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Bourdieu em pílulas (8): um percurso intelectual, por Gabriel Peters

Bourdieu jamais se cansou de desvelar as indignidades que a operação cotidiana do mundo social torna invisíveis pela dissimulação ideológica.

Por Gabriel Peters

Notinha preliminar: O presente texto apresenta brevemente a trajetória acadêmica de Pierre Bourdieu. Nesse sentido, embora seja a oitava parte de uma introdução à sua obra em doses controladas, o post que vai abaixo bem que merecia figurar no início dessa série, não no final – no introito, em vez do cabo, como diz o outro. Seja como for, o propósito dessas linhas é combinar a apresentação sistemática do esquema analítico de Bourdieu, feita nos posts anteriores, a uma visão mais diacrônica do seu percurso intelectual.

O “miraculoso” Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu nasceu em 1930 em uma pequena vila montanhesa no Béarn, província rural no Sudoeste da França. Como revela a trajetória profissional de seu pai, que passou de agricultor a carteiro da vila, o meio social do menino misturava traços camponeses e pequeno-burgueses. O trajeto biográfico que culminaria na sua madura consagração acadêmica foi, nesse sentido, próprio de um “miraculè”, expressão pela qual os franceses se referem a pessoas de origens populares que conquistam mobilidade social ascendente graças ao sucesso educacional. O caminho “milagroso” desenhado por Bourdieu o levou de um contexto sociorregional desprestigiado e dominado na França ao cume do sistema acadêmico daquele país: uma cátedra no Collège de France, em Paris, que ele ocupou de 1981 até pouco antes de falecer em 2002.

É comum que o êxito dos “miraculosos” os estimule a comemorar as chances de mobilidade social propiciadas pela instituição escolar. Em contraste com tais celebrações da educação meritocrática, Bourdieu mobilizaria suas experiências de socialização dividida ou “clivada” entre dois meios sociais para tecer uma sociologia crítica do sistema educacional. Ademais, no percurso intelectual do autor, a sociologia da educação se revelaria parte de um programa analítico mais ambicioso: uma teoria do “poder simbólico”, isto é, dos processos em que relações arbitrárias de dominação e desigualdade são vividas como naturais e evidentes – portanto, legítimas – aos olhos tanto de dominados quanto de dominantes.

Um ambivalente aspirante a filósofo

No final da década de 1940, após uma passagem dolorosa pelo internato que ele evocou nos momentos mais confessionais de seu Esboço de autoanálise (2005), Bourdieu foi aceito na prestigiosa École Normale Supérieure (ENS). O ambiente acadêmico em que o jovem estudante se formou era dominado pela figura de Jean-Paul Sartre e, de modo mais geral, por uma hierarquia de valor que tomava a filosofia como uma espécie de disciplina-rainha. Ao graduar-se em filosofia em 1954, Bourdieu parecia trilhar, nesse sentido, o percurso então visto como obrigatório para quaisquer aspirantes à vida intelectual. Entretanto, mesmo antes de passar da filosofia às ciências sociais, ele se viu atacado de antipatia pelo estilo do “intelectual total” corporificado em Sartre. Segundo o jovem aluno da École, o famoso existencialista pecava não apenas pela autoconfiança apressada e opiniosa com que se pronunciava sobre os assuntos mais diversos, mas também por uma ausência de reflexão acerca dos privilégios sociais e das ilusões epistemológicas que se ligam à condição mesma de pensador – ao que Bourdieu viria a denominar de “visão escolástica” (2001a: 23).

