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Bourdieu em pílulas (4): habitus, reprodução e mudança, por Gabriel Peters

Por Gabriel Peters

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Como dissemos no post anterior desta série, a noção de habitus é a principal ferramenta analítica mobilizada por Bourdieu para tratar dos motores subjetivos da conduta humana, tanto no que toca à sua dimensão “libidinal” (ou volitiva) quanto à sua dimensão “hábil” (ou “procedimental”). A dimensão libidinal do habitus abarca os interesses e vontades que impulsionam o agente a engajar-se nos “jogos” do mundo social, a investir seus recursos na busca de bens materiais ou ideais que tal mundo distribui de modo desigual e competitivo. A esfera hábil do habitus contém, por seu turno, as capacidades cognitivas e práticas, mentais e corpóreas, que habilitam o agente a intervir na vida societária, a nela produzir efeitos com maior ou menor eficácia. Tanto os interesses quanto as capacidades que os agentes investem em suas práticas não são dados da natureza, mas disposições subjetivas adquiridas via socialização em determinados cenários sócio-históricos (p.ex., uma família que pertence a tal ou qual classe no espaço social, uma instituição acadêmica de pesquisa com tal ou qual volume de “capital simbólico” no campo científico etc.). Ao chamar o habitus de “uma subjetividade socializada” (Bourdieu; Wacquant, 1992: 126), Bourdieu reconheceu, tal como Elias e Foucault em registros distintos, que diferentes condições sócio-históricas produzem diferentes tipos psíquicos, estruturas de personalidade ou formas de subjetividade. O social, nesse sentido, não é apenas o envoltório externo da subjetividade individual, mas também existe “dentro” ou “através” dessa subjetividade. Em outras palavras, a sociedade encontra nas disposições mentais e corpóreas do organismo socializado uma das suas modalidades fundamentais de existência.

Disposições duráveis e transponíveis

Durante boa parte de sua carreira, Bourdieu concebeu as disposições do habitus como significativamente duráveis e transponíveis. Os modos de agir, pensar e sentir adquiridos ao longo de nossa trajetória social são, em primeiro lugar, dotados de uma inércia relativa. As disposições de conduta inculcadas no primeiro estágio de socialização (p.ex., no âmbito de uma família posicionada em uma classe dominada no espaço social) condicionarão as reações do agente às suas vivências socializadoras posteriores (p.ex., seu desempenho escolar, sua resposta às mensagens da “indústria cultural”, seu exercício profissional e assim por diante). A formação do habitus via socialização é, assim, “temporalmente estratificada”, no sentido de que as propensões de pensamento, sentimento e ação adquiridas nas primeiras experiências socializadoras formam um “filtro” subjetivo para as experiências posteriores. É próprio das preferências de consumo, por exemplo, que elas encaminhem o seu portador a frequentar contextos sociais propensos a satisfazê-las, bem como a evitar cenários que frustrem ou desafiem seus gostos já adquiridos – assim, o crítico culinário passará longe do restaurante popular em que a “quantidade” predomina sobre a “qualidade”, enquanto o trabalhador da construção civil passará longe das porções pretensiosas, caríssimas e minúsculas da cozinha “experimental”. O fato de que as primeiras disposições incorporadas no habitus pré-condicionam as respostas do agente às suas experiências subsequentes é o que dá às etapas iniciais da socialização, portanto, um peso proporcionalmente maior na formação da subjetividade. Para dizer o mesmo naquela prosa de que só Bourdieu era capaz:

“A própria lógica de sua gênese faz do habitus uma série cronologicamente ordenada de estruturas: uma estrutura de posição determinada especificando as estruturas de posição inferior (portanto, geneticamente anteriores) e estruturando as de posição superior, por intermédio da ação estruturante que ela exerce sobre as experiências estruturadas geradoras dessas estruturas. Assim, por exemplo, o habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares (e em particular, da recepção e da assimilação da mensagem propriamente pedagógica), o habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (por exemplo, da recepção e da assimilação das mensagens produzidas e difundidas pela indústria cultural ou das experiências profissionais) e assim por diante, de reestruturação em reestruturação. (…) As experiências…se integram na unidade de uma biografia sistemática que se organiza a partir da situação originária de classe, experimentada num tipo determinado de estrutura familiar” (BOURDIEU, 1983: 81).

