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Tratamento precoce: negacionismo ou alt-science?, por Letícia Cesarino

Por Letícia Cesarino (UFSC)

O tema do tratamento precoce voltou aos holofotes com a participação, na CPI da Covid, de vários médicos que têm defendido a prática como forma de combater a pandemia. Há ótimas análises sobre o tema que fogem do enquadre do negacionismo puro e simples, mais presente senso comum. O ecossistema que se formou em torno dessa prática é extenso e pujante, tendo portanto uma eficácia social própria - independente da questão se os remédios funcionam, ou não. A meu ver, falta entender mais a fundo como a eficácia do tratamento precoce diz respeito não exatamente ao seu conteúdo particular - ao remédio x ou y –, mas ao enquadre alternativo que esse movimento propõe para o combate à pandemia como um todo. É nessa camada que ele ressoa fortemente com a abordagem populista do presidente, sem se confundir totalmente com ela.

Esse enquadre é o que Guilherme Casarões e David Magalhães chamaram, em uma perspicaz analogia com a alt-right, de alt-science, ou ciência alternativa. Enquanto tal, ela se diferencia da ciência do mainstream, mas não se situa completamente fora do campo científico. Aí está, na minha visão, a sua potência desestabilizadora, e principal fonte de sua eficácia. Como o populismo iliberal na política, ele parte das franjas do sistema científico para se opor ao seu mainstream, transformando o que era marginal em central e vice-versa - virando, assim, todo o sistema “do avesso”.

O problema fundamental do tratamento precoce é portanto o mesmo do seu maior propagandista. Assim como o populismo do presidente corre por fora do jogo da democracia liberal, alimentando e parasitando as suas fragilidades, o ecossistema do tratamento precoce corre por fora do jogo científico, vicejando no estado de exceção epistêmico intensificado na pandemia. Meu argumento em uma fala recente foi que os dois fenômenos se parecem pois são, estruturalmente, o “mesmo”: o tratamento precoce enquanto transformação do bolsonarismo num registro pandêmico.

Visto sob esse prisma, o problema da eficácia se desloca. A questão não é mais se algum desses medicamentos, aplicado em alguns pacientes, em algum momento específico da progressão da doença, pode de fato aliviar os sintomas da covid e ajudar o organismo a combater a doença. A questão é se ainda estão dadas, no ecossistema do tratamento precoce, as condições para que essa hipótese possa sequer ser testada adequadamente em bases científicas. Como buscarei demonstrar aqui, a gramática do tratamento precoce parece funcionar com uma lógica híbrida que combina alguns elementos de sistematicidade científica com fortes elementos de conspiritualidade, eu-pistemologia e antagonismo amigo-inimigo. Tratam-se dos mesmos elementos que, como argumentei em artigo recente, formam a base epistêmica do populismo digital - e não apenas o bolsonarista.

O termo tratamento precoce não tem, portanto, um referente bem delimitado no mundo real. Como sua versão política, ele circula muito mais como significante vazio, que articula em conexões parciais um público refratado caleidoscópico de médicos, remédios, dosagens, procedimentos, exames, protocolos não necessariamente coerentes - e nem necessariamente contraditórios - entre si. E assim como o bolsonarismo em geral viceja na causalidade circular e na temporalidade de crise permanente da atual infraestrutura cibernética, também esse ecossistema de alt-science emerge performativamente entre a prática e experimentações espontâneas em nível local, e os fluxos de influência online, que incluem, mas não se limitam, ao aparato de comunicação digital do presidente.

Paradigma e falseabilidade

Na filosofia da ciência, é notória a tese de Karl Popper sobre a falseabilidade como dimensão definidora do empreendimento científico. Já Thomas Kuhn, ao propor um outro modelo para a estrutura da história do desenvolvimento científico, destacou a alternância entre períodos de estabilidade dentro de paradigmas comuns - a chamada “ciência normal” - e períodos de crise do paradigma vigente e subsequente revolução e troca de paradigma. Esses períodos de crise constituem estados de exceção científicos onde, na ausência de um paradigma compartilhado pela comunidade de pares, não é possível a falseabilidade nos termos dos procedimentos padrão da ciência. Mas é possível em outros termos, não-científicos: Kuhn ponderou, por exemplo, sobre a potencial relevância de crenças religiosas de culto ao sol por parte de Kepler na sua opção pelo heliocentrismo de Copérnico. 