Durante os estudos formativos de Bourdieu na ENS, o historiador das ciências Georges Canguilhem despontou ao normalien como exemplar de um ethos intelectual que discrepava positivamente daquele de Sartre. Em vez da irresponsabilidade opiniosa, Canguilhem procedia através de investigações metódicas e intelectualmente rigorosas de questões de pesquisa bem delimitadas – como, por exemplo, as visões históricas de “doença” e “saúde” que ele examinou em sua obra clássica O normal e o patológico [1943]. Visto no seu contexto intelectual, o trabalho de Canguilhem é parte da tradição francesa de “epistemologia histórica das ciências”, uma linha de pensamento que incluía também autores como Gaston Bachelard, Jean Cavaillés, Alexandre Koyré e Julles Vuillemin. Bourdieu sempre se apresentou como devedor dessa tradição nas suas concepções de método científico em geral e de método sociocientífico em particular. Juntamente com as lições de Cassirer sobre o pensamento relacional na ciência moderna, o “racionalismo aplicado” de Bachelard é a principal influência epistemológica sobre a sociologia de Bourdieu. Tal influência se evidencia em O ofício do sociólogo (Bourdieu et al., 2004), um “tratado metodológico” que ele publicou em coautoria com Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron em 1968. O livro está estruturado em termos dos “atos epistemológicos” que Bachelard reputava fundamentais em qualquer ciência: a “ruptura epistemológica” com visões de senso comum, a “construção do objeto” pelo recurso à teoria e, por fim, a verificação ou “constatação” empírica dos fatos tratados.

A encruzilhada argelina

Bourdieu mostrou-se cedo insatisfeito, como vimos, com a roupagem existencialista da fenomenologia desenvolvida por Sartre. Ainda assim, seu período de formação na ENS foi marcado pelo estudo atento de outras figuras centrais na filosofia fenomenológica no século XX, como Edmund Husserl, Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty. O traço da fenomenologia que mais apelou à inteligência de Bourdieu foi um retrato da subjetividade humana como “lançada” (Heidegger) ou “encarnada” (Merleau-Ponty) em um mundo social partilhado com outros, respondendo às demandas de tal mundo menos através da reflexão explícita do que por meio de um saber tácito e pré-reflexivo – do que Bourdieu posteriormente chamaria de “senso prático”. Ali pelo meio dos anos 1950, influenciado pela fenomenologia, Bourdieu cogitou redigir uma tese de doutorado em filosofia, sob orientação de Canguilhem, sobre “as estruturas temporais da vida afetiva”. As investigações de Bourdieu sobre as variedades socioculturais da experiência do tempo se espraiariam efetivamente por toda a sua obra, de seu exame da sofrida inadaptação de ex-camponeses ao capitalismo na Argélia da década de 1950 até seu retrato tardio dos desempregados na França da década de 1990. No entanto, Bourdieu nunca completaria seu doutorado. Em 1955, ele seria mandado para a Argélia, então sob a dominação colonial da França, para o cumprimento de seu serviço militar obrigatório. Ele chegava ao território argelino em um momento de intensificação do ciclo de violência entre o exército francês, de um lado, e a insurgência anticolonial capitaneada pela Frente de Libertação Nacional (FLN), de outro.

Antes mesmo de desistir de escrever uma tese de doutorado sobre a fenomenologia da vida afetiva, Bourdieu sentiu-se instado a produzir, para uma audiência francesa pobremente informada, um retrato tão realista quanto possível das condições econômicas, sociais e políticas em que a Argélia se encontrava. Esta empreitada, que principiou como o cumprimento de um “dever cívico”, logo se transformaria em um interesse obsessivo de Bourdieu. Após o encerramento de seu serviço militar obrigatório em 1957, ele decidiu permanecer no país, ocupando um cargo de professor na Universidade de Argel. O jovem filósofo mergulhou de cabeça no estudo da sociedade argelina e de seus diversos grupos, como a comunidade rural da Cabília que se tornaria tão crucial à formulação de sua “teoria da prática”. O período entre 1957 e 1961 consiste na “encruzilhada etnossociológica” de Bourdieu, os anos de aprendizado nos quais ele treinou a si próprio na investigação social, experimentando livremente com as mais diversas técnicas de pesquisa: da coleta de dados estatísticos à entrevista em profundidade, da observação participante ao uso de testes de Rorschach (!!!!). A utilização dessa multiplicidade de ferramentas investigativas que marca os primeiros passos de Bourdieu como etnógrafo e sociólogo pode ser vista, com o benefício da visão retrospectiva, como o nascedouro do pluralismo metodológico que caracteriza suas pesquisas da maturidade.