Os vínculos “sistemáticos” entre as socializações na família e na escola, por exemplo, evocam um tema central na sua sociologia da educação: a explicação de diferenciais de desempenho escolar, frequentemente atribuídos a “dons” naturais, com base nos volumes desiguais de capital cultural incorporado em âmbito familiar antes da entrada no sistema educacional (“capital cultural”, aqui, é qualquer saber socialmente valorizado e capaz, portanto, de ser utilizado como instrumento de poder e distinção). Como compreenderam outros desmistificadores da noção de “talento inato”, diferenças a princípio infinitesimais na exposição a bens, saberes e competências culturais podem rapidamente se acumular, como uma bola de neve, para produzir impactos muito significativos na formação dos agentes. A distribuição desigual de capital cultural nas socializações familiares de diferentes classes não precisa resultar, dessa maneira, de um projeto deliberado por parte de pais ou outros agentes de socialização. Com frequência, ela advém da exposição acumulada a diferentes circunstâncias cotidianas, como a abrangência e a variedade do vocabulário espontaneamente utilizado pela mãe e/ou pelo pai ou o acesso doméstico a manifestações de “capital cultural objetivado” (livros, pinturas etc.)

Por seu turno, a ideia de “transferibilidade” ou “tranponibilidade” dos habitus deriva, segundo Bourdieu, da importância do procedimento analógico na orientação da conduta social, isto é, do fato de que os agentes são propensos a mobilizar – de modo tácito – os mesmos esquemas de percepção, apreciação e ação em situações as mais diversas. Nos seus estudos da tradicional sociedade Cabila na Argélia, por exemplo, Bourdieu havia mostrado como a oposição simbólica entre o masculino e o feminino permeia o conjunto das práticas e experiências dos seus membros, desde seus rituais públicos de interação até a organização física do seu espaço doméstico (1999). A conhecida obra em que Erwin Panofsky (2001) explora as afinidades estruturais entre a arquitetura gótica e o pensamento escolástico nos séculos XII e XIII também reforçou, em Bourdieu, a tese de que manifestações culturais distintas (p.ex., uma catedral e uma suma de teologia) podem resultar da aplicação analógica dos mesmos princípios gerativos (p.ex., “a separação rigorosa entre as partes, a clareza expressa e explícita das hierarquias formais” e “a conciliação harmoniosa dos contrários” [Bourdieu, 1974: 337], características que definem tanto a arquitetura gótica quanto a prosa filosófica de São Tomás).

Bourdieu gostava (1983: 95; 1990: 21; 2001: 214) de definir o habitus com uma expressão tomada de empréstimo ao genial linguista Noam Chomsky: “gramática gerativa”. O conceito condensa os esforços de Chomsky para explicar como é possível que o falante competente em uma língua seja capaz de criar enunciados que ele jamais ouviu, mas que se revelam, ainda assim, conformes às regras do seu idioma. O que atraiu Bourdieu na noção chomskyana de gramática geradora foi, sobretudo, tal ideia de um saber ao mesmo tempo regrado e criativo. O domínio prático que possuímos de um idioma, por exemplo, não especifica todas as situações conversacionais que encontraremos na vida cotidiana, mas nos fornece uma capacidade adaptativa de responder a tais situações através de “improvisações regradas” (Bourdieu, 1990: 23). Diferentemente do que ocorre com o conceito chomskyano, no entanto, o habitus não se refere a uma gramática gerativa inata que possibilitaria aos seres humanos o aprendizado de quaisquer idiomas, mas a gramáticas gerativas social e historicamente específicas, aprendidas via socialização. Além disso, como o argumento sobre o funcionamento analógico do habitus permite entrever, os habitus (não, não vou dizer “habiti”) podem ser gramáticas ou matrizes gerativas não apenas de atos linguísticos, mas de “percepções, avaliações e ações” que os agentes levam a cabo em uma multiplicidade de domínios. Com efeito, a ilustração mais detalhada da transferibilidade dos esquemas subjetivos do habitus é a discussão sobre o “juízo do gosto” em A distinção (2007). Ao examinar os estilos de vida dos membros de diferentes classes, Bourdieu tenta mostrar que tais agentes aplicam um número limitado de princípios tácitos, como as oposições entre o “ordinário” e o “único” ou entre o “vívido” e o “monótono”, à avaliação das coisas mais diversas: um prato de comida, uma peça de vestuário, um estilo musical, um quadro, uma maneira de falar, uma opinião política etc.

