigação é “minha”, não é porque me pertence, mas porque eu pertenço a ela. A obrigação não é mais uma coisa que eu compreendo e quero fazer, mas algo que intervém e perturba a esfera do que eu quero. . . . Não sei a qual força oculta eu obedeço quando dou atenção a esta alteridade, por cujas forças estou preso. É a voz ou o rosto de Deus? Ou o impulso profundo de uma rede de leis embutida na “tradição”, aquilo que me é transmitido pelos tempos? Ou por alguma lei ainda mais escura do inconsciente, algum evento reprimido cego que continua se repetindo em mim? Ou até mesmo algum mecanismo de sobrevivência evolutivo destinado a manter as espécies em atividade? Eu não posso dizer.[51]

Em outras palavras, a força da obrigação aqui não está enraizada em regras, mas em uma forma de vida que obriga o que se pode ou não fazer.

Interpretar o Corão? Ou escutá-lo?

            O que acontece se os membros de uma determinada tradição religiosa vierem a ver graves contradições ou absurdos no discurso divino? Uma preocupação dos crentes é que se seguirá um colapso da fé: para não abandonar completamente a tradição é preciso encontrar maneiras de traduzir o que parece ser absurdo ou contraditório em algo que não é. Na tradição islâmica – como em algumas outras tradições – os filósofos têm tentado resolver o paradoxo bíblico através de dispositivos hermenêuticos, a fim de evitar ou superar a dúvida corrosiva.[52]

            Os estudiosos ocidentais do pensamento islâmico muitas vezes categorizam os filósofos e teólogos muçulmanos medievais que dão precedência à especulação racional sobre o significado da linguagem das escritura (como os Muʿtazilitas) como “racionalistas”, e aqueles que insistem no valor imutável de cada palavra (como os Hanbalitas) como “tradicionalistas”. Estes últimos tendem a proibir a interpretação especulativa do Corão e, portanto, são chamados de literalistas. Mas quero fazer uma pergunta que precede esta classificação: O que constitui uma atitude fiel ao Corão? Alternativamente: Como a revelação divina é reconhecida – ou duvidada?

            O Corão contém aparentes contradições em suas palavras sobre Deus: Por um lado há epítetos, físicos e psicológicos (Deus tem um rosto e mãos, e ele expressa raiva, compaixão, etc.) que são geralmente atribuídos aos seres humanos. Isto parece implicar que Deus é um ser humano magnificado com poderes ilimitados e emoções insondáveis. Por outro lado, há o famoso capítulo conhecido como al-ikhlās que rejeita a representatividade de Deus: “(1) Diga: Ele é Deus o indivisível, (2) Deus o intemporal, (3) Ele não é causa nem é causado, (4) e não há nada como Ele”.[53] A representação tem um duplo sentido: fazer um signo visível representar algo ou alguém, e falar com autoridade por outro. De acordo com os tradicionalistas, Deus não pode ser representado em nenhum sentido. E se ele não pode ser representado definitivamente, não pode haver representações contraditórias dele no discurso corânico. (Na teologia islâmica há um termo para a eliminação de todos os elementos antropomórficos da concepção de Deus: tanzīh allāh).[54]

            Os racionalistas se vêem obrigados a resolver aparentes contradições no Corão, tratando a linguagem em que aparecem como metafórica. Para os que não sabem o que fazer, como alRāzi, a oposição básica aqui é entre razão (ʿaql) e revelação (naql) – ou mais precisamente, entre a base fornecida pela razão abstrata, por um lado, e a obediência inquestionável, por outro. O uso de naql para se referir ao ato de “obediência inquestionável” em oposição ao ʿaql – “inteligência crítica” – é tipicamente parte do discurso filosófico; o uso mais comum do termo naql, entretanto, refere-se à transferência, imitação, tradição. Os seguidores da tradição respondem que como o próprio Deus declara que sua revelação é “clara de qualquer obscuridade” (al-kitāb al-mubīn), suas palavras devem ser entendidas da forma como ele as pronunciou e não da forma como alguns estudiosos pensam que ele as deve ter significado. O famoso jurista hanbalita e teólogo Ibn Taymiyya critica os defensores da teoria da metáfora corânica (majāz). A palavra majāz, ele observa, aparece bastante tarde na história do comentário corânico – primeiro utilizada por Abu ʿUbayda – e que mesmo assim não tinha um sentido figurativo (segundo o qual um significado é substituído por outro), mas simplesmente significava a forma perfeita em que o verso ʿUbayda expressa o que faz.[55] Em outras palavras, Ibn Taymiyya implica que o uso de majāz no sentido de metáfora não tem autoridade tradicional na exegese corânica, pois não aparece nos primeiros anos da prática e doutrina islâmica que começa com o Profeta e seus companheiros. Portanto, tanto “racionalistas” quanto “tradicionalistas” diferem em sua atitude em relação à metáfora. Mas o que a idéia de metáfora realmente faz?

            Apesar de muita teorização moderna sobre o assunto, a noção de metáfora nem sempre é clara. Wittgenstein tem uma visão interessante sobre o assunto:

Somente se você aprendeu a calcular no papel ou em voz alta – você pode ser levado a entender, por meio deste conceito, o que é calcular na cabeça.

O sentido secundário não é um sentido “metafórico”. Se eu digo “Para mim a vogal e é amarela”, não quero dizer: “amarelo” em um sentido metafórico, – pois não poderia expressar o que quero dizer de outra forma que não seja por meio da idéia “amarelo”.[56]

            Assim, Wittgenstein faz seu argumento de duas maneiras: primeiro, que o que foi aprendido pode se tornar a base para dar sentido à experiência subseqüente, e segundo, que se algo não pode ser expresso de outra forma que não seja a forma como é usado, então deve ser aceito como tal, e não considerado como um substituto colorido para o sentido primário. Portanto, a distinção de Wittgenstein entre os sentidos “primário” e “secundário” de uma palavra não se mapeia para “literal” e “metafórico”, mas indica um processo de aprendizagem prático. Quando uma seqüência de usos faz de um determinado conceito o meio necessário para compreender outro, pode-se dizer que o primeiro conceito é primário e o segundo, secundário.[57] Isso não é exatamente o mesmo que as alternativas normalmente descritas como “literal” e “metafórico”. Como o versículo corânico é expresso “da melhor e única maneira possível”, como acreditam todos os muçulmanos fiéis, não pode haver distinção entre significados alternativos e, portanto, nenhuma razão para o exegeta inventar significados metafóricos no lugar dos literais.[58]

            Isto se aplica, aliás, não apenas aos epítetos corânicos já mencionados, mas também às qualidades de perfeição divina conhecidas como os noventa e nove “belos nomes de Deus” (asmāʾ allāh al-husna, uma frase que aparece várias vezes no Corão),[59] nomes memorizados como parte familiar da formação islâmica tradicional. O fato de serem epítetos de Deus produzidos por Deus implica que eles têm uma força transcendente não como proposições que exigem evidências coerentes, mas como afirmações que promulgam a mudança e o desenvolvimento do caráter humano.

            A propósito, embora al-ʿadl (“justiça, honestidade, igualdade”) esteja listada entre os “belos nomes de Deus”, ela não aparece no Corão como um epíteto divino. Por acaso, isto acontece porque a gramática de “justiça” indica que o conceito pode ser usado apenas com referência ao comportamento dos seres humanos uns para com os outros, e não à relação entre criador e criação. Al-ʿadl se aplica aos humanos precisamente porque somente os humanos podem ser injustos. Do fato de que Deus não pode ser injusto, decorre que o conceito de justiça não pode ser usado gramaticalmente para suas ações da forma como é usado para descrever as ações humanas. A compaixão (rahma), ao contrário, é simplesmente a capacidade de empatia com um ser sofredor – seja ele animal ou humano – e por isso aparece muitas vezes no Corão como um epíteto divino (al- rahmān).

            Mas há mais em jogo do que uma discussão sobre como redefinir termos que parecem contraditórios. Os tradicionalistas não rejeitam o raciocínio; o que eles rejeitam é a noção de que o Corão deve ser objeto de uma faculdade abstrata chamada “razão” a fim de fazer sentido. Ibn Taymiyya coloca a questão desta forma: “Todas as comunidades de estudiosos especializados no conhecimento teórico e na escrita de tratados (ahl al-ʿulūm wa-l-maqālāt), todas as pessoas que se dedicam ao comércio e ao artesanato (ahl al-aʿmāl wa-s-sināʿāt), sabem o que precisam saber e determinam os tipos de conhecimento e prática que lhes dizem respeito sem falar em definições”.[60] Ou seja, aprender a praticar uma determinada forma de vida é anterior à oferta de definições ou redefinições; pode-se compreender e decretar o que é exigido na própria forma de vida perfeitamente bem sem recorrer a definições. O raciocínio utilizado pelos tradicionalistas consiste em uma resposta prática à revelação, tal como ouvida. Na medida em que sua forma de vida está enraizada em uma tradição divinamente guiada, eles reconhecem que se o Corão é fundamentalmente abordado por critérios gerais usados na interpretação de qualquer texto, então seu significado pode ser discutido, e conseqüentemente sua autoridade como revelação evapora.[61] Em outras palavras: Para os racionalistas, a existência de epítetos humanos atribuídos a Deus é um sinal de contradições entre os signos, um escândalo teológico que exige uma explicação teórica e a defesa da palavra de Deus. Para os tradicionalistas, os epítetos não são representações, mas um meio essencial de se relacionar com a divindade. Não apenas as paixões humanas de segurança (amāna), lealdade, integridade e fidelidade dão às relações humanas de amizade e amor sua força cotidiana, mas também fornecem os meios de apreender e construir sobre as relações com o divino, através da formação do caráter virtuoso.

            Ao contrário dos racionalistas, os tradicionalistas não são escandalizados pelo que parecem ser contradições. Eles procuram construir sobre a confiança como uma predisposição para a voz divina que ouvem na recitação.[62] Afinal, o credo islâmico (shahāda, “testemunho”) não diz: “Eu acredito em um só Deus”, mas “Eu testifico que não há outro deus além do Deus único e eu testifico que Muhammad é seu mensageiro”. Não é, em outras palavras, uma afirmação de convicção (embora seja isso também), mas uma declaração feita a uma comunidade, de absoluta fé e confiança em Deus, e conseqüentemente de um compromisso de seguir uma determinada forma de vida.

            Naturalmente, a confiança ou fé (ʾimān) em Deus é compartilhada tanto pelos racionalistas quanto pelos tradicionalistas – de fato, é importante não reificar os dois como permanentemente fixos e mutuamente exclusivos – mas o conceito tem uma valência diferente para cada lado.[63] Para os racionalistas, o que é experimentado essencialmente como contradições no significado do discurso divino pode suscitar um desejo imediato de resolvê-las por interpretação; para os tradicionalistas, os múltiplos epítetos são entendidos como meios passionais para articular e moldar a própria vida em rendição incondicional a Deus (Islām). Assim, os racionalistas vêem as contradições essencialmente como um problema intelectual, enquanto os tradicionalistas encontram incongruências aparentes como o meio díspar para uma forma de vida divinamente ordenada ao ouvir a palavra de Deus e recitá-la.[64] Na abordagem tradicionalista do discurso divino, no entanto, Deus é considerado tanto como não representativo (porque ele transcende a capacidade dos humanos de compreendê-lo) quanto como o sujeito dos atributos que ligam sua criação a ele (porque, como diz o Qurʾan: “Estamos mais próximos dele do que de sua veia jugular”).[65]

            O conhecido argumento cético sobre as qualidades que supostamente definem Deus é este: Se Deus é bondade absoluta e todo poderoso, por que Ele permite que o mal exista no mundo? Às vezes é alegado em defesa que o que os humanos reconhecem como o mal, Deus permite como um meio para seu fim e não como um fim em si mesmo, e o que ele visa é algo que os humanos não podem conhecer e, portanto, não podem rotular de “mal”. Mas não vou especular nesse sentido, assim como os muçulmanos fiéis raramente o fazem em suas vidas comuns. Em vez disso, faço um relato de uma reunião em um hospital há quase sessenta anos que ainda me lembro vividamente.

            Após meu primeiro período de trabalho de campo entre os Kababish nômades no Sudão, em meados dos anos sessenta, visitei um amigo Kabbashi que estava morrendo de diabetes em um hospital de Khartoum, após uma longa e dolorosa doença. “O que é isto, Oh Faki Abdullahi?” Eu disse, afetando um tom alegre, um pouco jocoso. Ele deitou-se calmamente em sua cama e acabou respondendo: “Esta é a vontade de Deus (hādhā irādat allāh)”. Ele estava ansioso por deixar sua filhinha de oito anos desprotegida, mas de outra forma não havia nenhum traço em sua voz ou gesto de outra coisa que não fosse aceitação. Eu o tinha ouvido usar estas palavras várias vezes de uma maneira banal quando ele estava bem. Para meu amigo, a expressão não significava um objeto de possível conhecimento ou especulação. Era simplesmente uma expressão reverencial de confiança (o que Wittgenstein chamaria de “reconhecimento” [avowal]), uma parte mundana de sua forma de vida, e de sua morte como parte integrante dela. Meu argumento é meramente que para os tradicionalistas tais contradições aparentes (Deus é Todo Misericordioso, e ainda assim estou morrendo de uma doença dolorosa e fatal) não devem ser resolvidas pelo recurso a conteúdos filosóficos – por um conjunto de palavras sendo traduzidas em outro – mas por palavras expressando uma forma particular de vida. Elas são apresentações e não representações: A questão das afirmações únicas de Deus de uma só vez por sua indescritibilidade e sua intimidade. Como “injustiça”, “maldade” não se aplica a Deus como um agente – esta é, como diria Wittgenstein, uma afirmação gramatical. Se, dizem os tradicionalistas, nem sempre entendemos as auto-descrições de Deus, é porque nunca podemos vê-lo face a face, e não podemos traduzir definitivamente suas palavras em palavras que os humanos produzem. Pois o Corão diz: “Se todo o mar fosse tinta para as palavras do meu sustentador, o mar estaria de fato esgotado antes que as palavras do meu sustentador estivessem esgotadas. E [assim seria] se lhe acrescentássemos mar sobre mar”.[66] Assim, o que os fiéis podem fazer não é tentar traduzir suas palavras para outras palavras (para interpretar as aparentes contradições), mas despertar o corpo “almado” [ensouled] para praticar uma forma de vida em submissão a ele.