Ao longo da segunda metade dos anos 1950, o “choque de realidade” experimentado por Bourdieu em uma Argélia perpassada pela guerra intensificou sua insatisfação com a filosofia e provocou sua “conversão” definitiva às ciências sociais – o termo é do próprio autor (2005: 87). A transição acarretava, sem dúvida, um decréscimo substancial no prestígio intelectual ou “capital simbólico” associado ao status de filósofo, mas também foi facilitada pelo imenso respeito adquirido pela etnologia graças às obras de Lévi-Strauss na década de 1950. O enorme impacto do autor de Tristes Trópicos [1955] sobre Bourdieu torna-se óbvio à luz do fato de que as formulações mais sistemáticas de sua “teoria da prática” tomariam a forma de um diálogo crítico com o estruturalismo lévi-straussiano, tendo a sociedade cabila como referente empírico primordial.

Em 1958, Bourdieu publicou seu primeiro livro: Sociologia da Argélia. Nesta obra, o autor noviço discute as estruturas socioeconômicas e as tradições culturais dos diferentes grupos árabes e berberes (p.ex., os Cabila) que formavam a população argelina. Embora atento às suas diferenças, Bourdieu também explora as características partilhadas que autorizam o retrato desses grupos argelinos como “variações de um mesmo tema” (Bourdieu, 1960: 92). Já no próprio título, o livro questiona a distinção disciplinar entre a “sociologia” como o estudo das sociedades ocidentais “avançadas”, de um lado, e a “etnologia” ou “antropologia” como o estudo de sociedades não ocidentais “primitivas”, de outro. No cenário sociopolítico da guerra entre rebeldes argelinos e o exército francês, tal separação se atrelava a um etnocentrismo que funcionava como apoio ideológico à dominação colonial. No percurso intelectual mais amplo de Bourdieu, passar ao largo da diferenciação entre antropologia e sociologia significava desenvolver um modo de interrogação sociológica que já incluía uma “sensibilidade antropológica” entre os seus ingredientes centrais. Em termos concretos, isto implicava o uso de insights gerados na investigação de sociedades não ocidentais com vistas a uma análise mais crítica e criativa do próprio Ocidente moderno. Assim, por exemplo, a caracterização da dominação simbólica que Bourdieu teceu a partir de sua etnografia dos Cabila na Argélia foi posteriormente aplicada por ele à pesquisa dos próprios contextos modernos de sua França nativa. Seu uso do teorema da “cumplicidade ontológica” entre estruturas objetivas e estruturas subjetivas fornece uma ilustração desse procedimento. Enquanto Durkheim e Mauss supuseram que a homologia entre estruturas sociais e estruturas mentais ocorreria apenas nas sociedades que chamaram de “primitivas”, Bourdieu viria a encontrá-la na legitimação ideológica das assimetrias de classe na moderna sociedade francesa (2007), assim como nas competições interiores ao campo acadêmico em que ele próprio estava embebido (2011).

Retornemos às experiências de Bourdieu na Argélia. Não há dúvida de que ele se comoveu profundamente diante dos sofrimentos atravessados pela população argelina, os quais motivaram, desde cedo, sua simpatia pela causa da independência completa da Argélia em relação à França. No entanto, também desde o início, o jovem pesquisador cultivou o hábito de “sublimar” suas paixões políticas e impulsos normativos, examinando os fenômenos que o impactavam pessoalmente com os instrumentos rigorosos da ciência social. De qualquer modo, apesar desse estilo mais indireto de ação política, o contato próximo de Bourdieu com intelectuais críticos ao regime colonial francês terminou colocando-o no radar de uma facção de extrema direita do exército da França. Informado por uma autoridade militar que esse grupo o incluíra em uma lista de assassinatos planejados, ele decidiu abandonar a Argélia às pressas em 1961 – ano anterior ao término da guerra e à conquista da independência argelina.