O pesado acento que Bourdieu conferiu ao caráter durável e transponível das disposições do habitus lhe valeu uma série de críticas. Ao conferir peso desproporcional às primeiras experiências socializadoras, a tese da durabilidade negligenciaria os graus em que as disposições subjetivas do agente podem ser transformadas ao longo de sua biografia, sobretudo sob efeito de mudanças no seu cenário social (p.ex., imigração, guerras, revoluções políticas etc.) ou dos seus esforços reflexivos de autotransformação. Quanto ao postulado do caráter transferível dos esquemas do habitus, ele implicaria, segundo alguns autores (p.ex., Lahire, 2002), um retrato demasiado integrado das subjetividades individuais, o qual negligenciaria sua pluralidade interna. Ainda segundo essa crítica, em sociedades complexas nas quais somos obrigados a circular em esferas de ação com princípios discrepantes, as subjetividades tornar-se-iam mais e mais internamente plurais, atravessadas por disposições subjetivas cuja inconsistência refletiria aquela discrepância. Ciente da existência dessas objeções teóricas, o Bourdieu maduro procurou responder a elas sublinhando o caráter de “conceito aberto” (Bourdieu; Wacquant, 1992: 95-96) do habitus, isto é, sua abertura flexível à diversidade empírica das formas de ação e experiência social:

“Basta distender esses traços até o limite extremo, apresentando o habitus como uma espécie de princípio monolítico (quando, em muitas ocasiões, tenho evocado, sobretudo a propósito dos subproletários argelinos, a existência de habitus clivados, destroçados, ostentando sob a forma de tensões e contradições a marca das condições de formação contraditórias de que são o produto), imutável (qualquer que seja o grau de reforço ou de inibição que tiver recebido), fatal (conferindo ao passado o poder de determinar todas as ações futuras) e exclusivo (sem nunca abrir qualquer espaço à intenção consciente), para que se possa ter a honra de triunfar sem esforço sobre o adversário caricatural que assim se produziu. Como não perceber que o grau em que o habitus é sistemático (ou, ao contrário, dividido, contraditório), constante (ou flutuante e variável) depende das condições sociais de sua formação e de seu exercício, e que então pode e deve ser medido e explicado empiricamente?” (Bourdieu, 2001: 79).

A inércia relativa das disposições inculcadas nos primeiros estágios da socialização não impediria, segundo Bourdieu ou seu discípulo Wacquant (2004), a existência de trajetórias biográficas marcadas por “reestruturações disposicionais” mais ou menos radicais, como em mudanças abruptas de cenário social ou em conversões religiosas. De modo similar, o grau em que as disposições constitutivas de um habitus seriam transponíveis ao longo de uma maior ou menor diversidade de cenários de ação consistiria em um problema empírico, não em uma questão teórica a ser resolvida a priori. Ainda que a sua teoria do habitus tenha se concentrado sobre disposições internamente coerentes, o próprio Bourdieu havia se debruçado também sobre agentes dotados de disposições discrepantes entre si, isto é, de “habitus clivados”. Este seria o caso dos subproletários argelinos que ele estudou na década de 1950, indivíduos cujas subjetividades eram atravessadas, como ele disse, por “tensões e contradições” que davam testemunho “das condições de formação contraditórias de que…[eram] o produto” (idem).