            Os tradicionalistas, em resumo, não vêem o Corão como simplesmente apresentando-lhes declarações conflitantes sobre Deus, mas como Deus falando aos seres humanos em diferentes épocas humanas e diferentes maneiras humanas – caminhos impossíveis de serem compreendidos completamente na linguagem humana, mas aos quais os humanos podem, no entanto, responder. O Corão não é um texto físico (mushaf) nem uma mera vocalização (tajwīd); é Deus falando e sua audiência ouvindo. As referências a seus atributos, como a declaração da não representatividade de Deus, são exigências divinas para cultivar a consciência de Deus (taqwa)[67] , uma forma de vida para a qual a virtude da reverência e temor (rahab) de Deus é central.[68] (A reverência-temor pode ser dirigida não apenas a uma determinada pessoa, mas – como Pascal nos lembrou uma vez – na infinita vastidão do espaço, a insignificância dos seres humanos nele existentes)[69].

            O que finalmente está sendo abordado no Qurʾan é o que eu quero chamar de corpo “almado” [ensouled]. A modalidade disciplinar da linguagem, o exercício repetido de uma virtude, eleva e molda não simplesmente o corpo da adoradora, mas sua capacidade de sentir e agir como uma muçulmana fiel diante de Deus no mundo. De acordo com a visão corânica, quanto mais se exerce uma virtude, mais fácil – menos deliberadamente intencional – ela se torna. Por outro lado, quanto mais se cede ao comportamento vicioso, mais difícil é agir virtuosamente. Daí a expressão repetida na recitação corânica no sentido de que Deus “sela os corações” dos pecadores teimosos e dos “que se recusam a ouvir”. A punição pela perpetração repetida da corrupção é o tipo de pessoa que se é: incapaz de distinguir virtude de vício. A suposição de que sob esta perspectiva é que os seres humanos não podem escapar do efeito de moldagem da maldade repetitiva. O Corão define o resultado da perversidade repetida essencialmente como a incapacidade de saber o certo do errado: quando se diz àqueles que perpetram a corrupção na Terra que cessem, eles dizem que são pacificadores, mas na verdade são perpetradores de corrupção que não estão mais conscientes da diferença entre a corrupção e seu oposto.[70] Dominar o uso de uma determinada gramática, habitar uma determinada forma de vida, é ser um tipo particular de pessoa, incluindo aquele para quem a virtude é intrínseca: a competência é sua própria recompensa.[71] Uma pessoa virtuosa é aquela para quem um determinado tipo de comportamento “vem naturalmente”.

            Ibn Taymiyya cita um conhecido ditado profético (hadīth): “Comportamento modesto e senso de vergonha (al-hayāʾ)[72] é uma ramificação (shuʿba) da fé”[73] , ou seja, a fé não é simplesmente um comportamento externo ou meramente um estado de espírito; comportamento e mente são incorporados juntos na fé. A fé não é simplesmente uma conseqüência de condicionamento passivo; é o que molda e sustenta a vida humana virtuosa. “Talvez”, escreve Wittgenstein em uma de suas notas,

pode-se “convencer alguém de que Deus existe” por meio de um certo tipo de educação, moldando sua vida de tal e tal forma.

A vida pode educar alguém para a crença em Deus. E as experiências também são o que traz isso; mas não me refiro a visões e outras formas de experiência sensorial que nos mostram a “existência deste ser”, mas, por exemplo, sofrimentos de vários tipos. Estes não nos mostram Deus da forma como uma impressão sensorial nos mostra um objeto, nem dão origem a conjecturas sobre Ele. Experiências, pensamentos-vida podem nos forçar a este conceito.[74]

Um corolário disso é que a perda da fé em Deus pode ser o resultado não de argumentos racionais, mas de mudanças glaciais na forma de vida que tornam uma linguagem mais antiga cada vez mais sem sentido.

            Ibn Taymiyya atacou aqueles que sustentavam que o significado essencial da fé era o consentimento ou verificação interna (tasdīq), não a realização de ações legítimas (aʿmāl), e que, portanto, todas as referências à necessidade de ações práticas devem ser tomadas como meramente figurativas.[75] Se a crença, diz Ibn Taymiyya, fosse tomada apenas pelo que estava no coração do outro e nunca pelo que foi expresso em seu comportamento, como se poderia identificar um inimigo se tudo o que se sabia sobre ele era sua ação hostil?[76] O argumento de Ibn Taymiyya é precisamente que a crença como um estado interior nunca é suficiente em matéria de fé (ʾimān), que nem sempre é necessário saber o que estava no coração do outro para saber como agir em relação a ele. A convicção interior e o comportamento exterior são muitas vezes separáveis, mas para a fé nenhum deles é suficiente em si mesmo. (Pensar que se está seguindo uma regra não é, como disse Wittgenstein, a mesma coisa que seguir a regra). Uma conseqüência disto é que Ibn Taymiyya rejeita explicitamente a doutrina do determinismo e da predestinação, particularmente como exemplificado pelas seitas medievais conhecidas como Carmatas e Jahmitas,[77] insistindo contra eles que a forma como se vivia neste mundo era essencial para a própria fé e, portanto, para a forma como se seria julgado após a morte. Em outras palavras, aprender e praticar a tradição islâmica – incluindo como pensar, sentir, falar e comportar-se – são necessários para adquirir e fortalecer ʾimān.

            O ponto de vista dos chamados tradicionalistas, portanto, é que a reflexão abstrata e a tradução teoricamente inspirada das expressões corânicas consideradas como um problema pode ser enganosa se a tradução – a substituição de um conjunto de palavras por outro – for tomada como a forma essencial de receber o significado do original (o termo mais forte Ibn Taymiyya usa para hermenêutica é mubtadiʿ, “inovação herética”). A tradição discursiva pressupõe o domínio das gramáticas que constituem a vida comum. Embora a tradição possa envolver a criação de novos significados, os tradicionalistas não confundem os significados no Corão, mas tentam responder a sua demanda por uma forma específica de vida, à medida que a aprendem na tradição.

            A Shariʿa é uma tradição centrada na prática virtuosa nas relações sociais, não na especulação filosófica ou na teologia. Ao contrário do Corão, a Shariʿa é um produto do esforço humano e, portanto, passível de erro e com necessidade de renovação. Sua orientação básica para a linguagem corânica está enraizada em uma comunidade que compartilha e transmite práticas ligadas à linguagem. A Shariʿa não é, como as narrativas seculares normalmente a têm, uma síntese de moralidade (baseada em seguir regras divinamente autorizadas) e de lei (o Corão na verdade tem muito poucas regras e prescrições, especialmente quando comparado com o Antigo Testamento) reunidas em uma teologia primitiva; é uma tradição que procura promover e regular virtudes orientadas para Deus, que visa principalmente a compreensão (fiqh) e não a racionalidade lógica (istintāj mantiqiyyyan). Não é, a rigor, o que na modernidade se chama “moralidade” nem lei positiva.[78] As autoridades fundamentais da Shariʿa a quem os aprendizes dessa tradição olham começam com o Corão, depois passam aos dizeres e práticas do Profeta (hadīth) como transmitidos pelo consenso dos fiéis (ijmāʿ), e quando estes não fornecem uma resposta satisfatória, há um raciocínio analógico (qiyās). Eles também incluem as práticas costumeiras de uma comunidade corretamente guiada (ʿurf ou ʿāda), ou seja, costumes aceitáveis como objetos de uma conversa em andamento sobre o passado no contexto de um presente em mutação. A Shariʿa não é totalmente intramundana simplesmente porque é “lei”, e eu nem utilizaria o termo “secular” para descrever a bem conhecida categoria sharʿī de “comportamento neutro” (mubāh, ou jāʾiz), simplesmente porque se refere a comportamentos que estão fora das quatro categorias de “proibido”, “desaprovado”, “obrigatório”, “recomendado” – ou seja, as quatro categorias de comportamento governadas por sanções divinas explícitas que alguns considerariam, portanto, como “lei religiosa”.[79] Em resumo, a Shariʿa é uma tradição que procura orientar uma comunidade mundial de acordo com a palavra de Deus, e ela deve ser sempre mantida de acordo com o que MacIntyre chama de “boa ordem”.

            Repetindo, para os “tradicionalistas”, o Corão não é um texto que aborda a existência de Deus como um problema que requer uma solução: é uma exigência de um compromisso prático com uma força essencialmente indescritível, um compromisso que inclui a complexa paixão do temor-maravilha-reverência [dread awe reverence], pela qual a forma de vida de cada um é orientada e aprofundada.[80] Como a morte espera cada um de nós no final da vida (a morte é parte integrante da vida), ela ajuda os vivos a desafiar o que é essa vida e a marcar o fato de que o sujeito vivo não pode saber o que está “além”.

            Ibn Taymiyya cita um ditado profético (hadīth) que destaca que dīn [uma palavra complexa para a qual “religião” às vezes serve, mas que aqui significa “aquilo que se deve”, “obediência”, “aquilo com o qual se serve a Deus”][81] consiste em três níveis: o mais alto deles é al-ihsān [o cultivo das virtudes práticas], o meio é al-ʾimān [a fé ou a confiança como fundamento], e seguindo-o é al- islām [submissão completa a Deus].”[82] A fé por parte do sujeito inclui a vontade de focalizar a pronúncia, repetição e interiorização da linguagem corânica de uma forma que a ajude a avançar em um maior alinhamento com Deus. Expressões de reverência e terror ligam o sujeito ao objeto, mas sem fundir os dois. Foi precisamente a doutrina Sufi especulativa de que Deus e sua criação são um só (wahdat al-wujūd) que Ibn Taymiyya rejeitou forçosamente: postular a fusão de sujeito e objeto não só nega o caráter independente da força/potência que agarra a vida humana “de fora”, mas também remove conceitualmente o ideal transcendente ao qual os fiéis podem e devem aspirar, mas nunca conseguem encarnar completamente. Por outro lado, a suposição sustentada pelos críticos seculares da religião de que o adorador e adorado devem corresponder a identidades completamente separadas torna possível a afirmação de que, como Deus não existe, o “desejo de Deus” do crente não é mais que um desejo por uma pessoa inexistente, e sua reverência temível é meramente a expressão de uma emoção dirigida a nada.

            Pode-se adaptar uma analogia de outra tradição: embora não exista uma imagem de Deus no Corão (e, portanto, nenhuma iconografia no Islã), sua linguagem é icônica no sentido de não ter uma localidade fixa, nenhuma perspectiva única à qual está ligada, e ainda assim ter uma força indescritível. Não se pode ver Deus, mas se pode senti-lo. A língua não representa algo que se assemelha (como no sentido peirceano de ícone), mas apresenta possibilidades práticas.[83] Para o indivíduo fiel, Deus se revela diretamente em seu discurso. Deus não é um sujeito independente de seu discurso, mas a intenção divina de suas palavras está embutida na recepção dos fiéis.[84] Quando as práticas iniciadas por seu discurso passam a constituir uma forma fiel de vida, elas não exigem nenhuma interpretação; o que elas exigem é tempo. Não há, portanto, nenhum chamado, diz Ibn Taymiyya, para que teólogos e filósofos interpretem o que Deus realmente significa com seu discurso (traduzindo suas palavras em outros sinais), ou nos digam como ele realmente é, uma vez que somente as palavras de Deus têm a autoridade para nos dizer tais coisas.

Pensamentos Finais

            Wittgenstein, embora nascido e batizado como católico, não era “religioso”, e ainda assim tem uma compreensão mais provocadora do que pode implicar ser um crente do que muitos apologistas e críticos. Assim ele escreve,

O cristianismo não se baseia em uma verdade histórica, mas nos oferece uma narrativa (histórica) e diz: agora acredite! Mas não acredite nesta narrativa com a crença apropriada a uma narrativa histórica, mas sim: acredite, através dos tempos inóspitos e bons [through thick and thin], o que você só pode fazer como resultado de uma vida. Aqui você tem uma narrativa, não tome a mesma atitude em relação a ela que toma em relação a outras narrativas históricas! Faça um lugar bem diferente em sua vida para ela. – Não há nada de paradoxal nisso! . . . Por mais esquisito que pareça: Os relatos históricos dos Evangelhos poderiam, historicamente falando, ser comprovadamente falsos e ainda assim a crença não perderia nada com isso: não, entretanto, porque se trata de “verdades universais da razão”! Pelo contrário, porque a prova histórica (o jogo da prova histórica) é irrelevante para a crença. Esta mensagem (os Evangelhos) é apreendida pelos homens com crença (ou seja, com amor). Esta é a certeza que caracteriza tal aceitação particular como verdadeira, não algo mais. A relação de um crente com estas narrativas não é nem a relação com a verdade histórica (probabilidade) nem ainda a relação com uma teoria que consiste em “verdades da razão”. Existe tal coisa. – (Temos atitudes bem diferentes mesmo para espécies diferentes do que chamamos de ficção!).[85]

O ponto crucial que Wittgenstein faz aqui não é que as aparentes contradições e absurdos nos relatos bíblicos devam ser ignorados, nem que devam ser resolvidos através do recurso à hermenêutica, mas que exijam um modo particular de resposta, um lugar particular na vida do ouvinte/leitor. Dizer que Os Irmãos Karamazov é absurdo porque Jesus não voltou para ser julgado pelo inquisidor, e por isso não vale a pena acreditar, é usar fundamentalmente mal este romance. Esta abordagem cética não só faz da história o único registro de possíveis acontecimentos; ela faz da historiografia o árbitro final da crença razoável. Ela perde o sentimento profundo que a leitura do romance realmente produz, e a convicção da verdade do romance. É assumir (como o Tractatus em grande parte assumiu) que a verdade só pode ser alcançada através da esterilização da linguagem,[86] através de uma interpretação neutra do significado “real” do que é feito e registrado.