Tristes campesinos

De volta à França, Bourdieu teve a sorte de contar com um patrono intelectual de prestígio, o jornalista e sociólogo Raymond Aron, que logo integrou Bourdieu ao “Centro Europeu de Sociologia Histórica” que ele dirigia na “Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais” (École des Hautes Études en Sciences Sociales [EHESS]) em Paris. Já em 1963 e 1964, respectivamente, foram publicadas as obras que apresentavam os estudos etnográficos e estatísticos que Bourdieu conduzira na Argélia com o apoio de colaboradores: Travail et travailleurs en Algérie (“Trabalho e trabalhadores na Argélia”), escrito com Alain Darbel, Jean-Paul Rivet e Claude Seibel; e Le déracinement (algo como “O desterro” ou “O desenraizamento”), escrito com Abdelmalek Sayad.


Vistas retrospectivamente, ambas as obras constituem estudos sociológicos do que o Bourdieu da maturidade denominaria “efeito de histerese” (1983: 64), isto é, circunstâncias sócio-históricas nas quais agentes socializados em determinadas condições de existência (p.ex., uma economia rural tradicional, baseada em ciclos de dádiva) são forçados a atuar em cenários sociais radicalmente novos (p.ex., uma economia urbana e capitalista, fundada sobre a troca monetária e o trabalho assalariado). Trabalho e trabalhadores na Argélia examina as dificuldades dos ex-camponeses que se tornaram subempregados ou desempregados nas cidades argelinas (para a versão resumida, ver Bourdieu [1979]). O desterro, por sua feita, acompanha o drama de indivíduos obrigados a deixar suas terras para morar em “centros de reagrupamento” estabelecidos pelo governo francês durante sua guerra contra os rebeldes argelinos.

Como sublinhamos anteriormente, a ciência social praticada por Bourdieu tencionava transcender a separação disciplinar entre a antropologia como estudo do “outro” sociocultural e a sociologia como estudo da sociedade de que se é “nativo”. Para levar essa transcendência a termo, Bourdieu se engajou, lá pelo início da década de 1960, em uma “etnografia multilocal” que articulava suas investigações na Argélia a um exame da própria vila bearnesa em que ele havia crescido – “uma espécie de Tristes tropiques às avessas” (Bourdieu;Wacquant, 1992: 163). Através dessa empreitada dupla de pesquisa, ele quis mostrar que a sociologia pode alimentar-se de uma dialética entre a “familiarização do exótico” propiciada pelo estudo antropológico da alteridade, de um lado, e a “exotização do familiar” necessária para que a sociologia rompa com as representações de senso comum do mundo social, de outro. Um dos frutos de sua análise no Béarn foi um comovente retrato do “baile dos solteiros” em “O camponês e seu o corpo” ([1962] 2006). Nesse escrito, o autor investigou bearneses que, assim como os desterrados argelinos, haviam sido socializados conforme tradições camponesas, mas foram repentinamente colocados em descompasso com circunstâncias socioculturais novas. Os “solteiros” de que trata o artigo eram primogênitos de famílias camponesas cujo “capital matrimonial” foi severamente desvalorizado aos olhos de suas possíveis cônjuges, as quais, com o progresso da urbanização, passaram a contrastá-los negativamente com os habitantes da cidade.

