Cartaz do filme “A sociologia é um esporte de combate”, de Pierre Carles
Por Gabriel Peters
Na quarta pílula desta série, vimos que a principal fonte de mudança social discutida no pensamento de Bourdieu é a ruptura da “cumplicidade ontológica” entre disposições subjetivas e condições objetivas – dito de modo mais simples, entre habitus e campo. A esses cenários nos quais o habitus opera em um ambiente estrutural diferente daquele em foi socializado, Bourdieu deu o nome de “efeito de histerese”. Em sua investigação do movimento de Maio de 68 na França (2011: cap.5), Bourdieu mostrou que a quebra na cumplicidade ontológica entre estruturas subjetivas e estruturas objetivas pode levar os agentes a questionarem reflexivamente seu ambiente social. Ao romper com o senso de naturalidade e autoevidência do mundo social, a histerese estimula a passagem da praxis ao logos, do senso prático à elaboração consciente de alternativas de ação:
“A crítica que traz o não discutido à discussão, o não formulado à formulação, tem como sua condição de possibilidade a crise objetiva, a qual, quebrando o laço imediato entre as estruturas subjetivas e as estruturas objetivas, destrói a autoevidência no âmbito prático” (Bourdieu, 1979: 169).
Tal afirmação é relevante não apenas para a sociologia da mudança social, mas também para a teoria bourdieusiana dos motores subjetivos da conduta humana. Ainda que tenha sido um crítico persistente das visões intelectualistas da ação social, as quais negam o caráter predominantemente tácito e não discursivo dos seus móbeis subjetivos, Bourdieu não negou a existência de ações movidas por deliberações reflexivas (p.ex., o cálculo explícito de meios e fins). Ele quis enfatizar apenas que tais formas de ação possuem condições sociais e históricas específicas de possibilidade. Além do já citado “efeito de histerese”, o autor francês defendeu que a própria sociologia poderia incrementar a reflexividade do agente a respeito de si próprio e de seus ambientes de ação, isto é, de seu habitus assim como de seu habitat social:
“… não apenas pode o habitus ser transformado praticamente (sempre dentro de fronteiras definidas) pelo efeito de uma trajetória social levando a condições de vida distintas daquelas iniciais, como também pode ser controlado por meio do despertar da consciência e pela socioanálise” (1990b: 116).
A consciência dos determinismos sociais que operam sobre a própria conduta, uma vez possibilitada pela sociologia, abre ao agente, diz Bourdieu, “a possibilidade de uma emancipação fundada na consciência…dos condicionamentos por que se passou”. A autoconsciência reflexiva provê uma oportunidade de autotransformação prática, uma reestruturação disposicional deliberada, voltada ao cultivo de “novos condicionamentos duravelmente cunhados para contrabalançar…[os] efeitos” de uma socialização prévia (Bourdieu, 1999b: 340). Por esta e por outras aspirações ético-políticas de sua sociologia, o projeto intelectual de Bourdieu pode ser descrito, como vimos, qual uma variedade de teoria ou sociologia crítica. Como também já vimos, um modo de abordar sua concepção de crítica é pensando-a como uma síntese entre duas de suas fontes intelectuais: a) o sentido kantiano que a identifica como a reflexão do pensamento racional acerca de seus próprios pressupostos e limites, os quais são devidamente historicizados e sociologizados por Bourdieu; b) o sentido hegeliano-marxista associado ao desvelamento de formas ideologicamente dissimuladas de dominação e exploração. Na teoria bourdieusiana da “violência simbólica”, a união entre os dois veios de “crítica” é propiciada pela reformulação da crítica marxista da ideologia com as ferramentas analíticas do “kantianismo sociológico” de Durkheim e Mauss: as categorias socialmente adquiridas de percepção pelas quais os agentes atribuem sentido ao mundo social são as mesmas que os levam a perceber tal mundo como a ordem natural das coisas, inclusive no que toca às suas desigualdades distributivas e assimetrias de poder.