            Aprender a reconhecer e negociar o mundo dentro e através das múltiplas possibilidades e exigências da linguagem comum é parte do que uma tradição discursiva permite. A linguagem divina da qual os fiéis falam como parte de sua vida cotidiana é habitada e não simplesmente interpretada. Tomemos o ritual religioso: como a maioria dos comportamentos na vida cotidiana, a prática religiosa não tem significado expressivo que exija interpretação, a não ser para antropólogos, psicanalistas e paranóicos – ou seja, para todos os que não estão familiarizados com uma determinada forma de vida e, portanto, a vêem como um sistema de sinais ocultos (um sistema que o espectador toma como evidência do que é altamente significativo).[87] Mas o ato completo do ritual religioso é essencialmente, como outros comportamentos comuns, uma forma de estar no mundo.[88] Assim, quando Wittgenstein pergunta, retoricamente, “Será que tudo o que não achamos visível dá uma impressão de inconspicuidade? O que é comum faz sempre a impressão de vulgaridade”[89], ele está dizendo com efeito que a prática religiosa (incluindo o ritual) não é fundamentalmente diferente do comportamento na vida comum – porque faz parte da vida comum.

            Em si mesmo, nada nos impressiona como significativo, a menos que o consideremos. Na medida em que o comportamento é “trivial e insignificante”[90], ele irá contrastar com o comportamento que não é, mas não há uma maneira a priori de distinguir entre o comportamento secular e o comportamento que chamamos de religioso. Assim, em seu estudo da emergência moderna da oração livre no Protestantismo primitivo, Lori Branch descreve como, no desejo de purificar a religião da superstição, a idéia de “espontaneidade” passou a ser um critério central do culto genuíno: a sinceridade da intenção e o auto-monitoramento não apenas tornaram o culto “autêntico”, mas também tornaram certos estilos de pensamento e comportamento mundano em “religião”. Neste caso, a devoção religiosa que antes tinha sido coletiva, formal e expressiva foi transformada em um evento psicológico privado.[91] Esta transformação não representou o esclarecimento do que realmente significa o culto, mas – como Wittgenstein poderia ter dito – o estabelecimento de outra gramática e outra prática que ajudou a mudar o sentido tanto do “secular” quanto do “religioso”.

            Do ponto de vista wittgensteiniano, o conceito de “religião” não pode ser reduzido a uma essência universal de crenças e práticas porque: (a) esse par é comum a toda a vida humana, e (b) como parte de diferentes formas de vida, a gramática desse conceito funciona de forma diferente, expressando e guiando diferentes formas de habitar o mundo. Nosso anseio por uma definição abstrata que ele deplora é evidenciado na forma como as pessoas insistem em usar “religião” como um termo universal e abstrato – uma tendência reforçada, aliás, tanto pelas políticas dos governos seculares modernos quanto pela criação relativamente recente de departamentos universitários de estudos da religião. A questão não é, em outras palavras, se uma pessoa pode ou não ter uma definição melhor, ou mais inclusiva, de religião (ou do secular, aliás); a questão crucial é como, por quem, e para que propósito uma definição é necessária, e quais são as implicações desse conceito para determinadas formas de vida.

            Em línguas que utilizam o latim, a palavra “religião” e seus cognatos significam o que eles fazem em virtude das formas particulares de uso em diferentes contextos – e é porque estas palavras mudam de significado, conectam-se com outras palavras, e assumem novos significados, que o uso da “religião” pode dar origem a mal-entendidos e especulações vazias sobre um fenômeno putativamente universal. Quando se traduz essa palavra em outra língua, entra-se em uma rede diferente de palavras sobrepostos articulando diferentes propósitos, sensibilidades, paixões, efeitos. É claro que tanto a “religião” quanto o “secular” foram adotados e adaptados por línguas não européias de maneiras que refletem o poder histórico da Europa no mundo moderno – e, portanto, têm sido muitas vezes simplificados.[92]

            O termo “secular” era totalmente compatível com a religião no cristianismo europeu medieval, como na distinção entre o clero regular (monástico, governado por regras) e secular (livre, mundano). O verbo “secularizar” surgiu em inglês pela primeira vez em 1611 – isto é, depois do início do protestantismo – e se referia geralmente a ataques à propriedade e autoridade da Igreja Católica estabelecida pelo “braço secular” (isto é, por príncipes não eclesiásticos), o poder civil que governou na época medieval em conjunto com o poder espiritual da igreja. Desde então, “o secular” e “a secularização” não só carregam o sentido de exclusão (embora não necessariamente hostilidade) da “religião” do domínio da política; eles também foram elementos cruciais na formação do Estado moderno – e, através do Estado, da experiência da modernização.

            Assim, ao se basear no sentido mais antigo do secularismo como “mundano”, foi feita a afirmação de que o cristianismo (como algumas outras religiões) sempre esteve preocupado com os assuntos mundanos.[93] Mas o sentido moderno de secularização não é simplesmente uma questão de “tornar as coisas mundanas”. É uma questão do desmonte forçado de um determinado tipo de mundo e sua transformação simultânea em outro, freqüentemente chamado de “desencantado”: uma forma de vida e um modo de raciocínio supostamente derivados da “ciência”, um raciocínio que supostamente rejeita a idéia de um outro mundo invisível e, portanto, de uma vida após a morte.[94] Houve certamente respostas importantes às crises político-religiosas dos séculos XVI e XVII que se alimentaram do protestantismo primitivo, mas o conceito do secular e seus cognatos que agora se tornaram centrais para a modernidade não foram apenas o resultado de soluções políticas concebidas para atender a necessidades políticas críticas. Houve também, ao mesmo tempo, o crescimento da “ciência moderna”, a cristalização de uma economia capitalista e o início dos impérios coloniais dos colonizadores como forma de civilizar o mundo, o que teve profundas conseqüências para uma sociedade européia secular emergente.

            Há, portanto, um tema que Wittgenstein não investiga, embora sua filosofia abra a possibilidade: a forma como os jogos de linguagem ajudam a minar uma forma de vida. Tal minar muitas vezes resulta em conversão, às vezes deliberada e às vezes não, mas de qualquer forma raramente é o resultado da crítica [critique]. Uma maneira pela qual a conversão ocorre no mundo moderno é indiretamente: assim como a imersão em uma determinada língua impõe um determinado mundo ao usuário, as técnicas modernas tendem a promover uma mentalidade distinta, na qual o que existe deve ser quantificável, representativo, intercambiável – e logo manipulável. Gradualmente, essa pré-condição para identificar a existência torna-se um critério primário de verdade e razão.

            Já usei o termo “corpo almado”[ensouled] várias vezes e me referi a seu caráter ultrapassado, mas ele merece um comentário adicional. Um geneticista respeitado escreveu ceticamente sobre a idéia de alma como expressão da singularidade humana: “Como não se pode provar se a alma realmente existe ou não, da mesma forma, se existe uma alma, não se pode saber se ela é uma entidade separada do corpo físico ou se está em unidade com o corpo. E se ela está separada do corpo, não se pode saber se [a engenharia genética do] corpo pode prejudicar a alma ou se a alma não é afetada por nada do que acontece com o corpo”.[95] Este tipo de argumento permite avançar a engenharia genética para os humanos sem que isto afete sua humanidade: “Não podemos alterar nossa humanidade [que alguns chamam de alma] pela engenharia genética, exceto de maneiras que possam ser medidas e, portanto, potencialmente controladas. Acredito que se existem características exclusivamente humanas que estão além de nosso hardware físico, simplesmente não podemos alterá-las. O que quer que possamos fazer no caminho das mudanças será mensurável, pelo menos em teoria”[96]. O que parece decorrer desta linha de pensamento familiar é que o que não pode ser representado pela linguagem calculadora – generalizada em termos de proporções de probabilidade – não é acessível, não pode ser provado que existe, e assim para todos os efeitos e propósitos não existe.

            A ânsia de generalidade que Wittgenstein problematizou permanece particularmente forte na vida moderna. Assim, o conceito de “trabalho” é freqüentemente usado como uma categoria abstrata homogênea, embora o trabalho de um camponês medieval e de uma empregada doméstica (ou as dores de parto de uma mulher em trabalho de parto) sejam muito diferentes não apenas um do outro, mas também do trabalho abstrato que produz mercadorias – o trabalho que é, em si mesmo, a principal mercadoria por causa de seu poder produtivo. O valor de uma mercadoria é expresso pelo meio que permite sua troca por seu equivalente: o dinheiro.[97]

            As primeiras sociedades européias (e outras formas de vida não-capitalistas) não estavam tão comprometidas com a igualdade formal e a possibilidade de troca como estamos agora. A heterogeneidade do trabalho era irredutível e expressa nas diversas formas de serviço pessoal – para dominar, para governar, para Deus. Ela está em nítido contraste, como Marx apontou há muito tempo, com o paradigma de troca que agora se tornou o significante e significado não só do trabalho, mas também de tudo o mais na vida moderna que pode ser trocado como iguais. Mas a linguagem do serviço não era apenas uma relação abstrata de assimetria; ela era mantida unida por uma linguagem e uma variedade de sentimentos e habilidades. Isto não quer dizer que as relações reais fossem idílicas; é que a crueldade, o ressentimento e a desonestidade não eram sentidos e expressos como são hoje. Formulações gramaticais particulares não são apenas transgredidas em prol de maior verdade e liberdade; elas também são perdidas e, como conseqüência, tornam certas virtudes encarnadas mais difíceis, se não mesmo impossíveis de serem entretidas.

            Na medida em que as relações são agora tornadas abstratas, homogeneizadas e intercambiáveis, elas facilitam o cálculo do que de outra forma seria incomensurável. As complexas práticas computacionais (baseadas em grandes algoritmos de mineração de dados e aprendizagem de máquinas) substituíram a enumeração simples e estão agora no centro do poder estatal e corporativo moderno. E isto levou não ao esclarecimento, mas à crescente inadequação de nossa linguagem herdada para negociar o mundo que agora habitamos.

            O maior fracasso da modernidade – um que Wittgenstein sentiu[98] – foi o desejo contínuo de mover o mundo em direção a um futuro cada vez mais controlado: tal fracasso decorre da crença de que todo problema que encontramos deve ter uma solução. Menos atendido é a compaixão, entendida ao mesmo tempo como sentimento e ação, pela dor e sofrimento dos seres vivos – embora o sofrimento seja claramente uma conseqüência inevitável de nosso mundo impulsionado pelo progresso. Pode ser por isso que a reverência – a profunda consciência da limitação e dependência humana – não é mais reconhecida como uma virtude. E por que nossa rejeição dos limites humanos pode ser descrita imediatamente como “secular” (por causa da confiança em ser capaz de raciocinar e controlar tudo o que existe) e como “religiosa” (por causa da fé em ser capaz, eventualmente, de superar todos os obstáculos futuros). Pode-se objetar que os filósofos modernos têm demonstrado continuamente que respostas aparentemente decisivas não são realmente conclusivas – e isto é sem dúvida o que torna a filosofia tão sedutora.[99] Mas não é precisamente por isso que a “filosofia” tem uma reputação tão ambígua quando feita para enfrentar o prestígio do “progresso científico”?

            De qualquer forma, o fato de que a crise em que nos encontramos não é gerada simplesmente pela mudança climática, mas pelo impulso básico da civilização moderna – nossas instituições, nossos desejos, nossa política e toda a nossa forma de vida – ajuda a explicar por que a linguagem que herdamos é tão inadequada para nossa experiência mundial. Nem a razão secular nem a fé religiosa podem tornar nosso mundo seguro para sempre.[100] O resultado de nossa crise, como sempre, é improvável que seja algo tão dramático quanto o fim da humanidade; em vez disso, provavelmente teremos um mundo de incrível crueldade.


[1] A suposição de que as definições são essenciais para compreender o significado das afirmações é contestada por Wittgenstein: “Quando eu dou a descrição: ‘O chão está coberto de plantas’ – você quer dizer que eu não sei do que estou falando até que eu possa dar uma definição de uma planta? (Investigações Filosóficas [PI], §70).

[2] Wittgenstein, “Remarks on Frazer’s “Golden Bough”, escrito na década de 1930, mas publicado muito depois de sua morte.