Uma teoria disposicional da ação

Nesse ponto, a teoria “disposicional” da ação implicada no conceito bourdieusiano de habitus pode ser rearticulada à sua tentativa de superação do subjetivismo e do objetivismo por uma via praxiológica. Como vimos no segundo post dessa série, o cerne da praxiologia é a tese de que as práticas sociais não derivam apenas das disposições interiorizadas pelo agente ou das características exteriores do contexto em que ele está imerso. As práticas sociais são precisamente o produto desse encontro entre subjetividade e objetividade, entre um agente socializado por sua experiência passada e as condições sociais em que ele age no presente. Como um conjunto de disposições para agir, pensar e sentir de determinadas maneiras, um habitus incorporado só gera ações, pensamentos e sentimentos em resposta aos estímulos particulares de um contexto presente. Como o habitus é o mediador entre o estímulo contextual e a resposta do agente, Bourdieu rechaça qualquer visão “externalista” segundo a qual as características de um contexto social são suficientes para explicar as condutas dos agentes nele imersos, já que indivíduos dotados de diferentes habitus responderão de modos diferentes aos “mesmos” contextos. Por outro lado, como um conjunto de potenciais de conduta, o habitus só gera práticas efetivas no mundo social quando ativado por “gatilhos” contextuais. Nesse sentido, juntamente com aquela visão “externalista”, Bourdieu também afasta o “internalismo” segundo o qual as disposições subjetivas do agente seriam condições suficientes para a geração das práticas, já que tais disposições só são efetivadas ou atualizadas como respostas às propriedades de um contexto – assim, um mesmo habitus engendrará práticas diferentes em resposta a contextos diferentes. Duas observações cabem aqui, ambas retraçáveis às ideias do primeiro post dessa série. Em primeiro lugar, podemos ver que, tal como um campo, um habitus constitui um fator causal na produção de práticas observáveis, mas não é, ele próprio, diretamente observável, tendo de ser teoricamente reconstruído a partir dos seus efeitos empíricos. Em segundo lugar, os cenários presentes nos quais os habitus são ativados não se resumem às microssituações imediatas de ação, mas envolvem estruturas “trans-situacionais” que condicionam a própria microssituação. Para retomar um exemplo já dado aqui, o contexto em que um advogado engravatado conversa com um flanelinha não se resume à sua interação face a face, mas é condicionado por toda a estrutura de classes da sociedade brasileira.

Cumplicidade ontológica e histerese

Na obra de Bourdieu, os exemplos de práticas como “ativações de disposições subjetivas em resposta a condições objetivas” são múltiplos. Em termos teóricos mais gerais, sua praxiologia privilegia os cenários de “cumplicidade ontológica” (Bourdieu, 1988: 52) entre as disposições subjetivas do habitus e as condições objetivas nas quais ele opera. Nesses casos, os agentes atuam em circunstâncias estruturais idênticas ou homólogas àquelas em que foram socializados, de tal modo que seu habitus gera práticas tendentes a reproduzir aquelas circunstâncias. Não obstante, segundo o próprio Bourdieu, a tese da cumplicidade ontológica foi primeiramente formulada “às avessas”, isto é, para dar conta de um descompasso histórico entre disposições subjetivas e condições objetivas. Tal descompasso caracterizou a abrupta transição para o capitalismo na Argélia durante a passagem dos anos 1950 para os anos 1960. Ali, Bourdieu examinou de perto as dificuldades e sofrimentos de indivíduos socializados em uma economia rural tradicional, porém repentinamente forçados a atuar no capitalismo urbano:

 

“…a interrogação sobre as relações entre as estruturas e os habitus foi formulada a propósito de uma situação histórica dentro da qual ela se propunha…sob a forma de uma discordância permanente entre as disposições econômicas dos agentes e o mundo econômico no qual estes deveriam agir. Nas situações de transição entre uma economia pré-capitalista e uma economia capitalista, a abstração objetivista na qual se encontram neomarginalistas e estrutural-marxistas, tão fortemente que seria preciso tornar-se cego para reduzir os agentes econômicos a simples reflexos das estruturas objetivas e para deixar de pôr a questão da gênese das disposições e das condições econômicas e sociais desta gênese” (Bourdieu, 1979: 7-8).
 