O ofício do sociólogo

Solidamente instalado na EHESS, Bourdieu mergulharia com energia extraordinária em um labor sociológico que combinava uma teorização original com pesquisas empíricas sobre uma multiplicidade impressionante de temas. Tal como praticado por Bourdieu, o ofício de sociólogo recuperava uma tradição durkheimiana de ciência social colaborativa, o que é evidenciado pelos livros e artigos que o autor publicou em coautoria com Luc Boltanski, Robert Castel, Jean-Claude Chamboredon, Jean-Claude Passeron, Yvette Desault, Monique de Saint Martin e, mais tarde, Loïc Wacquant, entre várias/os outras/os. Os herdeiros ([1964] 2014) e A reprodução ([1970] 1975), ambos escritos com Passeron, foram devotados ao exame do papel do sistema escolar na legitimação ideológica das desigualdades de classe. Se a veia crítica do primeiro livro já havia introduzido tensões na relação de Bourdieu com Aron, os dois viriam a romper relações em meio a desavenças políticas concernentes ao movimento de Maio de 68. Ainda que mantivesse ceticismo quanto ao que via como ilusões voluntaristas dos estudantes que protagonizavam tal movimento, Bourdieu era muito mais simpático às suas demandas do que o seu até então patrono institucional (para mais detalhes, vale consultar o trabalho magnificamente detalhado de Antonio Carlos Dias Junior sobre Aron). Quanto ao livro A reprodução, seu impacto na sociologia da educação faz-se sentir até hoje. Como uma das obras de Bourdieu cuja difusão internacional foi mais precoce, A reprodução também continua estimular os ataques frequentes ao “reprodutivismo” do seu modelo teórico, uma crítica que tem seu componente de verdade, mas também adquire costumeiramente roupagens bastante simplistas. De qualquer modo, vista na pintura mais abrangente da trajetória intelectual de Bourdieu, a sociologia da educação aparece como capítulo de um programa ambicioso de análise das interseções entre cultura e poder. Dois trabalhos colaborativos da década de 1960 também podem ser alocados nesse programa, um relativo aos usos sociais da fotografia (Bourdieu et. al., 1965), outro versando sobre frequentadores de museus na Europa (Bourdieu; Darbel [1969], 2003).

Em 1968, vem a lume a já citada peça sobre as fundações epistêmicas da sociologia: O ofício do sociólogo. Em 1972, Esboço de uma teoria da prática traz a primeira apresentação sistemática de sua teoria praxiológica do universo social (para o coração livro, ver Bourdieu [1983: 46-81]). A teoria da prática desenvolvida no livro é exposta como uma transcendência crítica da alternativa entre modos “objetivistas” e “subjetivistas” de conhecimento do mundo societário. A argumentação de Bourdieu escolhe o estruturalismo de Lévi-Strauss como seu interlocutor principal (ainda que de maneira nenhuma exclusivo) e a vida social cabila como terreno privilegiado para a exemplificação empírica de seu esquema teórico. Uma versão retrabalhada das mesmas ideias desse livro de 1972 aparece, em 1980, com o título O senso prático ([1980] 2009). No ano anterior, Bourdieu havia publicado A distinção ([1979] 2007), uma monumental investigação dos estilos de vida das classes na França – o livro que é, para muitos, sua obra-prima. Dez anos depois, o autor “atualizaria” seu diagnóstico da sociedade de classes francesa em A nobreza de estado [1989].

Nos produtivíssimos anos 1960 e 1970, fluem da sua pena textos que são marcos decisivos na elaboração de seu quadro teórico-metodológico de análise da vida social. Um artigo sobre “Condição de classe e posição de classe” ([1966] 1974: 3-25) estabelece, em diálogo crítico com Marx e Weber, uma conexão entre as noções de classe e status. A articulação entre estes conceitos pode ser interpretada como uma preliminar teórica ao argumento d’A distinção, pois implica considerar marcos simbólicos de status, tais quais os gostos que caracterizam um “estilo de vida”, como manifestações ideológicas da pertença de classe. Em 1967, em um posfácio ao livro Arquitetura gótica e pensamento escolástico, de Erwin Panofsky, Bourdieu burila dimensões da sua principal ferramenta conceitual para abordar o agente humano em sociedade: a noção de habitus. Ainda no mesmo ano, ele e seu parceiro Passeron produzem um texto sobre a luta entre “filosofias do sujeito” e “filosofias sem sujeito” no cenário intelectual francês: “Sociologia e Filosofia na França desde 1945” [1967]. Como seu título indica, o artigo prefigura, é claro, a crítica aos modos “subjetivistas” e “objetivistas” de conhecimento do social que marcaria seus livros posteriores sobre a teoria da prática. Ao mesmo tempo, ao explicar os embates intelectuais entre a “apologia” e a “crítica” do sujeito em termos das arenas estruturadas de competição em que opera o homo academicus, o artigo também constitui um dos primeiros esforços bourdieusianos de sociologia reflexiva ou “sociologia da sociologia”. Aquelas arenas estruturais viriam a ser definidas como campos no léxico sociológico de Bourdieu. O conceito foi inicialmente ensaiado no artigo “Campo intelectual e projeto criador” ([1966] 1968), vindo a assumir formulações mais sistemáticas em textos de sociologia da religião que ele publicou em 1971: “Gênese e estrutura do campo religioso” e “Uma interpretação da sociologia das religiões de Max Weber” (1974: 79-98; 337-361).