[3] “E em certo sentido, o uso da linguagem é algo que não pode ser ensinado, ou seja, não posso usar a linguagem para ensiná-la da forma como a linguagem poderia ser usada para ensinar alguém a tocar piano – e isso, claro, é apenas outra forma de dizer: Eu não posso usar a linguagem para me colocar fora da linguagem”(Wittgenstein, Observações Filosóficas, 54).

[4] Hume, Enquiry. Hume também está atacando aqui a autoridade da experiência no sentido clássico, que foi gradualmente suplantada a partir do século XVII pela autoridade do experimento, e o conseqüente surgimento do problema filosófico da indução.

[5] Wittgenstein, Tractatus, 31.

[6] Assim Wittgenstein: “Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida”. PI, §19.

[7] “O mito cumpre na cultura primitiva uma função indispensável: expressa, aprimora e codifica a crença; salvaguarda e reforça a moral; garante a eficiência do ritual e contém regras práticas para a orientação do homem. O mito é, portanto, um ingrediente vital da civilização humana; não é um conto ocioso, mas uma força ativa trabalhada; não é uma explicação intelectual ou uma imagem artística, mas um alvará pragmático para a fé primitiva e sabedoria moral” (Malinowski, “Myth in Primitive Psychology,” em Magic, Science, and Religion, 101)

[8] Wittgenstein, Tractatus.

[9] “Nossa língua”, escreve ele em uma famosa passagem, “pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de pequenas ruas e praças, de casas antigas e novas, e de casas com adições de vários períodos; e isto rodeado por uma multidão de novos bairros com ruas retas regulares e casas uniformes” (Wittgenstein, PI, §18).

[10] O filósofo talvez mais famoso por desenvolver este ponto de maneira esclarecedora é J. L. Austin. Veja Austin, How To Do Things.

[11] “Isto encontra expressão em questões quanto à essência da linguagem, das proposições, do pensamento, pois se nós também nestas investigações estamos tentando entender a essência da linguagem – sua função, sua estrutura, – isto não é o que [perguntas tradicionais sobre a essência da linguagem] têm em vista. Pois elas vêem na essência, não algo que já está aberto para ser visto e que se torna pesquisável por um rearranjo, mas algo que está abaixo da superfície. Algo que está dentro, que vemos quando olhamos para a coisa, e que uma análise desenterra. . . . Perguntamos: ‘O que é linguagem?’, ‘O que é uma proposição?’. E a resposta a estas perguntas deve ser dada de uma vez por todas; e independentemente de qualquer experiência futura” (Wittgenstein, PI, §92).

[12] Wittgenstein, PI, §§371 e 373. E a seguinte frase é então anexada entre parênteses: “(Teologia como gramática)”.

[13] O Corão atribui esta condição à dualidade do eu: uma “alma que exorta ao mal” (an-nafs al-ammāra bi-ssūʾ, Qurʾan 12:53) e uma “alma que culpa ou critica” (bi-nnafsi-l-lawwāmati, Qurʾan 75: 2): ou seja, a tendência a enganar-se a si mesmo, por um lado, e a superar essa tendência através do aumento da consciência do certo e do errado, por outro.

[14] Em árabe, a palavra nafs engloba tanto “o eu” [self], quanto “o mesmo”, e a “a alma”.

[15] Daí o Corão declara que “somos Nós que criamos o ser humano individual (insān), e Nós sabemos o que seu eu íntimo sussurra dentro dele: pois estamos mais próximos dele do que sua veia jugular” (Qurʾan 50:16). A crença interior não é suficiente para constituir uma vida fiel, embora Deus saiba o que é a crença interior de alguém.

[16] A criança, diz Wittgenstein, não é um metafísico.

“As crianças não aprendem que existem livros, que existem poltronas, etc. etc.,- elas aprendem a ir buscar livros, sentar-se em poltronas, etc. etc. Mais tarde, é claro que surgem questões sobre a existência de coisas que existem. ‘Existe tal coisa como um unicórnio?’ e assim por diante. Mas tal pergunta só é possível porque, como regra geral, nenhuma pergunta correspondente se apresenta. Pois como se sabe quando satisfazer-se da existência de unicórnios? Como se aprendeu o método para determinar se algo existe ou não?

‘Então é preciso saber que os objetos cujos nomes se ensina a uma criança por uma deflagração ostensiva existem’ – Por que se deve saber que existem? Não é suficiente que a experiência mais tarde não mostre o contrário? Por que o jogo de linguagem deve repousar em algum tipo de conhecimento? Será que uma criança acredita que o leite existe? Ou sabe que o leite existe? Será que um gato sabe que um rato existe? (On Certainty, §§476-78; itálico acrescentado)

[17] Como Ian Hacking lembrou seus leitores, a “probabilidade” como surgiu no início do Ocidente moderno tem dois aspectos, um subjetivo e outro objetivo: “Tem a ver tanto com freqüências estáveis quanto com graus de crença. É, como diria, tanto aleatório quanto epistemológico” (Emergence, 10).

[18] Man rāʾa minkum munkaran fa-l-yaghayyirhu biyadihi faʾin lam yastatiʿ fa bilisānihi faʾin lam yastatiʿ fabiqalbihi wa dhālik adʿafu-l-ʾimān. Esta hadīth está contida em coleções canônicas tais como Sahīh al-Bukhārī, mas o ponto que eu gostaria de salientar aqui é que as crianças normalmente aprendem de sua autoridade (e a de outras ahādīth) primeiro ouvindo-a recitada por um adulto familiar e confiável – como eu fazia quando era criança – e depois tentando compreendê-la e instanciá-la praticamente.

[19] Esta linha de pensamento se reflete na bem conhecida doutrina de Abu Hanifa (fundador medieval de uma das quatro escolas sunitas da Shariʿa) para o efeito de que um muçulmano que fez a declaração de fé (shahāda) não deixa de ser um crente (muʾmin) por mais pecaminoso que seja, e portanto não pode ser denunciado como descrente (kāfir). O julgamento relativo à sinceridade da crença nesta matéria foi reservado a Deus.

[20] Citado em Bouveresse, “Wittgenstein, von Wright and the Myth of Progress”, 317. No entanto, a segunda frase da declaração de von Wright me parece problemática ao parecer sugerir que a “teologia” pertence ao passado e, portanto, não tem relevância para o presente.

[21] Veja Feyerabend’s Against Method e especialmente seu Science in a Free Society. Feyerabend conhecia Wittgenstein pessoalmente (eles eram ambos austríacos e filósofos com formação em ciência e engenharia), e diz no último livro que Wittgenstein estava preparado para assumi-lo como estudante em Cambridge, mas morreu antes que isso pudesse acontecer.

[22] Há uma longa história moderna de tentativas filosóficas para demarcar “ciência” da “não-ciência”, começando com o positivismo do Círculo de Viena até o “critério de falsificação” de Popper e o “programa” de Lakatos, assim como a distinção de Kuhn entre ciência “normal” e “de crise”, e o ataque de Feyerabend contra a idéia de um único princípio de “racionalidade” na ciência. Estes e muitos outros, incluindo especialmente Polanyi, Schafer, Shapin, Latour e Woolgar, complicaram muito a questão.

[23] Drury, “Conversations”. Ray Monk coloca as coisas desta maneira: Wittgenstein insistiu “que a possibilidade de permanecer incorrupto repousava inteiramente no eu de alguém [on one’s self]. Se a alma de alguém fosse pura (e a deslealdade a um amigo era uma coisa que a tornaria impura), então não importava o que acontecesse a alguém ‘externamente’ … nada poderia acontecer a si mesmo. Assim, não eram os assuntos externos que deveriam ser a maior preocupação, mas o próprio eu. O Desfiladeiro [ansiedade, preocupação] que impede que alguém enfrente o mundo com equanimidade é, portanto, uma questão de preocupação mais imediata do que qualquer infortúnio que possa ocorrer a alguém através das ações dos outros” (Ludwig Wittgenstein, 52-53).

[24] Wittgenstein, PI, §124.

[25] Wittgenstein, Remarks on Frazer’s “Golden Bough,” 3.

[26] “O que chamamos de ‘descrições’ são instrumentos para usos particulares. Pense em um desenho de máquina, uma seção transversal, uma elevação com medidas, que um engenheiro tem diante de si. Pensar em uma descrição como uma foto dos fatos tem algo de enganoso: tende-se a pensar apenas em quadros como os pendurados em nossas paredes: que parecem simplesmente retratar o aspecto de uma coisa, como ela é. (Estas imagens são como que ociosas.)” (Wittgenstein, PI, §291).

[27] MacIntyre, After Virtue, 206.

[28] MacIntyre, Three Rival Versions, 146.

[29] Wittgenstein, On Certainty, §§204–5.

[30] Ian Hacking reflete a visão computacional comum em nosso mundo não-determinista: “Não podemos considerar uma ação como racional, a menos que ela calcule as probabilidades. As crenças são acompanhadas de probabilidades” (“Was There a Probabilistic Revolution?”, 52). Mas será que todas as crenças são computáveis? Se verdade e falsidade (qualquer que seja seu grau de probabilidade) são fundamentadas, então – como Wittgenstein apontou – o fundamento de minha crença (toda minha tradição discursiva como forma de vida) não é em si mesmo nem verdadeiro nem falso e não pode ser computado.

[31] Tomo “carga emocional” dos Principles of Art, de R. G. Collingwood, capítulo 8, no qual ele introduz a idéia de que todo discurso tem o que ele chama de “carga emocional” – incluindo, curiosamente, uma performance fria “esterilizada” que se apresenta como desprovida de emoção, mas que na verdade é uma forma de persuadir o ouvinte a ignorar sua reivindicação emocional distinta.

[32] Veja a crítica da whistleblower Brittany Kaiser à Cambridge Analytica em seu livro, Targeted.

[33] Veja Bouveresse, Wittgenstein Reads Freud.

[34] Butler, “Sensibility.”

[35] Kant, Critique, 9.

[36] Os comentários de Johann Georg Hamann em sua carta a Christian Jacob Kraus, traduzidos em O que é o Iluminismo?, 145. A frase “Não vos maravilheis, meus irmãos, se o mundo vos odeia”. aparece em 1 João 3:13 (versão Rei Jaime).

[37] “Este livro trata dos problemas da filosofia e mostra, como eu acredito, que o método de formular estes problemas repousa na incompreensão de nossa linguagem. Todo o seu significado poderia ser resumido da seguinte maneira: O que pode ser dito pode ser dito claramente; e sobre o que não se pode falar, deve-se calar.”
“Este livro traçará, portanto, um limite para pensar, ou melhor, não para pensar, mas para a expressão dos pensamentos; pois, para traçar um limite para pensar, devemos ser capazes de pensar de ambos os lados deste limite (devemos, portanto, ser capazes de pensar o que não pode ser pensado)” (Wittgenstein, Tractatus, 27).

[38] Assim: “Enquanto a lógica expressa normas muito gerais e ubíquas de nossa língua, a aritmética regula apenas uma certa parte de nossa língua: ela fixa e desenvolve a gramática das palavras numéricas e seu uso na determinação de quantidades de vários tipos. Mas na medida em que o uso de uma língua constitui uma forma de vida . . . a matemática elementar, como parte de nossa linguagem cotidiana, constitui um aspecto de nossa forma de vida” (Schroeder, “Mathematics”, 112). Na medida em que a matemática é linguagem em uso, ela se apresenta como extremamente capaz de objetivar e tornar objetos comensuráveis em contraste com a linguagem enraizada na experiência imediata, permitindo que determinadas formas de vida sejam desmontadas em elementos que podem ser recategorizados e rearranjados através de intervenção administrativa direta.

[39] “Não foi por nada que Wittgenstein citou Spengler como uma das importantes influências em seu pensamento. O capítulo 2 de The Decline of the West é dedicado a uma pesquisa sobre as diferentes matemáticas de diferentes culturas. Para Spengler, a Matemática era vista como um fenômeno histórico e uma criação histórica – não como algo que tem sido progressivamente descoberto no curso da história humana, mas como um conjunto de técnicas e conceitos que têm sido progressivamente criados, e pode-se acrescentar, progressivamente unificados, ao longo da história humana. Isto, me parece, é um importante legado que Wittgenstein apreendeu. A matemática”, escreveu ele, “é afinal um fenômeno antropológico” (RFM 399)… . . É um sistema de normas que determinam o que é chamado de ‘calcular’, ‘inferir’, ‘trabalhar’ magnitudes e quantidades de contáveis e mensuráveis” (Hacker, “Wittgenstein’s Anthropological and Ethnological Approach“, 5).

[40] Veja, por exemplo, Prigogine, End of Certainty.

[41] “Se eu vejo o símbolo do pensamento ‘de fora’, eu fico consciente de que ele poderia ser interpretado deste modo ou de outro; se é um passo no curso de meus pensamentos, então é um lugar de parada que é natural para mim, e sua ulterior interpretabilidade não me ocupa (ou me incomoda)” (Wittgenstein, Zettel, 43e, n235).

[42] Wittgenstein, On Certainty, §105. Veja também a observação bem conhecida: “Se o verdadeiro é o que está fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro, nem ainda falso”. Se alguém nos perguntasse ‘mas isso é verdade?’poderíamos dizer ‘sim’ a ele; e se ele exigisse fundamentos, poderíamos dizer ‘eu não posso lhe dar nenhum fundamento, mas se você aprender mais, você também pensará o mesmo’. Se isso não acontecesse, isso significaria que ele não poderia, por exemplo, aprender história”. (Wittgenstein, On Certainty, §§205-6) A certeza vem do aprendizado.