Como argumentaram Bruno Latour e Steve Woolgar numa etnografia de laboratório pioneira, em períodos de “ciência normal”, por outro lado, é possível produzir fatos estáveis por meios primariamente tecno-científicos. O poder da tecno-ciência estaria na sua capacidade neguentrópica, ou de redução de desordem. Isso se dá mediante uma série de procedimentos repetitivos que formam um circuito fechado de feedback loops que, nos termos da teoria da informação, conseguem transformar ruído em sinal. Assim, por exemplo, os ensaios experimentais devem ter controle das variáveis, para separar os efeitos da substância sendo testada dos efeitos de qualquer outro fator (seja ele, por exemplo, medicamentoso, genético ou ambiental). Devem ser randomizados, para separar o efeito placebo dos efeitos da substância-alvo. Devem ser duplo-cego, para evitar viés de registro por parte dos pesquisadores. Devem ser revisados por pares e publicados em periódicos reconhecidos pela comunidade da especialidade em questão, para garantir a reprodutibilidade e qualidade do estudo. E por aí vai.

O tratamento precoce carece de boa parte desses loops. A grande maioria dos estudos usados como evidência científica nesse ecossistema não foi submetida a ensaios randomizados controlados, e nem a revisão por pares em periódicos com mediação editorial de excelência. Como no populismo radical de direita, muitos desses médicos questionam a confiabilidade e a boa-fé da elite científica global. Referem-se a estes de forma irônica, como os “professores” e “cientistas” na torre de marfim. Alegam que os médicos comuns, que estão às margens da ciência do mainstream porém à beira do leito dos pacientes, teriam uma perspectiva sobre a doença mais próxima do “mundo real”. Sem grandes financiadores nem relações com a Big pharma, seriam, por isso, mais “livres” para acessar a realidade como ela é. Uma curiosa, mas não surpreendente, subversão do privilégio da perspectiva subalterna marxista - um tipo de canibalização da crítica que é, aliás, praxe também na alt-right.

Esses estudos estão alojados nas plataformas de pre-prints que explodiram durante a pandemia. Essa era uma tendência que já vinha se desenhando na ciência, e se liga a pressões pela sua neoliberalização. Phillip Mirowski já notara que a comercialização da ciência tendia ao enfraquecimento dos demorados processos de revisão por pares, ou sua substituição por ferramentas automatizadas como algoritmos. Como a direita iliberal, aqui também vemos a alt-science emergindo nas ruínas do neoliberalismo. Em entrevista recente à Jovem Pan, o criador de um dos primeiros protocolos de “hospitalização fora do hospital”, o dr. Roberto Zeballos, afirmou que não se importava se seus pre-prints disponibilizados nessas plataformas jamais fossem publicados em revistas de elite. O que ele queria era “abrir os olhos” da comunidade científica global para uma verdade sufocada pela grande indústria farmacêutica, mas revelada pelos humildes médicos que buscam salvar vidas experimentando com remédios baratos e sem patente.

Nas versões mais conspiracionistas dessa tese, as proposições do tratamento precoce não são falseáveis. Estudos demonstrando resultados contrários à eficácia dos remédios são ou ignorados ou enquadrados como seletivos ou mesmo fraudulentos. O caso da retratação de um estudo com resultados contrários à eficácia da hidroxi/cloroquina publicado no renomado periódico The Lancet é constantemente evocado como “prova” da não-confiabilidade das grandes revistas científicas. Mas, curiosamente, não levam em conta o fato de que a revista reconheceu o erro e despublicou o estudo. Diferente deles, que parecem nunca estar errados – e nem podem estar, pois seu sistema epistêmico é infalseável.