Estágios importantes no refinamento do conceito de campo são dois escritos de 1975: a) um artigo sobre o campo científico (1983: 122-155 [1975]), temática para a qual ele se voltaria em detalhe no final de sua vida; b) um texto sobre “a ontologia política de Martin Heidegger”, cuja versão expandida se tornaria um livro em 1988. A obra sobre os vínculos entre ontologia filosófica e posição política no pensamento de Heidegger é concebida por Bourdieu como exemplificação empírica de uma hipótese central na teoria dos campos. Trata-se do postulado de que forças externas a um campo autônomo só o influenciam de modo mediado ou “refratado” por seus mecanismos interiores. O sociólogo intervém na discussão encarniçada a respeito das conexões de Heidegger com o regime nazista ao explorar as maneiras pelas quais o pensador germânico realizou precisamente tal trabalho de refração. Em outras palavras, o filósofo alemão traduziu sistematicamente certos motivos político-ideológicos associados à “revolução conservadora” na Alemanha de sua época nos termos específicos ao campo filosófico, isto é, do vocabulário, dos problemas e das referências histórico-intelectuais tomadas como legítimas naquele espaço ([1988] 1989).

Bourdieu recebeu sua certificação social magna de reconhecimento acadêmico, em relação à qual ele se manteria tremendamente ambivalente até o fim de sua vida, ao assumir uma cátedra no Collège de France em 1981. De modo condizente com o caráter reflexivo de sua sociologia, sua aula inaugural na nova posição tratou sociologicamente do próprio fenômeno da aula inaugural ([1982] 1988). O exercício reflexivo continuaria com o bombástico Homo academicus ([1984] 2011). Em resposta ao impacto que suas ideias começaram a produzir para além dos muros da academia, Bourdieu havia publicado, em 1980, o livro Questões de sociologia ([1980] 2003a). Trata-se de uma compilação de pequenos ensaios, conferências e entrevistas que apresentam suas ideias sociológicas em uma linguagem mais acessível do que aquela até então característica de seus textos. Tal formato didático reapareceria em obras como Coisas ditas ([1987] 1990) e Razões práticas ([1994] 1996), livros que oferecem algumas das melhores vias introdutórias ao pensamento sociológico de Bourdieu. A meu ver, o texto que alcança uma conjugação ótima entre acessibilidade da linguagem, de um lado, e respeito à complexidade das suas ideias, de outro, é o livro que Bourdieu produziu em colaboração com Loïc Wacquant em 1992: Um convite à sociologia reflexiva ([1992] 2005).