[43] Assim, em Investigações Filosóficas, ele escreve: “Dizer ‘Esta combinação de palavras não faz sentido’ exclui-a da esfera da linguagem e assim limita o domínio da linguagem. Mas quando se traça um limite, pode ser por vários tipos de razões. Se eu cercar uma área com uma cerca ou uma linha ou de outra forma, o objetivo pode ser impedir que alguém entre ou saia; mas também pode fazer parte de um jogo em que os jogadores devem, digamos, pular o limite; ou pode mostrar [sic] onde termina a propriedade de um homem e começa a de outro; e assim por diante. Portanto, se eu traça um limite isso ainda não é dizer para o que o estou desenhando” (Wittgenstein, PI, §499). Ele também coloca desta forma: “Também estou inclinado a distinguir entre o essencial e o inessencial em um jogo. O jogo, pode-se dizer, tem não só regras, mas também um ponto” (Wittgenstein, PI, §564).

[44] Wittgenstein, PI, §23.

[45] Wittgenstein, PI, §138

[46] Wittgenstein, PI, §202.

[47] “Será que aquilo que chamamos de ‘obedecer a uma regra’ é algo que só seria possível para um homem fazer, e fazer apenas uma vez em sua vida?- Esta é, naturalmente, uma nota sobre a gramática da expressão “obedecer a uma regra”. Não é possível que tenha havido apenas uma ocasião em que alguém tenha obedecido a uma regra. Não é possível que tenha havido apenas uma ocasião em que um relato tenha sido feito, uma ordem dada ou entendida; e assim por diante.- Obedecer a uma regra, fazer um relato, dar uma ordem, jogar um jogo de xadrez, são costumes (usos, instituições). Compreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender uma língua significa ser mestre de uma técnica” (Wittgenstein, PI, §199).

[48] Wittgenstein, PI, §201. Martin Stone sobre a questão da interpretação na lei: “Wittgenstein não está negando que somos livres para usar a palavra ‘interpretação’ da forma que quisermos, e ainda podemos querer continuar chamando cada aplicação de uma regra de interpretação da mesma. Wittgenstein, no entanto, propõe que, por uma questão de clareza, restrinjamos a palavra “interpretação” à substituição de uma expressão lingüística por outra: se seguirmos a proposta, podemos permitir que ela seja às vezes útil, mas nem sempre necessária para interpretar uma regra para segui-la. O que está em jogo aqui não é apenas um ponto terminológico” (“Focusing the Law”, 283).

[49] A abordagem Durkheimiana para o conceito de moralidade tem sido especialmente importante no pensamento antropológico – mas leva a um relativismo inútil. Veja o interessante artigo de Joel Robbins, “Between Reproduction and Freedom”, que tenta sintetizar a abordagem Durkheimiana (enfatizando a normatividade social) com a abordagem Kantiana (focalizada na liberdade) da moralidade.

[50] Mas, como Elizabeth Anscombe apontou (em “Modern Moral Philosophy”), a “consciência” pode levar a pessoa a fazer as coisas mais vis.

[51] Caputo, Against Ethics, 8.

[52] Meus comentários nesta seção foram motivados por um trabalho apresentado em um workshop na Freie Universität em Berlim sobre “A Leitura de Wittgenstein em árabe” organizado em 11-12 de maio de 2020 por Islam Dayeh, embora ele tome uma direção diferente.

[53] Qurʾan 112. Isto não é meramente uma declaração da indescritibilidade de Deus, porque, digamos, Deus está escondido. É uma declaração de que Deus não é “algo semelhante”, que Ele não é divisível pelo tempo ou sujeito à causalidade, que Ele não é visível embora Ele possa ser sentido e abordado. Deus não é uma coisa e nem é uma abstração. Já que todas as coisas podem ser representadas e abstrações feitas delas (assim vai o raciocínio secular), um deus que não pode ser representado não existe (para todos os efeitos). Mas a não-representação de Deus não se iguala à sua ausência. Para começar, ele pode ser descrito pelo que ele não é (negativamente). Mais importante, o uso do epíteto corânico é simplesmente sua maneira de se tornar acessível ao mundo humano através da linguagem humana. (A visibilidade não é indispensável para o tratamento das relações como reais.) A proibição islâmica baseia-se na preocupação de que representar algo é uma abstração que, portanto, implica na possibilidade de abstrair e representá-lo de outra forma. A tradição judaica, que compartilha muitos conceitos e atitudes com o Islã, parece ser ambígua no que diz respeito à representatividade de Deus: “Embora a afirmação de que Deus não tem imagem seja considerada por [erudito islamo-judaico medieval] Maimonides como um princípio de fé, não é tão clara que seja aceita na Bíblia ou nas tradições rabínicas. Na Bíblia, parece que Deus realmente tem uma imagem, exceto que é proibido representar esta imagem de qualquer forma. Assim, por exemplo, quando Moisés pede para ver o rosto de Deus, Deus responde: ‘Não podeis ver meu rosto, pois o homem pode não Me ver e viver’ (Êxodo 33:20). Em outro lugar se diz de Moisés que ‘ele vê a semelhança do Senhor’ (Números 12:8), e dos anciãos de Israel que ‘viram a Deus, e comeram e beberam’ (Êxodo 24:11). Isaías viu o Senhor ‘sentado em um trono alto e sublime’ (Isaías 6:1), e Ezequiel o descreve como tendo ‘a aparência de uma forma humana’ (Ezequiel 1:26). Assim, parece que a proibição contra a representação não está associada à questão metafísica de se Deus tem uma imagem, mas aos métodos de representação de Deus no culto ritual” (Halbertal e Margalit, Idolatry, 45-46).

[54] Veja Taj al-ʿArūs.

[55] Ibn Taymiyya, Al-ʾImān, 74. Eu optei por me basear neste livro não como uma autoridade, mas porque se detém mais explícita e sistematicamente sobre a centralidade da prática para o crente.

[56] Wittgenstein, PI, p. 216

[57] Isto, pode-se notar aqui, é um modo de raciocínio analógico, um modo de inferência central para a tradição da Shariʿa, baseada no Corão. Uma analogia não só leva a uma conclusão com base na semelhança; ela também permite uma compreensão do porquê daquilo que é similar.

[58] “É difícil para nós evitarmos esta comparação: um homem faz sua aparição – um evento faz sua aparição. Como se um evento, mesmo agora, estivesse pronto diante da porta da realidade e então fizesse sua aparição na realidade – como se entrasse em uma sala.
A realidade não é uma propriedade ainda ausente no que se espera e que acede a ela quando a expectativa surge. – A realidade também não é como a luz do dia, de que as coisas precisam para adquirir cor, quando já estão lá, como se fossem incolores, no escuro” (Wittgenstein, Zettel, §§59-60). A descoberta hermenêutica da realidade num relato histórico por meio de metáforas é paralela ao dispositivo de colocar as palavras em um contexto apropriado (“adequação” dependendo da motivação do historiador); isto, naturalmente, faz da História a pedra de toque da realidade.

[59] Primeira aparição em Qurʾan 7:180.

[60] Ibn Taymiyya, Juhd al-qarīha fī tajrīd al-nasīha, 29. Assim, para Ibn Taymiyya (e para Wittgenstein) a prática da filosofia como tal não é condenada; seu mau uso é.

[61] E ainda assim, a exigência de que o Corão seja lido como “puramente religioso” sinaliza um ponto de vista cristão pós Reforma, porque e na medida em que assume que a religião tem uma essência universal (“espiritual”) que pode ser abstraída de seu domínio contingente (“temporal”) – de “política”, “direito”, “moralidade”, “família”, e assim por diante.

[62] Mohamed Amer Meziane escreveu um excelente ensaio sobre a intraduzibilidade do Corão considerado como a enunciação da voz divina intitulada “The Untranslatable Voices of the Body: Deafness, Aesthetics and the Qurʾan” (manuscrito inédito).

[63] No árabe moderno, o cognato taʾmīn significa “seguro”, “seguridade social” e afins, mas o conceito de ʾimān não tem, obviamente, nada a ver com a função moderna de calcular e agir sobre probabilidades. Ele é usado inúmeras vezes no Corão em sua forma verbal principal amuna e seus vários derivados (dos quais ʾimān é um deles) com o sentido de segurança absoluta e confiança em Deus.

[64] Em seu relato brilhante sobre a recepção dos sermões de sexta-feira (khutab, sing. khutba) no Cairo, Charles Hirschkind descreve lindamente a maneira como os muçulmanos crentes comuns respondem à recitação dos versos corânicos como palavra de Deus e não a do recitador (Ethical Soundscape). Isto pode ser visto como paralelo a uma distinção banal no teatro secular entre o ator e a pessoa que ele ou ela procura representar (cujas palavras são de autoria do dramaturgo). Mas ao contrário da audição corânica, no teatro se atende às palavras como as do personagem no palco e não as do autor. A propósito, não devo ser interpretado como implicando que não há representação dramática na tradição muçulmana – a representação dramática mais famosa de um evento histórico religioso na seita Shiʿa do Islã é a repetição ritual anual da morte de Hussein (neto do Profeta Maomé) na Batalha de Karbala (ʿashura). Meu argumento não é apenas que a distinção entre o autor do Corão e aquele que o enuncia é essencial à tradição islâmica, mas que o ato repetido de recitação é uma parte essencial da formação da fé.

[65] Qurʾan 50:16.

[66] Qurʾan 18:109. A tradução de Muhammad Asad prefere “Sustentador” ao convencional “Senhor” para rabb porque (ele explica) esta última palavra também tem o sentido de criar uma criança

[67] A usual tradução para o inglês de taqwa como “temor a Deus”, e do derivado muttaqi como “temente a Deus”, foi considerada por alguns tradutores como muito restrita e por eles interpretada como “aquele que se protege contra o mal” ou “aquele que é cuidadoso com seu dever”. O Message of the Qurʾan, de Muhammad Asad, introduz o termo “consciência de Deus” [Godconscious] (Qurʾan 2:1) com o argumento de que, embora o “temor a Deus” seja simplesmente muito negativo, as traduções alternativas não alertam para “mais de um aspecto particular do conceito de consciência de Deus” (3n2). A tradução de uma língua para outra é freqüentemente uma questão de selecionar alguns valores e omitir outros; para este tradutor “consciência de Deus” é o termo mais capacioso e, portanto, o mais satisfatório neste contexto porque implica uma relação contínua e construtiva entre a adoradora e seu Deus. Mas prefiro a construção “temor maravilha reverência”[dread awereverence] porque não acho que o medo – ou melhor, “temor” – seja simplesmente uma emoção negativa.

[68] Ver Qurʾan 16:51. Do verbo raiz rahiba deriva não apenas o senso de veneração e de monasticismo (rahbana) como essencialmente inspirado pela contínua reverência a Deus, mas também o senso de terrorismo político (irhābiyya). Que a indução do terror (ou pavor) deve ser um atributo do divino aparece pelo menos tão escandaloso para as sensibilidades liberais, como o fato de ele ter mãos e um rosto – especialmente tendo em vista os repetidos epítetos corienicos ar- rahmān, ar-rahīm (o misericordioso, o compassivo).

[69] Assim Blaise Pascal: “Quando considero o curto período de minha vida, absorvido na eternidade precedente e subseqüente, … o pequeno espaço que eu preencho e até posso ver-me engolido na imensidão infinita de espaços dos quais nada sei, e que nada sabe de mim, fico aterrorizado, e surpreso de me encontrar aqui em vez de ali, pois não há razão para estar aqui em vez de ali, por que agora em vez de então”. Pensées, no.102, 26.Pascal foi uma figura importante no surgimento precoce da teoria da probabilidade. Ele é famoso por seu argumento pela crença na existência de Deus – isto é, por um modo secular de raciocínio não baseado nem no temor-maravilha-reverência [dread awereverence] nem na confiança, mas na probabilidade. “Sua famosa correspondência com Fermat”, observa Hacking, “discute o problema da divisão, uma questão sobre dividir as apostas em um jogo de azar que foi interrompido”. O problema é de natureza inteiramente aleatória.Sua decisão/argumento teórico para acreditar na existência de Deus não é. Não importa se Deus existe ou não, mas ainda é uma questão de crença e ação razoável à qual o novo raciocínio provável pode ser aplicado” (Hacking, Emergence of Probability, 12).

[70] Qurʾan 2:11–12: wa idhā qīla lahum lā tufsidū fi-l-ard qālū innamā nahnu muslihūn, alā innahum hum al-mufsidūn wa lākin lā yashʿurūn

[71] Esta visão é encontrada também em concepções antigas da alma. “Em Theaetatus”, escreve Iris Murdoch, “nos é dito que a pena pela maldade é simplesmente ser o tipo de pessoa que se é” (Fire and the Sun, 39).

[72] A palavra hayāʾ inclui o sentido de vergonha – como na reprovação comum, ya qalīl al-hayāʾ! (literalmente “Oh você de pouca vergonha!”) – mas soa, quando normalmente falado, como hayāh (“vida”). Ibn alQayyim, o jurista e estudante medieval de Ibn Taymiyya, sugeriu que o primeiro era derivado do segundo “porque aquele que está sem hayāʾ [humildade/ vergonha/modéstia] está morto neste mundo e miserável no próximo”. Ibn alQayyim alJawziyya, Ad-dāʿi wa-d-dawāʾ, 168-70.Ibn alQayyim quer, naturalmente, esboçar conexões conceituais (dentro do que Wittgenstein poderia dizer que é um conceito familiar) e não uma etimologia de hayāh, “vida”. Meus agradecimentos a Islam Dayeh por dirigir minha atenção a Ibn alQayyim.

[73] Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 13.