Ora, a não-falseabilidade é uma característica não do pensamento científico, mas do pensamento conspiratório. Neste ecossistema, argumentos que poderiam falsificar as hipóteses do tratamento precoce tendem a ser remetidos ao plano conspiratório dos elos causais ocultos. A verdade da “natureza” está sempre do lado da sua experiência imediata – é o que eles conseguem ver diretamente: a melhora dos seus pacientes. O que ameaça essa certeza é remetido a grandes causalidades de ordem “social”: a conspiração global unindo indústria farmacêutica, grande mídia e políticos corruptos. Essa verdade está aí, na internet, para quem quiser ver. Basta “fazer sua própria pesquisa” – contanto que se tenha, antes, tomado a pílula vermelha e mudado o registro cognitivo para a Gestalt correta.

Mesmo os acadêmicos às vezes precisamos dar “grandes saltos” para conectar os pontos em nossas explicações. Mas os procedimentos da ciência normal exigem que façamos isso de forma documentada e sujeita a procedimentos compartilhados e públicos de metodologia, organização epistemológica, revisão por pares. Muitas vezes os influencers do tratamento precoce avançam explicações que lembram, numa primeira impressão, teses como a de Conway e Oreskes sobre os mercadores da dúvida. Mas quando esses autores – historiadores da ciência – afirmam que a indústria do tabaco tinha um esquema montado para influenciar resultados científicos, eles o fizeram de forma documentada e falseável. Os autores explicitaram exatamente quais os procedimentos, fontes, e passo-a-passo utilizado chegar a essas conclusões, para que pudessem ser avaliados numa esfera acadêmica pública e compartilhada.

Os médicos do tratamento precoce, em boa parte, não fazem nada isso. Ancoram suas alegações sobre a conspiração global contra os medicamentos baratos e sem patente por parte da grande indústria farmacêutica, da Organização Mundial da Saúde, da China em elos causais que não são comprovados, nem revisados, nem portanto falseáveis na esfera científica coletiva. Pelo contrário, precisam, para sustentar seus argumentos de largo alcance, sair da esfera pública para se abrigar numa comunidade científica paralela, possibilitada pelas mesmas topologias digitais semi-subterrâneas que sustentam o populismo digital. Essas comunidades operam de forma inversa à norma da transparência na ciência do mainstream: isolam-se do contraditório, sendo infiltrados ou dissidentes sutil ou explicitamente excluídos. Exatamente o que a direita iliberal tem feito no âmbito da política.

Eu-pistemologia médica e conspiritualidade

Uma das características mais contundentes do ecossistema do tratamento precoce é o modo como ele reproduz tendências gerais do ambiente epistêmico da plataformização, capilarização e personalização da internet. Todas as três dimensões que mapeei lá atrás estão presentes de forma importante. No nível individual, há a eu-pistemologia: o papel central dos sentidos imediatos e da experiência pessoal nos processos de veridição. No nível da formação de grupo, temos o mesmo código amigo-inimigo do populismo, que isola esse ecossistema (o lugar da verdade) da manipulação e mentiras do mainstream da mídia e da ciência. E, em planos mais afastados, temos os elos causais ocultos, que são preenchidos com narrativas conspiratórias, frequentemente combinadas com uma gramática milenarista e/ou de forças invisíveis e espirituais.

Mas é uma coisa ver isso entre pessoas leigas, e outra, entre médicos que com frequência se dizem também cientistas. Ainda mais em se tratando de médicos que influenciam políticas públicas de combate à pandemia (ou que são convenientemente utilizados pelo governo federal para justificar a ausência delas). Na mesma participação na Jovem Pan citada acima, o dr. Zeballos defendeu apaixonadamente a confiança na experiência imediata, que “ninguém pode tirar de você”. Se alguém de disser que o Sol é verde, disse ele, e você o vê amarelo, confie nos seus sentidos individuais – mesmo se essa pessoa for um astrônomo.