Ainda em 1992, veio à baila As regras da arte ([1992] 1996), um longo exame sociológico da autonomização do campo artístico na França do século XIX. O livro mergulha nas circunstâncias sócio-históricas que cercaram a emergência e a consolidação do ideal da “arte pela arte” capitaneado por autores como Gustave Flaubert. Sempre o defensor da articulação entre teoria e empiria, Bourdieu combina sua exploração desse cenário histórico particular a uma reflexão teórica sobre as condições de possibilidade de uma ciência de obras de arte. Sempre o adversário de dualismos, o autor busca superar a dicotomia entre leituras “externalistas” e “internalistas” de manifestações artísticas e outras produções simbólicas (mito, religião, filosofia, ciência etc.). Sempre a encarnação da sociologia como vocação, Bourdieu rechaça, por um lado, abordagens internalistas que desconectam obras artísticas de quaisquer determinações sócio-históricas exteriores a elas. No entanto, ele também ataca o externalismo de perspectivas que simplesmente reduzem tais obras às posições que seus produtores ocupam no espaço social mais amplo (classe, gênero, etnicidade etc.). Essas abordagens externalistas, dentre as quais Bourdieu singulariza as teorias marxistas da literatura que a investigam a partir dos condicionamentos de classe dos seus produtores, passariam ao largo de um fator explicativo fundamental: o papel causal dos próprios campos de produção cultural na moldagem das obras. Graças à autonomia conquistada pelos campos de produção simbólica, as influências exteriores a eles, como as ideologias de classe por exemplo, só operam no seu interior quando “refratadas” por suas respectivas lógicas internas. Tratando destas questões de modo detalhado, o livro As regras da arte tornar-se-ia o que temos de mais próximo à obra sobre a teoria geral dos campos que Bourdieu prometeu em diversos momentos – permitindo-se mesmo arriscar um título provisório: “A pluralidade dos mundos” (1990: 34) -, mas infelizmente não pôde concluir.

O intelectual público

Sublinhamos acima que, embora a práxis intelectual de Bourdieu tenha sido alimentada desde cedo por paixões políticas, ele frequentemente submeteu tais paixões a uma “sublimação”, mobilizando-as a serviço do projeto de uma ciência rigorosa do mundo social. Uma ilustração desse recurso a instrumentos científicos na análise de questões politicamente candentes é um livro coletivo, organizado por ele, sobre múltiplas instâncias de “sofrimento social” no mundo moderno: A miséria do mundo ([1993] 2003). A obra é nitidamente movida por uma crítica de esquerda às consequências humanas das políticas neoliberais das décadas de 1980 e 1990 nos Estados Unidos e na Europa, mas também pretende lançar luz sobre aspectos da privação e da exclusão social que escapam comumente às estatísticas econômicas. Uma importância central é conferida aos sofrimentos psíquicos acarretados pela perda de sentido e valor social, como no caso dos desempregados que são não apenas materialmente privados de um salário, mas também da estima social e das “razões de ser” associadas a um emprego.

Ao longo dos anos 1990, fazendo uso da visibilidade que ele havia adquirido fora do mundo acadêmico, Bourdieu ousou atribuir um caráter menos “sublimado” – ou mais abertamente político – às suas intervenções na esfera pública, como indicam seus escritos e falas em prol dos mecanismos de proteção social alvejados pelo desmantelamento neoliberal do estado de bem-estar, em apoio aos desempregados e aos imigrantes ilegais na Europa ou, ainda, contra o bombardeio da Sérvia, em 1999, pela Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN) (Bourdieu, 1998; 2001b). A atuação frenética de Bourdieu como intelectual público, cuja celebridade na França e fora dela seria facilmente comparável àquela anteriormente alcançada por Sartre e Foucault, foi bem captada no documentário dirigido por Pierre Carles: A sociologia como esporte de combate [2001].

O título desse filme alude a uma crença central do Bourdieu maduro, expressa nos seus Contrafogos em termos de uma distinção entre “neutralidade axiológica” e “objetividade científica” (ibid.: 9). Rejeitando o primeiro ideal sem abdicar do segundo, ele defendeu que a sociologia constitui uma ferramenta ético-política de intervenção no mundo social não apesar da sua objetividade, mas por causa dela. Nesse sentido, embora suas facetas de “sociólogo acadêmico” e “intelectual público” tenham assumido diferentes graus de visibilidade ao longo de sua carreira, ambas sempre estiveram presentes no seu trabalho. Se, por um lado, suas intervenções na arena pública já datavam de seu retorno da Argélia em 1961 (Bourdieu, 2002), suas reflexões sociológicas, por seu turno, continuaram em movimento na década de 1990. 