[74] Wittgenstein, Culture and Value, 85–86.

[75] Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 73.

[76] Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 169–70.

[77] Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 109, 120.

[78] O monasticismo cristão e budista fornecem exemplos famosos da ética da virtude, mas eles não são os únicos tipos de “obediência à regra” religiosa; para os fiéis muçulmanos, a vida comum também é um espaço para seguir as regras através da Shariʿa – em um estado islâmico ou em um estado declaradamente secular, também pode funcionar como “lei”. Para um relato interessante sobre o sistema de funcionamento social dos tribunais da Shariʿa na Índia secular (embora não reconhecidos formalmente nem pelo estado colonial nem por seu sucessor nacionalista), ver Moosa, “Shariʿa Governance”.

[79] Discuti estas categorias com certa profundidade em um artigo sobre um jurista egípcio reformador logo do início do século XX. Meu argumento ali foi que a reforma da Shariʿa que depende de submetê-la à autoridade superior do Estado moderno (isto é, assimilá-la à lei positiva) resulta em secularização. Ver Asad, “Law, Ethics, and Religion.”

[80] Alguns orientalistas distinguem entre duas abordagens ao texto corânico: por um lado, tentando entender o significado de sua linguagem (exegese), e por outro, respondendo a ela como uma experiência estética (retórica), em outras palavras, como interpretativa versus experiencial. Embora eu não argumentaria que desfrutar do Corão como um texto estético secular é impossível, o que isto deixa de fora de forma crucial é o cultivo (formação) da vida para o qual o texto é essencial precisamente porque eventualmente se torna absorvido pela sensibilidade corporal em uma atitude de completa submissão a Deus.

[81] Para um relato muito mais completo das muitas versões possíveis em inglês de dīn, veja-se o Arabic-English Lexicon, de Lane.

[82] Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 7.

[83] Rowan Williams escreve: “O ícone tradicional do mundo cristão oriental nunca teve o objetivo de ser uma reprodução das realidades que você vê ao seu redor; não é nem mesmo para mostrar como essas realidades jamais serão. . . . O objetivo do ícone é nos dar uma janela para um quadro de referência Outro que é, ao mesmo tempo, a estrutura que dará sentido definitivo ao mundo que habitamos. Às vezes é descrito como um canal para as ‘energias’ desse outro quadro de referência a ser transmitido ao espectador [e ouvinte]” (Lost Icons, 2).

[84] “Você não pode ouvir Deus falar com outra pessoa, você só pode ouvi-lo se você estiver sendo endereçado” (Wittgenstein, Zettel, 124e, n717). Quando relato que outra pessoa “afirma” ouvir Deus, não estou relatando um simples fato, mas um fato imbuído de um valor distanciador – uma expressão de agnosticismo se não de ceticismo.

[85] Wittgenstein, Culture and Value, 32. O substantivo alemão der Glaube, traduzido aqui para o inglês como “belief“, tem praticamente o mesmo alcance de significados que este último: “fé, confiança, dependência, assim como crença”. Como o Oxford English Dictionary observa, tanto o Glaube alemão quanto o belief inglês têm uma etimologia compartilhada que os conecta ao amor.

[86] Collingwood escreve: “O hábito de ‘esterilizar’ a sensação ignorando sua carga emocional à parte não é igualmente prevalecente entre todos os tipos e condições dos homens. Parece ser especialmente característico das pessoas adultas e ‘educadas’ no que é chamado de civilização moderna européia” (Principles of Art, 162).

[87] Veja Trotter, Paranoid Modernism.

[88] A oração formal que consiste em movimentos e palavras prescritas (conhecida como salāt) é distinguida da súplica final (conhecida como duʿā).

[89] Wittgenstein, PI, §600.

[90] Wittgenstein, Remarks on Frazer’s “Golden Bough,” 3.

[91] Branch, Rituals.

[92] Para um argumento erudito e persuasivo de que o judaísmo como “religião” foi uma invenção cristã, ver Boyarin, Judaism.

[93] Veja, por exemplo, Casanova, “Secularization Revisited,” 19–20.

[94] Em seu estudo sobre o movimento criônico que chama de “imortalista”, Abou Farman levou a antropologia da ciência a uma nova e mais ampla direção (On Not Dying). Para os ateus, a morte é vista como o fim do sujeito humano, mas para os crentes religiosos, a morte é o fim apenas da vida terrena, uma vez que há sempre uma vida após a morte em outro mundo. A ambição dos imortalistas, entretanto, é abolir a morte como um fato intrínseco da própria vida, por meio da tecnociência.

[95] Anderson, “Genetic Engineering,” 758

[96] Anderson, “Genetic Engineering,” 759.

[97] “Se dinheiro”, Marx escreveu em um famoso comentário sobre uma famosa passagem do Timão de Atenas, de Shakespeare, ” é o vínculo que me une à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e ao homem, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? Ele não pode criar e dissolver todos os vínculos? Não é, portanto, o agente universal do divórcio?” (Economic and Philosophical Manuscripts, 139). O dinheiro, concluiu ele, é de imediato o agente universal da conexão social bem como da separação entre os seres humanos na sociedade burguesa.

[98] Por exemplo, no prefácio a uma coleção póstuma: “Este livro é escrito para homens em simpatia com seu espírito. Este espírito é diferente daquele que informa a vasta corrente da civilização européia e americana em que todos nós nos encontramos. Esta última se expressa em um movimento para a frente, na construção de estruturas cada vez maiores e mais complicadas; o outro se esforça em busca de clareza e perspicuidade em qualquer estrutura” (Wittgenstein, Philosophical Observations, 7).

[99] Veja a defesa sutil e espirituosa da filosofia contra a afirmação de que sua inconclusividade é prova de sua inutilidade em Rothfeld, “Art of Not Concluding”.


TALAL ASAD é um antropólogo que nasceu na Arábia Saudita, passou sua infância na Índia e no Paquistão, e foi educado na Grã-Bretanha. Ele ensinou em vários países do mundo árabe, assim como na Grã-Bretanha e, mais recentemente, nos Estados Unidos. Seu principal interesse intelectual é a religião e o secularismo.


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Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. London: Routledge and Kegan Paul, 1922.

Wittgenstein, Ludwig. Zettel. Edited by G. E. M. Anscombe and G. H. von Wright and translated by G. E. M. Anscombe. Berkeley: University of California Press, 1967.


Notas

1) A suposição de que as definições são essenciais para compreender o significado das afirmações é contestada por Wittgenstein: “Quando eu dou a descrição: ‘O chão está coberto de plantas’ – você quer dizer que eu não sei do que estou falando até que eu possa dar uma definição de uma planta? (Investigações Filosóficas [PI], §70).

2) Wittgenstein, “Comentários sobre o Ramo de Ouro de Frazer”, escrito na década de 1930, mas publicado muito depois de sua morte.

3) “E em certo sentido, o uso da linguagem é algo que não pode ser ensinado, ou seja, não posso usar a linguagem para ensiná-la da forma como a linguagem poderia ser usada para ensinar alguém a tocar piano – e isso, claro, é apenas outra forma de dizer: Eu não posso usar a linguagem para me colocar fora da linguagem”(Wittgenstein, Observações Filosóficas, 54).

4) Hume, Enquiry. Hume também está atacando aqui a autoridade da experiência no sentido clássico que foi gradualmente suplantada a partir do século XVII pela do experimento, e o conseqüente surgimento do problema filosófico da indução.

5) Wittgenstein, Tractatus, 31.

6) Assim Wittgenstein: “Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida”. PI, §19.

7) “O mito cumpre na cultura primitiva uma função indispensável: expressa, aprimora e codifica a crença; salvaguarda e reforça a moral; garante a eficiência do ritual e contém regras práticas para a orientação do homem. O mito é, portanto, um ingrediente vital da civilização humana; não é um conto ocioso, mas uma força ativa trabalhada; não é uma explicação intelectual ou uma imagem artística, mas uma alvará pragmático para a fé primitiva e sabedoria moral” (Malinowski, “Mito em Psicologia Primitiva”, em Magia, Ciência e Religião, 101)

8) Wittgenstein, Tractatus.

9) “Nossa língua”, escreve ele em uma famosa passagem, “pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de pequenas ruas e praças, de casas antigas e novas, e de casas com adições de vários períodos; e isto rodeado por uma multidão de novos bairros com ruas retas regulares e casas uniformes” (Wittgenstein, PI, §18).

10) O filósofo talvez mais famoso por desenvolver este ponto de maneira esclarecedora é J. L. Austin. Veja Austin, How To Do Things.

11) “Isto encontra expressão em questões quanto à essência da linguagem, das proposições, do pensamento, pois se nós também nestas investigações estamos tentando entender a essência da linguagem – sua função, sua estrutura, – isto não é o que [perguntas tradicionais sobre a essência da linguagem] tem em vista. Pois eles vêem na essência, não algo que já está aberto para ser visto e que se torna pesquisável por um rearranjo, mas algo que está abaixo da superfície. Algo que está dentro, que vemos quando olhamos para a coisa, e que uma análise desenterra. . . . Perguntamos: “O que é linguagem?”, “O que é uma proposição?”. E a resposta a estas perguntas deve ser dada de uma vez por todas; e independentemente de qualquer experiência futura” (Wittgenstein, PI, §92)

12) Wittgenstein, PI, §§371 e 373. E a seguinte frase é então anexada entre parênteses: “(Teologia como gramática)”.

13) O Qurʾan atribui esta condição à dualidade do eu: uma “alma que exorta ao mal” (an-nafs al-ammāra bi-ssūʾ, Qurʾan 12:53) e uma “alma que culpa ou critica” (bi-nnafsi-l-lawwāmati, Qurʾan 75: 2): ou seja, a tendência a enganar-se a si mesmo, por um lado, e a superar essa tendência através do aumento da consciência do certo e do errado, por outro.

14) Em árabe, a palavra nafs engloba tanto “o eu” [self], quanto “o mesmo”, e a “a alma”.

15) Daí o Qurʾan declara que “somos Nós que criamos o ser humano individual (insān), e Nós sabemos o que seu eu íntimo sussurra dentro dele: pois estamos mais próximos dele do que sua veia jugular” (Qurʾan 50:16). A crença interior não é suficiente para constituir uma vida fiel, embora Deus saiba o que é a crença interior de alguém.

16) A criança, diz Wittgenstein, não é um metafísico.

“As crianças não aprendem que existem livros, que existem poltronas, etc. etc.,- elas aprendem a ir buscar livros, sentar-se em poltronas, etc. etc.

Mais tarde, é claro que surgem questões sobre a existência de coisas que existem. Existe tal coisa como um unicórnio?’ e assim por diante. Mas tal pergunta só é possível porque, como regra geral, nenhuma pergunta correspondente se apresenta. Pois como se sabe como se pode satisfazer-se da existência de unicórnios? Como se aprendeu o método para determinar se algo existe ou não? ‘Então é preciso saber que os objetos cujos nomes se ensina a uma criança por uma deflagração ostensiva existem’ – Por que se deve saber que existem? Não é suficiente que a experiência mais tarde não mostre o contrário?

Por que o jogo de linguagem deve repousar em algum tipo de conhecimento? Será que uma criança acredita que o leite existe? Ou sabe que o leite existe? Será que um gato sabe que um rato existe? (Em Certainty, §§476-78; itálico acrescentado)

17) Como Ian Hacking lembrou aos leitores, a “probabilidade” como surgiu no início do Ocidente moderno tem dois aspectos, um subjetivo e outro objetivo: “Tem a ver tanto com freqüências estáveis quanto com graus de crença. É, como diria, tanto aleatório quanto epistemológico” (Emergence, 10).

18) Man rāʾa minkum munkaran fa-l-yaghayyirhu biyadihi faʾin lam yastatiʿ fa bilisānihi faʾin lam yastatiʿ fabiqalbihi wa dhālik adʿafu-l-ʾimān. Esta hadīth está contida em coleções canônicas tais como Sahīh al-Bukhārī, mas o ponto que eu gostaria de salientar aqui é que as crianças normalmente aprendem de sua autoridade (e a de outras ahādīth) primeiro ouvindo-a recitada por um adulto familiar e confiável – como eu fazia quando era criança – e depois tentando compreendê-la e instanciá-la praticamente.

19) Esta linha de pensamento se reflete na bem conhecida doutrina de Abu Hanifa (fundador medieval de uma das quatro escolas sunitas da Shariʿa) para o efeito de que um muçulmano que fez a declaração de fé (shahāda) não deixa de ser um crente (muʾmin) por mais pecaminoso que seja, e portanto não pode ser denunciado como descrente (kāfir). O julgamento relativo à sinceridade da crença nesta matéria foi reservado a Deus.

20) Citado em Bouveresse, “Wittgenstein, von Wright and the Myth of Progress”, 317. No entanto, a segunda frase da declaração de von Wright me parece problemática ao parecer sugerir que a “teologia” pertence ao passado e, portanto, não tem relevância para o presente

21) Veja Feyerabend’s Against Method e especialmente sua Ciência em uma Sociedade Livre. Feyerabend conhecia Wittgenstein pessoalmente (eles eram ambos austríacos e filósofos com formação em ciência e engenharia), e diz no último livro que Wittgenstein estava preparado para assumi-lo como estudante em Cambridge, mas morreu antes que isso pudesse acontecer.