O exemplo utilizado por ele para justificar a eu-pistemologia médica é tanto mais surpreendente quando nos lembramos que já está muito bem estabelecido na ciência da ótica que cores não são atributos dados, inerentes aos objetos. Elas são uma função da relação entre o órgão de visão de um organismo e o reflexo do objeto em uma certa faixa do espectro de radiação que esse órgão é capaz de captar. Pessoas humanas e abelhas, por exemplo, verão cores diferentes na mesma flor. Ilusões de óptica, truques mágicos e a psicologia da Gestalt deixam claro como a “certeza dos sentidos” não é uma base totalmente confiável para acessar o real – embora a cognição humana tenha evoluído, por boas razões adaptativas, para acreditarmos piamente que ela é.

Por isso é tão fácil gerar ondas de influência invisíveis em ambientes digitais. Já elaborei sobre isso em várias ocasiões, no caso do populismo. O tratamento precoce não escapa a essa tendência geral. O viés de confirmação é uma característica geral do nosso ambiente de mídia, feito para produzir algoritmicamente realidades personalizadas. Como uma charge do cartunista argentino Daniel Paz coloca de forma sintética: “como pode ser falso, se diz exatamente o que eu penso?” Mas um viés de confirmação na ciência vai frontalmente contra o espírito científico mais elementar. Os médicos do tratamento precoce argumentariam, no jogo de devolução de acusações típico da direita populista, que são os cientistas do mainstream que têm viés de confirmação. Em tese, isso de fato é possível. Mas a melhor forma de evitá-lo não é simplesmente confiar na experiência mediata ou no que circula na sua rede, mas implementar os procedimentos da ciência normal que o próprio ecossistema do tratamento precoce, na prática, está dispensando ou utilizando de forma frouxa.

Um sinal de que os mecanismos neguentrópicos da ciência não estão operando bem no ecossistema do tratamento precoce é o fato surpreendente de que, ali, não só a covid tem cura como ela parece ter inúmeras curas. Tudo parece funcionar contra a covid: corticoides, antibióticos, antimaláricos, antiparasíticos, vitaminas, minerais, esteroides… E a lista só aumenta, com a pipeline intensiva dos pre-prints, testemunhos individuais e “notícias” que brotam diariamente nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens. Os sites que agregam estudos favoráveis à ivermectina ou cloroquina oferecem uma profusão de números, gráficos, tabelas, publicações – uma mímese meio barroca dos portais científicos do mainstream. Esse padrão se repete no fluxo intensivo de conteúdos compartilhados nos grupos e perfis sobre o tema em aplicativos de mensagens e redes sociais.

Essa espécie de firehosing se materializou na CPI da Covid quando Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi trouxeram uma pilha enorme de papéis com supostas evidências a favor dos remédios do tratamento precoce. Ora, isso é o oposto do modo como Latour descreve etnograficamente a purificação do fato científico. A estabilização do fator de liberação chamado TRF(H) envolveu, pelo contrário, a transformação de uma profusão de anos de testes, substâncias, camundongos sacrificados, culturas celulares, cálculos, papéis impressos, conversas em uma única e elegante fórmula, referendada pela comunidade de pares: Pyro-Glu-His-Pro-NH. Não se chega a uma correspondência definitiva entre referente e mundo, mas reduz-se a equiprobabilidade a um mínimo. Como os autores colocam: a verdade “é o enunciado caro demais para ser disputado.”

Podemos pensar a alt-science também nesses termos, porém num sentido oposto. Ao invés de reduzir a equiprobabilidade a um mínimo, como na ciência normal, ela é continuamente sustentada, num ambiente de mídia onde o custo para disputar enunciados é quase zero. Como argumentei também para o caso do populismo bolsonarista, a gestão do risco é então feita por um tipo de hedging, apostando em várias frentes para maximizar o bônus e minimizar o ônus. Se a eficácia dos remédios não pode ser comprovada, ela também não pode ser facilmente falseada. Nessas condições, com tantas apostas lançadas pelo ecossistema do tratamento precoce, não devemos nos surpreender se, por acaso, uma delas acertar o milhar.

Mas o fato é que, até o momento, não há comprovação definitiva no topo da pirâmide de evidências para nenhuma dessas substâncias. Se não é nem um paradigma comum, nem um fato científico estabilizado que dá a “liga” a isso tudo, então o que é?