A sociologia de Bourdieu explora, portanto, os mecanismos simbólicos pelos quais relações de dominação historicamente contingentes vêm a ser percebidas e vivenciadas como naturais tanto por dominantes como por dominados. Ela realiza, nesse sentido, um procedimento de historicização e desnaturalização sociológicas que aspira a um caráter científico, mas também se revela capaz de contribuir para a transformação política daquelas relações. Sob esse aspecto, a teoria bourdieusiana da violência simbólica oferece uma versão original de um modelo de crítica da ideologia também empregado, mutatis mutandis, por Marx, Lukács, Foucault e Judith Butler. Trata-se da exposição dos mecanismos ideativos (sejam eles chamados de “simbólicos”, “ideológicos”, “discursivos” etc.) através dos quais condições sócio-históricas contingentes são experienciadas como naturais e necessárias.
A investigação sociológica das formas de violência simbólica por Bourdieu mostra que estes fenômenos não existem somente “fora” dos agentes, mas também “dentro” ou “através” dos agentes, por meio das marcas que o social produz em suas subjetividades. Assimetrias de poder produzem efeitos que afetam a subjetividade inteira dos indivíduos, sendo inseparavelmente cognitivos, morais, emocionais, corpóreos etc. Se as relações de dominação afetam as disposições mais fundas dos agentes imersos no mundo social, o combate político de tais relações possui, por assim dizer, um componente “existencial”. Voltemos a um exemplo anterior: a distribuição desigual da autoridade simbólica para a fala pública (p.ex., em salas de aula, assembleias políticas, reuniões de trabalho e interações informais) entre homens e mulheres em certo cenário social. Sendo parte das condições objetivas de existência nas quais os agentes são socializados, essa distribuição desigual pode terminar interiorizada sob a forma de disposições subjetivas como a autoconfiança do dominante e a timidez do dominado. Tais disposições não são puras autorrepresentações intelectuais, mas possuem um componente corpóreo e visceral.
Se a ideia de que a sociologia reflexiva pode contribuir para uma política da transformação do mundo social está bem assentada, menos notada na obra de Bourdieu é a sugestão correlata de que ela pode funcionar como uma ferramenta ética de autotransformação. Ainda que os paralelos entre os retratos do agente humano oriundos da teoria da prática e da psicanálise não devam ser exagerados, não há dúvida que a noção de “socioanálise” cunhada por Bourdieu alude deliberadamente ao projeto intelectual de Freud. Em ambos os casos, temos uma visão inicial da subjetividade humana como governada, em larga medida, por forças interiores a respeito das quais ela própria não possui uma consciência nítida e, portanto, um domínio racional. Segundo a sociologia reflexiva de Bourdieu e a psicanálise de Freud, o primeiro passo para a conquista de uma margem de liberdade em relação a tais determinismos inconscientes é a expansão da consciência para os seus domínios. O ganho de autoconsciência, nas duas perspectivas, não pode advir da mera introspecção, mas dos instrumentos intelectuais propiciados por uma visão científica da subjetividade humana. Na sua luta contra os sofrimentos psíquicos enfrentados por seus pacientes, Freud elegeu como lema fundamental da terapia psicanalítica o princípio: “onde havia id, que passe a haver ego” (Wo Es war, soll Ich Werden). Conforme o fundador da psicanálise, quanto menor o acesso do ego consciente aos impulsos inconscientes em operação na subjetividade, mais o indivíduo é escravo e joguete de tais impulsos que ele não compreende nem controla. A capacidade de exercer um controle racional sobre a própria conduta depende, nesse sentido, do acesso consciente a esses impulsos que até então controlavam o indivíduo à margem de sua vontade e conhecimento.
A concepção de liberdade como autodomínio racional em Freud, assim como em Bourdieu, deriva de um racionalismo ético que, ao mesmo tempo, não mantém ilusões quanto aos formidáveis obstáculos que se opõem à autoconsciência e à autodeterminação. O “inconsciente” perseguido por Bourdieu, no entanto, é distinto daquele esquadrinhado por Freud. Recorrendo frequentemente à afirmação de Durkheim segundo a qual “o verdadeiro inconsciente é a história”, a teoria do habitus introduziria o adendo: “a história feita corpo”. A autoanálise informada pelo pensamento de Bourdieu se dirige às disposições mentais e corpóreas mais profundamente interiorizadas por uma subjetividade ao longo de sua trajetória de socialização. Na medida em que tal interiorização é muito anterior ao acesso à reflexividade sociológica, o autoanalista é obrigado a reconhecer que, pelo menos inicialmente, não é ele quem “possui” seu habitus, mas é o seu habitus que o possui. Em diversos momentos, Bourdieu não teve rebuços em repisar o quanto tal modo de análise é desencantador, pois não nos pinta como seres dotados de um “núcleo” irredutível ao mundo, mas como criaturas moldadas nos seus domínios mais íntimos por condicionamentos sociais. Segundo sua teoria da socialização, como vimos, tais condicionamentos derivam de condições sócio-históricas de início exteriores a nós, mas, então, interiorizadas nas nossas próprias subjetividades.