A investigação das disposições de conduta que capacitam os agentes a operar em uma economia capitalista pode ser lida na chave da superação da dicotomia subjetivismo/objetivismo. Os motores subjetivos da ação econômica não podem ser simplesmente deduzidos das condições estruturais objetivas em que os agentes se encontram no presente, como se eles fossem simples “reflexos”, “portadores”, “veículos” ou “fantoches” de tais condições. Por outro lado, o ataque a tal dedução objetivista não pode deslizar para a perspectiva naturalista de um “homo economicus” assocializado, um agente cuja relação com sua situação objetiva seria intocada pela influência social. O que se torna necessário para escapar a ambas as posições é um exame das disposições nas quais os indivíduos se baseiam para responder às suas circunstâncias socioeconômicas presentes (i.e., um capitalismo urbano fundado no trabalho assalariado), disposições que trazem a marca das condições econômicas nas quais eles foram previamente socializados (i.e., uma economia rural de dons e contradons entre vizinhos). Ao estudar a diferença radical entre as condições passadas e presentes dos ex-camponeses tornados subproletários na Argélia dos anos 1950, Bourdieu se deparou com uma primeira instância do que viria a chamar de “efeito de hysteresis” (Bourdieu; Passeron, 1975: 69), o qual ocorre quando o habitus é forçado a operar em um contexto estrutural distinto daquele em que foi formado.

As aflições vivenciadas por aqueles agentes também revelavam, às avessas, a “cumplicidade ontológica” entre disposições subjetivas e condições objetivas no capitalismo ocidental moderno, isto é, o fato de que indivíduos socializados em uma economia capitalista tendem a vê-la, por isso mesmo, como a ordem natural e evidente das coisas. As relações variáveis entre subjetividade e objetividade em economias pré-capitalistas e capitalistas justificam, nesse sentido, o foco de Bourdieu sobre “a gênese das disposições [econômicas]” e sobre “as condições econômicas e sociais dessa gênese” (ibid). Recuperar a gênese social das disposições econômicas significa rejeitar, por um lado, o naturalismo subjetivista de abordagens que tomam a “racionalidade” típica do capitalismo moderno como a-histórica e universal. Recuperar as condições econômicas e sociais daquela gênese também significa rejeitar, por outro lado, o dedutivismo objetivista que supõe que a vigência de determinadas estruturas econômicas objetivas é suficiente para gerar nos agentes a conduta adequada a elas, sem levar em consideração que os agentes respondem às suas circunstâncias presentes através das disposições de conduta que trazem do seu passado de socialização.

Seja como for, a cumplicidade ontológica entre disposições subjetivas e estruturas objetivas não ofereceu a Bourdieu apenas um modelo da dialética entre agência e estrutura. Ela também está na raiz de sua teoria do “poder simbólico”, ou seja, do processo pelo qual relações de desigualdade e dominação são percebidas como naturais e evidentes tanto aos olhos de dominantes quanto de dominados. Como veremos em texto posterior desta série, o poder simbólico não é tanto uma forma específica de poder quanto a forma que quaisquer assimetrias de poder assumem quando são vividas como legítimas e, assim, historicamente reproduzidas pelos agentes nelas posicionados. Como já antecipamos, para Bourdieu, o principal dentre esses mecanismos de legitimação do poder é a naturalização ideológica da dominação e da desigualdade. Quando um habitus opera no mesmo cenário em que foi produzido, tal naturalização ocorre tanto no seu domínio motivacional quanto no seu domínio cognitivo.