Minha impressão é que, em parte, as “coincidências” que unem o uso dos remédios e a melhora dos pacientes são ligadas através do tipo de sistema epistêmico que Ward e Voas chamaram de conspiritual: a convergência, cada vez mais comum, entre gramáticas conspiratórias e espirituais. Muitos dos médicos influencers do tratamento precoce, como a dra. Raíssa Soares ou o dr. Rubens Amaral, são cristãos, com aparentes tendências carismáticas. Eles costumam incluir causalidades inescrutáveis – Deus, o Espírito Santo – nas suas narrativas de sucesso e cura, sem contradição aparente com a linguagem técnica que também utilizam. Mas a fé cristã é apenas o exemplo mais óbvio, inclusive no que toca a proximidade com o bolsonarismo. Outros casos são mais interessantes.

O dr. Ricardo Zimmermann, que depôs na CPI da covid, tem, ao que tudo indica, tendências anarcocapitalistas – acredita na mística da mão invisível. Já o dr. Zeballos por diversas vezes afirmou a relevância de energias invisíveis unindo todos nós – algo que ele considera já comprovado pela física. Por isso é tão importante nos mantermos otimistas com os tratamentos, e afastados do pânico induzido pela grande mídia. Certa vez numa entrevista, ele chegou a citar a teoria do centésimo macaco como comprovação da existência de uma consciência coletiva que teria o poder de moldar realidades em larga escala de forma invisível. No início da pandemia, quando seus pacientes começaram a melhorar após tomar os corticoides, ele pensava: não pode ser só coincidência. A “documentação” científica da eficácia ainda precisaria ser feita, reconheceu ele. Mas ele mesmo já sabia qual seria o resultado, pois não duvidava dos dados da experiência, dele e de outros médicos que entravam em contato. Colegas me ligam da Itália, de Portugal, ele contou, para comunicar os casos de sucesso com o mesmo protocolo.

Mas os colegas teriam ligado para comunicar os fracassos?

Esquema-pirâmide de evidências

Os defensores do tratamento precoce gostam de evocar a pirâmide da medicina baseada em evidências para defender a validade científica dos estudos observacionais, e mesmo das constatações anedóticas feitas pelos próprios médicos em contextos de atendimento aos seus pacientes. Mas o padrão até o momento tem sido de, quanto mais alto na pirâmide o estudo, mais fracas ou inexistentes as evidências de que os remédios do tratamento precoce funcionam, e vice-versa: os estudos que demonstram uma suposta eficácia se concentram na parte baixa da pirâmide.

Porém, sob o pretexto da liberdade de os médicos individualmente fazerem experimentos como quiserem ou puderem numa situação de crise, eles acabam virando a pirâmide de evidências do avesso. O que era base vai para o topo, o que era marginal e secundário vai para o centro, e o que era a ortodoxia e o padrão ouro, vai para o pano de fundo. Forma-se assim uma ferradura onde o que eram os dois extremos – a experiência imediata e as causalidades inescrutáveis – convergem numa posição central, virando todo o sistema “do avesso”. Como no populismo político, o estado de exceção científico dá margem à eficácia social de vertentes marginais ou mesmo anti-estruturais, que, abrigadas sob o discurso de continuar respeitando seus procedimentos (da democracia, da ciência), na prática estão fragilizando-os.

Como venho sugerindo, essas forças anti-estruturais pressionam por realizar o que o antropólogo Louis Dumont chamou do englobamento do contrário, invertendo a relação hierárquica entre dois extremos da experiência. Isso se dá também no campo da política. Se a democracia liberal, como quer Chantal Mouffe, constitui-se numa polaridade contraditória entre o populismo e os contrapesos liberais, as versões mais radicais do primeiro buscam se impor englobando este último. Assim, buscam reduzir o próprio significado da democracia à vontade da maioria encapsulada no líder – o que, quando desvencilhado do seu pólo equilibrador, pode transfigurar em fascismo.