Em 1998, ele publica A dominação masculina (1999). O tema das relações de gênero oferecia uma ilustração contundente da intersecção entre cultura e poder – ou entre modos de conhecimento e modos de dominação – que está na raiz da violência simbólica. O sentido em que as classificações de gênero propiciam uma naturalização ideológica de assimetrias de poder entre homens e mulheres não se reduz ao fato de que aquelas classificações levam a uma vivência da dominação masculina como a ordem evidente das coisas. Tais classificações também se ancoram em concepções do “masculino” e “feminino” que percebem modos socializados de conduta, como as maneiras de conduzir o próprio corpo segundo o que se espera socialmente de uma mulher ou de um homem (i.e., formas de “hexis corporal”), como expressões de diferenças naturais. Ainda que, naquele livro, os diálogos de Bourdieu com as pensadoras feministas se resumam, infelizmente, a um punhado de menções en passant, sua perspectiva apresenta abertamente a desmistificação sociológica da dominação naturalizada como ferramenta de combate político. Embora Bourdieu não desenvolva esse ponto em detalhe, a dimensão normativa de sua sociologia reflexiva também se aproxima da ideia feminista de que “o pessoal é político” ao atar a política da transformação do mundo social a uma ética da autotransformação.

O último curso que Bourdieu ministrou no Collège de France, pouco antes de falecer, tratou da sociologia da ciência. O curso foi publicado em livro com o título Ciência da ciência e reflexividade [2001]. O “racionalismo historicista” ou “historicismo racionalista” que o autor desenvolve nessa obra já havia sido elaborado, entretanto, em um livro anterior que é uma espécie de testamento intelectual: Meditações Pascalianas (1997 [2001a]). Esse escrito belíssimo contém tanto uma sociologia da filosofia quanto uma espécie de filosofia sociológica; mais precisamente, um acerto de contas com as aspirações e limites da filosofia, seguido de uma “antropologia filosófica”, ou seja, de uma concepção mais geral da condição humana que ele se permitiu extrair de uma longa carreira de estudos sociológicos. O núcleo dessa concepção é a ideia de que o ser humano é animado por um anseio de sentido e justificação para sua própria existência, os quais só podem derivar dos certificados coletivos de valor que Bourdieu reúne na categoria geral de “capital simbólico”. A noção de “capital simbólico” também assume um papel central, aliás, na sua tardia sociologia histórica do estado moderno ([1989-1992] 2014). Ao reclamar para si o monopólio legítimo não apenas da violência física, mas também da violência simbólica, o estado moderno teria se tornado, no que toca ao capital simbólico, o equivalente institucional do que o banco central é para o capital econômico.

A visão do homo socius aventada por Bourdieu desemboca, por fim, em uma “filosofia da miséria”. Apesar de reabilitar a velha expressão proudhoniana espinafrada por Marx, Bourdieu esposa uma filosofia da miséria que está “mais próxima da desolação dos velhos marginalizados e derrisórios de [Samuel] Beckett do que do otimismo voluntarista tradicionalmente associado ao pensamento progressista” (1988: 56). Dado que os certificados de valorização social são bens escassos e, portanto, só podem ser obtidos de maneira diferencial e distintiva, o mundo societário gera uma competição por reconhecimento e valor que termina condenando diversos indivíduos à miséria simbólica, isto é, à “miséria do homem sem missão nem consagração social” (idem). Como uma conclusão da sua obra sociológica, a temática era apropriadíssima. Tratasse dos camponeses expropriados na Argélia dos anos 1950 ou dos desempregados na França dos anos 1990, Bourdieu jamais se cansou de desvelar os sofrimentos e indignidades que a operação cotidiana do mundo social torna invisíveis pela dissimulação ideológica.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Sociologie d’Algérie. Paris, Presses Universitaires de France, 1958. 
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1 comentário em “Bourdieu em pílulas (8): um percurso intelectual, por Gabriel Peters

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