22) Há uma longa história moderna de tentativas filosóficas para demarcar “ciência” da “não-ciência”, começando com o positivismo do Círculo de Viena até o “critério de falsificação” de Popper e o “programa” de Lakatos, assim como a distinção de Kuhn entre ciência “normal” e “de crise”, e o ataque de Feyerabend contra a idéia de um único princípio de “racionalidade” na ciência. Estes e muitos outros, incluindo especialmente Polanyi, Schafer, Shapin, Latour e Woolgar, complicaram muito a questão.

23) Drury, “Conversations”. Ray Monk coloca as coisas desta maneira: Wittgenstein insistiu “que a possibilidade de permanecer incorrupto repousava inteiramente no eu de alguém [on one’s self]. Se a alma de alguém fosse pura (e a deslealdade a um amigo era uma coisa que a tornaria impura), então não importava o que acontecesse a alguém “externamente” … nada poderia acontecer a si mesmo. Assim, não eram os assuntos externos que deveriam ser a maior preocupação, mas o próprio eu. O Desfiladeiro [ansiedade, preocupação] que impede que alguém enfrente o mundo com equanimidade é, portanto, uma questão de preocupação mais imediata do que qualquer infortúnio que possa ocorrer a alguém através das ações dos outros” (Ludwig Wittgenstein, 52-53).

24) Wittgenstein, PI, §124.

25) Wittgenstein, Remarks on Frazer’s “Golden Bough,” 3.

26) “O que chamamos de ‘descrições’ são instrumentos para usos particulares. Pense em um desenho de máquina, uma seção transversal, uma elevação com medidas, que um engenheiro tem diante de si. Pensar em uma descrição como uma foto dos fatos tem algo de enganoso: tende-se a pensar apenas em quadros como os pendurados em nossas paredes: que parecem simplesmente retratar o aspecto de uma coisa, como ela é. (Estas imagens são como que ociosas.)” (Wittgenstein, PI, §291).

27) MacIntyre, After Virtue, 206.

28) MacIntyre, Three Rival Versions, 146.

29) Wittgenstein, On Certainty, §§204–5.

30) Ian Hacking reflete a visão computacional comum em nosso mundo não-determinista: “Não podemos considerar uma ação como racional, a menos que ela calcule as probabilidades. As crenças são acompanhadas de probabilidades” (“Was There a Probabilistic Revolution?”, 52). Mas será que todas as crenças são computáveis? Se verdade e falsidade (qualquer que seja seu grau de probabilidade) são fundamentadas, então – como Wittgenstein apontou – o fundamento de minha crença (toda minha tradição discursiva como forma de vida) não é em si mesmo nem verdadeiro nem falso e não pode ser computado.

31) Tomo “carga emocional” dos Princípios da Arte, de R. G. Collingwood, capítulo 8, no qual ele introduz a idéia de que todo discurso tem o que ele chama de “carga emocional” – incluindo, curiosamente, uma performance fria “esterilizada” que se apresenta como desprovida de emoção, mas que na verdade é uma forma de persuadir o ouvinte a ignorar sua reivindicação emocional distinta

32) Veja a crítica da whistleblower Brittany Kaiser à Cambridge Analytica em seu livro, Targeted.

33) Veja Bouveresse, Wittgenstein Reads Freud.

34) Butler, “Sensibility.”

35) Kant, Critique, 9.

36) Os comentários de Johann Georg Hamann em sua carta a Christian Jacob Kraus, traduzidos em O que é o Iluminismo?, 145. A frase “Não vos maravilheis, meus irmãos, se o mundo vos odeia”. aparece em 1 João 3:13 (versão King James).

37) “O livro trata dos problemas da filosofia e mostra, como eu acredito, que o método de formular estes problemas repousa na incompreensão de nossa linguagem. Todo o seu significado poderia ser resumido da seguinte maneira: O que pode ser dito pode ser dito claramente; e do que não se pode falar, deve-se ficar em silêncio.”

38) “O livro traçará, portanto, um limite para pensar, ou melhor, não para pensar, mas para a expressão dos pensamentos; pois, para traçar um limite para pensar, devemos ser capazes de pensar de ambos os lados deste limite (devemos, portanto, ser capazes de pensar o que não pode ser pensado)” (Wittgenstein, Tractatus, 27).

39) Assim: “Enquanto a lógica expressa normas muito gerais e ubíquas de nossa língua, a aritmética regula apenas uma certa parte de nossa língua: ela fixa e desenvolve a gramática das palavras numéricas e seu uso na determinação de quantidades de vários tipos. Mas na medida em que o uso de uma língua constitui uma forma de vida . . . a matemática elementar, como parte de nossa linguagem cotidiana, constitui um aspecto de nossa forma de vida” (Schroeder, “Matemática”, 112). Na medida em que a matemática é linguagem em uso, ela se apresenta como extremamente capaz de objetivar e tornar objetos comensuráveis em contraste com a linguagem enraizada na experiência imediata, permitindo que determinadas formas de vida sejam desmontadas em elementos que podem ser recategorizados e rearranjados através de intervenção administrativa direta.

40) “Não foi por nada que Wittgenstein citou Spengler como uma das importantes influências em seu pensamento. O capítulo 2 de The Decline of the West é dedicado a uma pesquisa sobre as diferentes matemáticas de diferentes culturas. Para Spengler, a Matemática era vista como um fenômeno histórico e uma criação histórica – não como algo que tem sido progressivamente descoberto no curso da história humana, mas como um conjunto de técnicas e conceitos que têm sido progressivamente criados, e pode-se acrescentar, progressivamente unificados, ao longo da história humana. Isto, me parece, é um importante legado que Wittgenstein apreendeu. A matemática”, escreveu ele, “é afinal um fenômeno antropológico” (RFM 399)… . . É um sistema de normas que determinam o que é chamado de ‘calcular’, ‘inferir’, ‘trabalhar’ magnitudes e quantidades de contáveis e mensuráveis” (Hacker, “Wittgenstein’s Anthropological and Ethnological Approach”, 5).

41) Veja, por exemplo, Prigogine, End of Certainty.

42) “Se eu vejo o símbolo do pensamento ‘de fora’, eu fico consciente de que ele poderia ser interpretado deste modo ou de outro; se é um passo no curso de meus pensamentos, então é um lugar de parada que é natural para mim, e sua ulterior interpretabilidade não me ocupa (ou me incomoda)” (Wittgenstein, Zettel, 43e, n235).

43) Wittgenstein, On Certainty, §105. Veja também a observação bem conhecida: “Se o verdadeiro é o que está fundamentado, então o fundamento não é verdadeiro, nem ainda falso”. Se alguém nos perguntasse “mas isso é verdade?” poderíamos dizer “sim” a ele; e se ele exigisse fundamentos, poderíamos dizer “eu não posso lhe dar nenhum fundamento, mas se você aprender mais, você também pensará o mesmo”. Se isso não acontecesse, isso significaria que ele não poderia, por exemplo, aprender história. (Wittgenstein, On Certainty, §§205-6) A certeza vem do aprendizado.

44) Assim, em Investigações Filosóficas, ele escreve: “Dizer ‘Esta combinação de palavras não faz sentido’ exclui-a da esfera da linguagem e assim limita o domínio da linguagem. Mas quando se traça um limite, pode ser por vários tipos de razões. Se eu cercar uma área com uma cerca ou uma linha ou de outra forma, o objetivo pode ser impedir que alguém entre ou saia; mas também pode fazer parte de um jogo e os jogadores devem, digamos, pular o limite; ou pode mostrar [sic] onde termina a propriedade de um homem e começa a de outro; e assim por diante. Portanto, se eu traçar uma linha de limite isso ainda não é dizer para o que estou desenhando” (Wittgenstein, PI, §499). Ele também o coloca desta forma: “Também estou inclinado a distinguir entre o essencial e o inessencial em um jogo”. O jogo, pode-se dizer, tem não só regras, mas também um ponto” (Wittgenstein, PI, §564).

45) Wittgenstein, PI, §23.

46) Wittgenstein, PI, §138.

47) Wittgenstein, PI, §202.

48) “É o que chamamos de ‘obedecer a uma regra’ algo que só seria possível para um homem fazer, e fazer apenas uma vez em sua vida?- Esta é, naturalmente, uma nota sobre a gramática da expressão “obedecer a uma regra”. “Não é possível que tenha havido apenas uma ocasião em que alguém tenha obedecido a uma regra”. Não é possível que tenha havido apenas uma ocasião em que um relatório foi feito, uma ordem dada ou entendida; e assim por diante.- Obedecer a uma regra, fazer um relatório, dar uma ordem, jogar um jogo de xadrez, são costumes (usos, instituições). “Compreender uma frase significa compreender uma língua. Compreender uma língua significa ser mestre de uma técnica” (Wittgenstein, PI, §199).

49) Wittgenstein, PI, §201. Martin Stone sobre a questão da interpretação na lei: “Wittgenstein não está negando que somos livres para usar a palavra ‘interpretação’ da forma que quisermos, e ainda podemos querer continuar chamando cada aplicação de uma regra de interpretação da mesma. Wittgenstein, no entanto, propõe que, por uma questão de clareza, restringimos a palavra “interpretação” à substituição de uma expressão lingüística por outra: se seguirmos a proposta, podemos permitir que ela seja às vezes útil, mas nem sempre necessária para interpretar uma regra para segui-la. O que está em jogo aqui não é apenas um ponto terminológico” (“Focusing the Law,”, 283).

50) A abordagem Durkheimiana para o conceito de moralidade tem sido especialmente importante no pensamento antropológico – mas leva a um relativismo inútil. Veja o interessante artigo de Joel Robbins, “Between Reproduction and Freedom”, que tenta sintetizar a abordagem Durkheimiana (enfatizando a normatividade social) com a abordagem Kantiana (focalizada na liberdade) da moralidade.

51) Mas como Elizabeth Anscombe apontou (em “Modern Moral Philosophy”), a “consciência” pode levar a pessoa a fazer as coisas mais vis.

52) Caputo, Against Ethics, 8.

53) Meus comentários nesta seção foram motivados por um trabalho apresentado em um workshop na Freie Universität em Berlim sobre “A Leitura de Wittgenstein em árabe” organizado em 11-12 de maio de 2020 por Islam Dayeh, embora ele tome uma direção diferente.

54) Qurʾan 112. Isto não é meramente uma declaração da indescritibilidade de Deus, porque, digamos, Deus está escondido. É uma declaração de que Deus não é “algo semelhante”, que Ele não é divisível pelo tempo ou sujeito à causalidade, que Ele não é visível embora Ele possa ser sentido e abordado. Deus não é uma coisa e nem é uma abstração. Já que todas as coisas podem ser representadas e abstrações feitas delas (assim vai o raciocínio secular), um deus que não pode ser representado não existe (para todos os efeitos). Mas a não-representação de Deus não se iguala à sua ausência. Para começar, ele pode ser descrito pelo que ele não é (negativamente). Mais importante, o uso do epíteto corânico é simplesmente sua maneira de se tornar acessível ao mundo humano através da linguagem humana. (A visibilidade não é indispensável para o tratamento das relações como reais.) A proibição islâmica baseia-se na preocupação de que representar algo é uma abstração que, portanto, implica na possibilidade de abstrair e representá-lo de outra forma. A tradição judaica, que compartilha muitos conceitos e atitudes com o Islã, parece ser ambígua no que diz respeito à representatividade de Deus: “Embora a afirmação de que Deus não tem imagem seja considerada por [erudito islamo-judaico medieval] Maimonides como um princípio de fé, não é tão clara que seja aceita na Bíblia ou nas tradições rabínicas. Na Bíblia, parece que Deus realmente tem uma imagem, exceto que é proibido representar esta imagem de qualquer forma. Assim, por exemplo, quando Moisés pede para ver o rosto de Deus, Deus responde: ‘Não podeis ver meu rosto, pois o homem pode não Me ver e viver’ (Êxodo 33:20). Em outro lugar se diz de Moisés que ‘ele vê a semelhança do Senhor’ (Números 12:8), e dos anciãos de Israel que ‘viram a Deus, e comeram e beberam’ (Êxodo 24:11). Isaías viu o Senhor ‘sentado em um trono alto e sublime’ (Isaías 6:1), e Ezequiel o descreve como tendo ‘a aparência de uma forma humana’ (Ezequiel 1:26). Assim, parece que a proibição contra a representação não está associada à questão metafísica de se Deus tem uma imagem, mas aos métodos de representação de Deus no culto ritual” (Halbertal e Margalit, Idolatry, 45-46).

55) Veja Taj al-ʿArūs.

56) Ibn Taymiyya, Al-ʾImān, 74. Eu optei por me basear neste livro não como uma autoridade, mas porque se detém mais explícita e sistematicamente na centralidade da prática para o crente.

57) Wittgenstein, PI, p. 216.

58) Isto, pode-se notar aqui, é um modo de raciocínio analógico, um modo de inferência central para a tradição Shariʿa baseada no Qurʾan. Uma analogia não só leva a uma conclusão com base na semelhança; ela também permite uma compreensão do porquê do que é similar.

59) “É difícil para nós evitarmos esta comparação: um homem faz sua aparição – um evento faz sua aparição. Como se um evento, mesmo agora, estivesse pronto diante da porta da realidade e então fizesse sua aparição na realidade – como se entrasse em uma sala.

60) “A realidade não é uma propriedade ainda ausente no que se espera e que acede a ela quando a expectativa surge. – Nem é a realidade como a luz do dia que as coisas precisam adquirir cor, quando já estão lá, como se fossem incolores, no escuro” (Wittgenstein, Zettel, §§59-60). A descoberta hermenêutica da realidade num relato histórico por meio de metáforas é paralela ao dispositivo de colocar as palavras em um contexto apropriado (“adequação” dependendo da motivação do historiador); isto, naturalmente, faz da História a pedra de toque da realidade.