A eficácia contemporânea dessas forças anti-estruturais só é possível porque existe uma infraestrutura cibernética que, hoje, permite a proliferação descontrolada de heterodoxias, epistemologias personalizadas e comunidades alternativas. O que ela propicia à direita populista, propicia às alt-sciences: um tipo especial de eficácia epistêmica, que é, ao fim e ao cabo, transversal a toda a configuração neoliberal. Como intuíram há duas décadas antropólogos como Jean e John Comaroff, Jane Guyer e outros como William Connolly, a infraestrutura espaço-temporal do capitalismo financeirizado converge com essas espiritualidades: indivíduos auto-centrados de um lado; forças inescrutáveis interligando tudo do outro. Deste ponto de vista, pouco importa se uma remete ao domínio econômico e secular do livre-mercado e o outro, ao domínio religioso e encantado da espiritualidade: a forma é a mesma.

Neste sentido, minha impressão é que o ecossistema do tratamento precoce funciona transformando a pirâmide de evidências num tipo de esquema-pirâmide. Esquemas-pirâmides têm sido notados por alguns autores, como os próprios Comaroff e Mirowski, como uma forma organizacional e de produção de (pseudo)valor que tem se proliferado com a neoliberalização. Ela vem substituir o modelo fordista baseado em estratos hierárquicos fixos, procedimentos burocráticos e impessoais, e possibilidade de planejamento mediante controle do ambiente. Grosso modo, esta última caracterização também reflete boa parte das descrições da ciência normal durante o século XX, ancorada no financiamento estatal à pesquisa – que é, em última instância, a única forma de garantir o seu caráter público, assim como a sua autonomia contra influências externas. Do contrário, a ciência é facilmente capturada e fragmentada por forças de mercado onde, no limite, cada financiador pode pagar pela sua própria ciência.

Assim, se os grandes ensaios randomizados controlados, considerados o padrão ouro da ciência, têm uma estruturação hierárquica e rígida do tipo fordista, as compilações de testemunhos pessoais, evidências anedóticas, estudos observacionais ou ensaios randomizados de baixa qualidade comuns no ecossistema do tratamento precoce têm a estruturação piramidal e em rede do neoliberalismo. Para continuar existindo, a alt-science depende do influxo constante de novas substâncias, estudos, testemunhos e dados na base da pirâmide – já se fala dos tratamentos para a “covid longa”. Depende também da replicação por mimese (cópia) dos protocolos para uma rede crescente de influenciadores e pacientes, e do isolamento do contraditório da comunidade científica do mainstream. Isso significa que a comprovação última da sua eficácia está sendo sempre adiada, passada adiante. Se todos os “investidores” no ecossistema resolvessem coletar seu retornos – ou seja, cobrar um veredito definitivo sobre os remédios segundo o padrão-ouro da ciência –, talvez se vissem de mãos vazias.

Mas quem financia, afinal, a “pesquisa” sobre o tratamento precoce? Não à toa, boa parte dos seus praticantes e defensores eram ou são agentes privados: médicos, planos de saúde, empresários, pacientes. Como na militância do bolsonarismo político, este parece ser um ecossistema em boa medida auto-financiado pelo empreendedorismo dos indivíduos e redes que o compõem. Embora possa haver alguma injeção de recursos públicos, como para a compra de cloroquina pelo Exército e eventos com esses grupos de médicos no Planalto, no geral a coisa se passa como na campanha de 2018. Empresários (em alguns casos os mesmos, como Luciano Hang e Carlos Wizard), médicos, influencers, políticos, jornalistas e mesmo pacientes convertidos em apóstolos do tratamento precoce, todos geram capital humano e financeiro para si nesse ecossistema. Telemedicina, consultas, tratamentos experimentais, cursos, lives, canais – muitos souberam fazer da crise oportunidade durante a pandemia.