De acordo com Bourdieu, no entanto, na medida em que os determinismos sociais não são leis da natureza, reconhecer as forças que agem sobre nós é adquirir um instrumento cognitivo e prático para dominar tais forças. Embora Bourdieu não houvesse mostrado lá muito interesse pela abordagem neofenomenológica de Peter Berger, essa pretensão “clínica” ou “délfica” ( da famosa inscrição no templo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo”) é admiravelmente exposta no fecho do clássico convite à sociologia escrito pelo autor austríaco:
“Voltemos mais uma vez à imagem do teatro de marionetes. Vemos as marionetes dançando no palco minúsculo, movendo-se de um lado para outro levadas pelos cordões, seguindo as marcações de seus pequeninos papéis. Aprendemos a compreender a lógica desse teatro e nos encontramos nele. Localizamo-nos na sociedade e assim reconhecemos nossa própria posição, determinada por fios sutis. Por um momento, vemo-nos realmente como fantoches. De repente, porém, percebemos uma diferença decisiva entre o teatro de bonecos e nosso próprio drama. Ao contrário dos bonecos, temos a possibilidade de interromper nossos movimentos, olhando para o alto e divisando o mecanismo que nos moveu. Este ato constitui o primeiro passo para a liberdade. E neste mesmo ato encontramos a justificação definitiva da sociologia como disciplina humanística” (Berger, 1972: 194).
É animado por um espírito similar que Bourdieu veio a propor que “a sociologia liberta libertando da ilusão de liberdade” (Bourdieu, 1990a: 28). Um dos críticos da suposta repetitividade da prosa de Bourdieu poderia retrucar: por que não dizer simplesmente que a sociologia liberta da ilusão de liberdade? Porque não se trata apenas disso. A descoberta dos determinismos que pesam sobre a conduta social não leva apenas a um resignado e impotente “reconhecimento da necessidade”, para usar a expressão clássica de Spinoza. Na medida em que as “necessidades” operantes na vida social dependem das ações e das representações dos agentes humanos para continuarem a existir historicamente, a consciência de tais necessidades possibilita que elas sejam questionadas, combatidas e destruídas.
Ao expandir a consciência sobre os determinantes da conduta social, inclusive aqueles interiorizados nas mentes e corpos de agentes socializados, a sociologia reflexiva de Bourdieu oferece a chance de que aqueles determinismos sejam combatidos pelos agentes a eles submetidos. Como dissemos, em uma articulação peculiar entre pessimismo do intelecto e otimismo da vontade, o autor francês poderia chegar a dizer que o seu “determinismo” sociológico – i.e., sua procura incansável pelas forças sociais que constituem o agente humano – é exatamente o que dá à sua sociologia um potencial emancipatório, identificando-a a um instrumento libertário de resistência política à dominação que inclui a autotransformação individual. Como já vimos, o projeto de uma sociologia reflexiva é, portanto, uma contribuição tanto à política da Cidade justa quanto à ética da boa vida. Não foi à toa que Bourdieu pôs as seguintes palavras no fecho do seu Esboço de autoanálise, as quais podem servir também de conclusão a essa breve apresentação de seu pensamento:
“nada me deixaria mais feliz do que lograr levar alguns dos meus leitores ou leitoras a reconhecer suas experiências, suas dificuldades, suas indagações, seus sofrimentos, etc. nos meus e a poder extrair dessa identificação realista, justo o oposto de uma projeção exaltada, meios de fazer e viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem” (Bourdieu, 2005: 135).
P.S: Uma discussão mais sistemática, escrita numa prosa bem mais pesada, encontra-se aqui.
Referências
BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis: Vozes, 1972.
BOURDIEU, Pierre. Outline of a theory of practice Cambridge, Cambridge University Press, 1979.
_________Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990a.
________In other words Stanford, Stanford University Press, 1990b.
________Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
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