Por um lado, se um habitus é a interiorização, na subjetividade individual, de certas condições sociais objetivas de existência, parte dessa interiorização envolve o que Bourdieu chamou de “adequação das expectativas subjetivas às chances objetivas” (1990: 23). A experiência reiterada de oportunidades ou restrições socioeconômicas, de “portas” abertas ou fechadas, de acesso fácil ou difícil a certos bens e recursos, toda essa experiência termina se traduzindo, com o tempo, em aspirações pré-ajustadas ao que os agentes percebem, intuitivamente, como suas “chances” realistas de vida. A adequação dos desejos subjetivos do agente a um senso do que é “possível” ou “impossível” para ele e para “aqueles como ele” gera, assim, condutas que terminam transformando suas probabilidades socialmente desiguais de “sucesso” e “fracasso” em realidade. Exemplos marcados desse processo são as formas diversas de “autoexclusão” pelas quais agentes que intuem suas desvantagens competitivas sequer entram em determinadas competições – p.ex., meninas expostas a um cenário com um número inexistente ou muito restrito de mulheres ocupando cargos políticos poderão, ao longo do tempo, simplesmente excluir o “tornar-se representante política” do domínio do realisticamente concebível e, portanto, desejável. Mas a naturalização de condições sociais e históricas contingentes de existência também opera no âmbito cognitivo do habitus. Juntando a teoria marxista da ideologia ao “kantianismo sociológico” de Durkheim, Bourdieu sustenta que os esquemas de percepção que os agentes mobilizam para conferir sentido e inteligibilidade ao mundo social derivam, com frequência, de sua socialização nesse mesmo mundo. Graças a tal “cumplicidade ontológica” entre esquemas subjetivos e contexto de socialização, as relações de dominação que perpassam esse contexto não são vistas pelos indivíduos nele socializados como arbitrárias, mas, ao contrário, como parte da ordem natural e evidente das coisas (e, uma vez mais, tanto para dominantes quanto para dominados).

De qualquer modo, já vimos que Bourdieu também reconheceu a existência de rupturas na cumplicidade ontológica entre o habitus e suas circunstâncias de funcionamento, rupturas às quais deu o nome de “efeito de histerese”. A “histerese” é um descompasso histórico entre o passado e o presente do agente, ou seja, entre as condições de geração e as condições de operação do seu habitus. Por designar situações em que um habitus é obrigado a funcionar em um cenário estrutural distinto daquele em foi gerado, a noção tornou-se um dos principais instrumentos analíticos de Bourdieu para tratar da mudança sócio-histórica. Não obstante, os efeitos que a histerese produz sobre as subjetividades e as condutas dos indivíduos por ela capturados não são uniformes, mas variáveis segundo contextos sócio-históricos específicos. Por exemplo, os “camponeses camponeizados” (paysans empaysannés) que Bourdieu estudou na Argélia dos anos 1950, socializados em uma economia rural-tradicional e lançados repentinamente em uma economia urbano-capitalista, foram empurrados a uma posição social tão marginal que vários deles refugiaram-se na postura resignada que Bourdieu chamou de “tradicionalismo do desespero”. No mesmo cenário, os “camponeses descamponeizados” (paysans dépaysannés), pessoas confusamente expostas aos mundos tradicional e moderno, acabaram desenvolvendo um “habitus clivado”, uma subjetividade internamente dividida que dificultava sua integração feliz a qualquer desses meios.

Nem todos os casos de histerese discutidos por Bourdieu se resumem, entretanto, a dolorosas inadaptações. Em Homo Academicus (2011: cap.5), ao investigar a insurreição estudantil de Maio de 68 na França, ele mostra um desajuste entre expectativas subjetivas e condições objetivas que levou tanto ao questionamento crítico quanto à transformação consciente de tais condições estruturais por meio de uma ação coletiva. A despeito de suas críticas obstinadas a retratos intelectualistas da conduta humana, os quais superestimariam o quanto somos movidos pela reflexão consciente, o sociólogo francês usa o exemplo dos “sessenta-e-oitistas” (soixante-huitards) como demonstração de que a ruptura da “cumplicidade” entre estruturas subjetivas e objetivas, entre habitus e campo, possibilita a passagem da práxis ao logos, do senso prático à reflexividade crítica como motor da ação.

Pois bem. Aqui, nos aproximamos dos limites do modelo teórico de Bourdieu de uma forma que escapa, espero, tanto à caricatura construída pela bourdiofobia quanto ao herói intocável da bourdiolatria (aquele que, ao solucionar todos os problemas da teoria sociológica, deixou a nós poucas opções além da fidelidade à igreja bourdivina).

Isto, no entanto, é assunto para outro dia.

Referências


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________Homo academicus. Florianópolis, UFSC, 2011.
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WACQUANT, Loïc. “Habitus”. In: International Enciclopedia of Economic Sociology. Milan Zafirovski (ed.). Londres, Routledge, 2004b. [Tradução: Esclarecer o habitus. Educação & Linguagem, 10, 16, 63-71, 2007.

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