61) Primeira aparição em Qurʾan 7:180.

62) Ibn Taymiyya, Juhd al-qarīha fī tajrīd al-nasīha, 29. Assim, para Ibn Taymiyya (e para Wittgenstein) a prática da filosofia como tal não é condenada; seu mau uso é.

63) E ainda assim, a exigência de que o Qurʾan seja lido como “puramente religioso” sinaliza um ponto de vista cristão pós Reforma, porque e na medida em que assume que a religião tem uma essência universal (“espiritual”) que pode ser abstraída de seu domínio contingente (“temporal”) – de “política”, “direito”, “moralidade”, “família”, e assim por diante.

64) Mohamed Amer Meziane escreveu um excelente ensaio sobre a intraduzibilidade do Qurʾan considerado como a enunciação da voz divina intitulada “The Untranslatable Voices of the Body: Deafness, Aesthetics and the Qurʾan” (manuscrito inédito).

65) No árabe moderno, o cognato taʾmīn significa “seguro”, “seguridade social” e afins, mas o conceito de ʾimān não tem, obviamente, nada a ver com a função moderna de calcular e agir sobre probabilidades. Ele é usado inúmeras vezes no Qurʾan em sua forma verbal principal amuna e seus vários derivados (dos quais ʾimān é um deles) com o sentido de segurança absoluta e confiança em Deus.

66) Em seu relato brilhante sobre a recepção dos sermões de sexta-feira (khutab, sing. khutba) no Cairo, Charles Hirschkind descreve lindamente a maneira como os muçulmanos crentes comuns respondem à recitação dos versos Qurʾanic como palavra de Deus e não a do recitador (Ethical Soundscape). Isto pode ser visto como paralelo a uma distinção banal no teatro secular entre o ator e a pessoa que ele ou ela procura representar (cujas palavras são de autoria do dramaturgo). Mas ao contrário da audição corânica, no teatro se atende às palavras como as do personagem no palco e não as do autor. A propósito, não devo ser interpretado como implicando que não há representação dramática na tradição muçulmana – a representação dramática mais famosa de um evento histórico religioso na seita Shiʿa do Islã é a repetição ritual anual da morte de Hussein (neto do Profeta Maomé) na Batalha de Karbala (ʿashura). Meu argumento não é apenas que a distinção entre o autor do Qurʾan e aquele que a articula é essencial à tradição islâmica, mas que o ato repetido de recitação é uma parte essencial da formação da fé.

67) Qurʾan 50:16.

68) Qurʾan 18:109. A tradução de Muhammad Asad prefere “Sustentador” ao convencional “Senhor” para rabb porque (ele explica) esta última palavra também tem o sentido de criar uma criança.

69) A usual tradução para o inglês de taqwa como “temor q Deus”, e do derivado muttaqi como “temente a Deus”, foi considerada por alguns tradutores como muito restrita e por eles interpretada como “aquele que se protege contra o mal” ou “aquele que é cuidadoso com seu dever”. O Message of the Qurʾan, de Muhammad Asad, introduz o termo “consciência de Deus” [Godconscious] (Qurʾan 2:1) com o argumento de que, embora o “termos a Deus” seja simplesmente muito negativo, as traduções alternativas não alertam para “mais de um aspecto particular do conceito de consciência de Deus” (3n2). A tradução de uma língua para outra é freqüentemente uma questão de selecionar alguns valores e omitir outros; para este tradutor “consciência de Deus” é o termo mais capacioso e, portanto, o mais satisfatório neste contexto porque implica uma relação contínua e construtiva entre a adoradora e seu Deus. Mas prefiro a construção “temor maravilha reverência”[dread awereverence] porque não acho que o medo – ou melhor, “temor” – seja simplesmente uma emoção negativa.

70) Ver Qurʾan 16:51. Do verbo raiz rahiba deriva não apenas o senso de veneração e de monasticismo (rahbana) como essencialmente inspirado pela contínua reverência a Deus, mas também o senso de terrorismo político (irhābiyya). Que a indução do terror (ou pavor) deve ser um atributo do divino aparece pelo menos tão escandaloso para as sensibilidades liberais, como o fato de ele ter mãos e um rosto – especialmente tendo em vista os repetidos epítetos Qurʾanic ar-rahmān, ar-rahīm (o misericordioso, o compassivo).

71) Assim Blaise Pascal: “Quando considero o curto período de minha vida, absorvido na eternidade precedente e subseqüente, … o pequeno espaço que eu preencho e até posso ver-me engolido na imensidão infinita de espaços dos quais nada sei, e que nada sabe de mim, fico aterrorizado, e surpreso de me encontrar aqui em vez de ali, pois não há razão para estar aqui em vez de ali, por que agora em vez de então”. Pensées, no.102, 26.Pascal foi uma figura importante no surgimento precoce da teoria da probabilidade. Ele é famoso por seu argumento pela crença na existência de Deus – isto é, por um modo secular de raciocínio não baseado nem na temor maravilha reverência [dread awereverence] nem na confiança, mas na probabilidade.Pascal foi uma figura importante no surgimento precoce da teoria da probabilidade. Ele é famoso por seu argumento de crença na existência de Deus – isto é, por um modo secular de raciocínio não baseado nem na dreadawereverence nem na confiança, mas na probabilidade. Sua famosa correspondência com Fermat”, observa Hacking, “discute o problema da divisão, uma questão sobre dividir as apostas em um jogo de azar que foi interrompido”. O problema é de natureza inteiramente aleatória.Sua decisão/argumento teórico para acreditar na existência de Deus não é. Não importa se Deus existe ou não, mas ainda é uma questão de crença e ação razoável à qual o novo raciocínio provável pode ser aplicado” (Hacking, Emergence of Probability, 12).

72) Qurʾan 2:11–12: wa idhā qīla lahum lā tufsidū fi-l-ard qālū innamā nahnu muslihūn, alā innahum hum al-mufsidūn wa lākin lā yashʿurūn.

73) Esta visão é encontrada também em concepções antigas da alma. “Em Theaetatus”, escreve Iris Murdoch, “nos é dito que a pena pela maldade é simplesmente ser o tipo de pessoa que se é” (Fire and the Sun, 39).

74) A palavra hayāʾ inclui o sentido de vergonha – como na reprovação comum, ya qalīl al-hayāʾ! (literalmente “Oh você de pouca vergonha!”) – mas soa, quando normalmente falado, como hayāh (“vida”). Ibn alQayyim, o jurista e estudante medieval de Ibn Taymiyya, sugeriu que o primeiro era derivado do segundo “porque aquele que está sem hayāʾ [humildade/ vergonha/modéstia] está morto neste mundo e miserável no próximo”. Ibn alQayyim alJawziyya, Ad-dāʿi wa-d-dawāʾ, 168-70.Ibn alQayyim é, naturalmente, esboçar conexões conceituais (dentro do que Wittgenstein poderia dizer que é um conceito familiar) e não uma etimologia de hayāh, “vida”. Meus agradecimentos a Islam Dayeh por dirigir minha atenção a Ibn alQayyim.

75) Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 13.

76) Wittgenstein, Culture and Value, 85–86.

77) Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 73.

78) Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 169–70.

79) Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 109, 120.

80) O monasticismo cristão e budista fornecem exemplos famosos da ética da virtude, mas eles não são os únicos tipos de “obediência à regra” religiosa; para os fiéis muçulmanos, a vida comum também é um espaço para seguir as regras através da Shariʿa – em um estado islâmico ou em um estado declaradamente secular, também pode funcionar como “lei”. Para um relato interessante sobre o sistema de funcionamento social dos tribunais da Shariʿa na Índia secular (embora não reconhecidos formalmente nem pelo estado colonial nem por seu sucessor nacionalista), ver Moosa, “Shariʿa Governance”.

81) Discuti estas categorias com certa profundidade em um artigo sobre um jurista egípcio reformador logo no início do século XX. Meu argumento ali foi que a reforma do Shariʿa que depende de submetê-la à autoridade superior do Estado moderno (isto é, assimilá-la à lei positiva) resulta em secularização. Ver Asad, “Law, Ethics, and Religion.”

82) Alguns orientalistas distinguem entre duas abordagens ao texto corânico: por um lado, tentando entender o significado de sua linguagem (exegese), e por outro, respondendo a ela como uma experiência estética (retórica), em outras palavras, como interpretativa versus experiencial. Embora eu não argumentaria que desfrutar do Qurʾan como um texto estético secular é impossível, o que isto deixa de fora de forma crucial é o cultivo (formação) da vida para o qual o texto é essencial precisamente porque eventualmente se torna absorvido pela sensibilidade corporal em uma atitude de completa submissão a Deus.

83) Para um relato muito mais completo das muitas versões possíveis em inglês de dīn, veja-se o Arabic-English Lexicon de Lane.

84) Ibn Taymiyya, Al-ʿimān, 7.

85) Rowan Williams escreve: “O ícone tradicional do mundo cristão oriental nunca teve o objetivo de ser uma reprodução das realidades que você vê ao seu redor; não é nem mesmo para mostrar como essas realidades jamais serão. . . . O objetivo do ícone é nos dar uma janela para um quadro de referência Outro que é, ao mesmo tempo, a estrutura que fará sentido definitivo do mundo que habitamos. Às vezes é descrito como um canal para as ‘energias’ desse outro quadro de referência a ser transmitido ao espectador [e ouvinte]” (Lost Icons, 2).

86) “Você não pode ouvir Deus falar com outra pessoa, você só pode ouvi-lo se você estiver sendo endereçado” (Wittgenstein, Zettel, 124e, n717). Quando relato que outra pessoa “afirma” ouvir Deus, não estou relatando um simples fato, mas um fato imbuído de um valor distanciador – uma expressão de agnosticismo se não de ceticismo.

87) Wittgenstein, Culture and Value, 32. O substantivo alemão der Glaube, traduzido aqui para o inglês como “belief”, tem praticamente o mesmo alcance de significados que este último: “fé, confiança, confiança, dependência, assim como crença”. Como o Oxford English Dictionary observa, tanto o Glaube alemão quanto a crença inglesa têm uma etimologia compartilhada que os conecta ao amor.

88) Collingwood escreve: “O hábito de ‘esterilizar’ a sensação ignorando sua carga emocional à parte não é igualmente prevalecente entre todos os tipos e condições dos homens. Parece ser especialmente característico das pessoas adultas e ‘educadas’ no que é chamado de civilização moderna européia” (Princípios da Arte, 162).

89) Veja Trotter, Paranoid Modernism.

90) A oração formal que consiste em movimentos e palavras prescritas (conhecida como salāt) é distinguida da súplica final (conhecida como duʿā).

91) Wittgenstein, PI, §600.

92) Wittgenstein, Remarks on Frazer’s “Golden Bough,” 3.

93) Branch, Rituals.

94) Para um argumento erudito e persuasivo de que o judaísmo como “religião” era um cristão invenção, ver Boyarin, Judaism.

95) Veja, por exemplo, Casanova, “Secularization Revisited,” 19–20.

96) Em seu estudo sobre o movimento criônico que chama de “imortalista”, Abou Farman levou a antropologia da ciência em uma nova e mais ampla direção (On Not Dying). Para os ateus, a morte é vista como o fim do sujeito humano, mas para os crentes religiosos, a morte é o fim apenas da vida terrena, uma vez que há sempre uma vida após a morte em outro mundo. A ambição dos imortalistas, entretanto, é abolir a morte como um fato intrínseco da própria vida, por meio da tecnociência.

97) Anderson, “Genetic Engineering,” 758

98) Anderson, “Genetic Engineering,” 759.

99) “Se dinheiro”, Marx escreveu em um famoso comentário sobre uma famosa passagem do Tímon de Atenas, de Shakespeare, ” é o vínculo que me une à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e ao homem, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? Ele não pode criar e dissolver todos os vínculos? Não é, portanto, o agente universal do divórcio?” (Manuscrito econômico e filosófico, 139). O dinheiro, concluiu ele, é de imediato o agente universal da conexão social bem como da separação entre os seres humanos na sociedade burguesa.

100) Por exemplo, no prefácio a uma coleção póstuma: “Este livro é escrito para homens em simpatia com seu espírito. Este espírito é diferente daquele que informa a vasta corrente da civilização européia e americana em que todos nós nos encontramos. Esta última se expressa em um movimento para a frente, na construção de estruturas cada vez maiores e mais complicadas; o outro se esforça em busca de clareza e perspicuidade em qualquer estrutura” (Wittgenstein, Observações Filosóficas, 7).

101) Veja a defesa sutil e espirituosa da filosofia contra a afirmação de que sua inconclusividade é prova de sua inutilidade em Rothfeld, “Art of Not Concluding”

102) Em sua notável reflexão sobre a “destruição” como a noção limite de tudo, Gil Anidjar se afasta deste apego convencional à experiência de guerra e violência. Reproduzindo, em árabe, o verso Qurʾanic kullu man ʿalayhā fān, “Tudo o que está [sobre a terra e os céus] está destinado a passar” (Qurʾan 55:25), como epígrafe de seu ensaio, Anidjar enfatiza a impossibilidade de a experiência dar acesso ao fato da finitude total. Veja seu próximo artigo, “Destruição do Pensamento”.

Para citar este texto: ASAD, Talal. Pensando a Religião através de Wittgenstein. (Tradução por Bruno Reinhardt) Blog do Labemus, 2021. [publicado em 30 de agosto de 2021]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2021/08/30/pensando-religiao-wittgenstein/

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