Não existe um grande complô mundial para sabotar a ivermectina ou qualquer outra droga associada ao tratamento precoce. Existem, sim, interesses. Mas a única forma de separá-los da melhor verdade que pode ser produzida sobra eficácia dos remédios é através da própria ciência, e não da crença em forças ocultas ou em uma grande batalha do bem contra o mal. A universidade de Oxford anunciou recentemente que fará um grande RCT para testar a eficácia da ivermectina – o que, em si, já seria evidência suficiente da inexistência desse grande complô global para matar o remédio. Em todo caso, será um bom teste para diferenciar quem tem compromisso com a ciência de quem está nisso para politizar ou empreender. Se o resultado for positivo, todos saem ganhando. Se for negativo, alguns já estão construindo narrativas conspiratórias preventivas, aventando desconfianças quanto ao timing e protocolos do ensaio – colocando sob suspeita a idoneidade e reais propósitos da equipe de Oxford. Exatamente como muitos bolsonaristas já se preparam para fazer com a narrativa da fraude nas urnas em 2022.

Para citar este texto: CESARINO, Leticia. Tratamento precoce: negacionismo ou alt-science? Blog do Labemus, 2021. [publicado em 27 de julho de 2021]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2021/07/27/tratamento-precoce-negacionismo-ou-alt-science-por-leticia-cesarino/

9 comentários em “Tratamento precoce: negacionismo ou alt-science?, por Letícia Cesarino

  1. Belo título. Parabéns pelo conteúdo compartilhado. <3 Cesarino sempre arrasando. E o LaBMuss sempre se renovando. Parabéns.

  2. M. Cervantes

    OK.

    Sobre o Tratamento Precoce, não pesquisou os mais variados estudos já realizados, duplo cegos, por pares, etc.a favor e com eficácia contra a Covid?

    Sobre a Ivermectina já foram realizados, na época (hoje são mais), 24 estudos a favor, sendo que o estudo do Corticóide, bastou apenas 1 (UM) para ser aprovado no FDA dos EUA? Por que será?

    Pesquisou e analisou que a nova pílula da PFIZER, já em fase de teste 2/3, se mostra eficaz e sua fórmula nada mais é que uma Hidroxicloroquina repaginada? Que a PFIZER recentemente publicou que, além da vacina serão necessários remédios anti-virais (como a hidroxicloroquina repaginada)?

    Sabe o que significa uma Hidroxicloroquina repaginada? É um “novo” remédio com uma nova patente. Entendeu agora?

    É evidente seu viés político ideológico para esquerda, em tratar um assunto que não deveria ter viés algum.
    Afinal estamos falando de vidas.

    E uma dica: Pesquise, mas realmente faça uma pesquisa ampla sobre a Ivermectina, que assim como a Penicilina, foi descoberta por acidente.

    A Ivermectina era considerada como uma das maiores conquistas médicas do séc XX, mas foi categorizada, pela Indústria Farmacêutica, apenas como um mero vermífugo e quer saber o porquê? É um remédio que apresenta uma amplo espectro de cura para várias doenças, mas a Big Pharma não quer lhe mostrar isso. E você sabe muito bem o porquê.

    E pra finalizar:
    E as Vacinas? Passaram por todos estes testes mencionados? NÃO.

    • Obrigada pelo seu comentário, ele ilustra com bastante precisão o meu argumento no texto.

      • Alda Lafetá Toledo

        Na minha ‘insignificância’ intelectual, não vou tecer comentários. Para mim, muito melhor é ter tido o privilégio de ter assistido a uma Master Class. Os dois que li há pouco,me deixaram até com um certo ar de superioridade(rsrs). Li com muita concentração , e assimilei bem. Obrigada,por te seguir.

    • “estudos a favor”… que beleza!

  3. O texto é super bacana. Deixo, abaixo, algumas reflexões que emergiram após sua leitura.

    O texto enfatiza muito uma ideia vaga como o bolsonarismo, em especial, equiparando-o ao tratamento precoce (talvez reproduzindo a própria armadilha do significante vazio desse modelo de comunicação digital?). 

    Quando desloca o problema da eficácia, pressupõe que o método científico é o único caminho para os sujeitos mapearem os resultados positivos e se posicionarem sobre sua eficácia. Talvez ele até possa ser o mais eficiente, mas certamente não é o único. Limitar a dimensão da eficácia ao paradigma científico implica desconsiderar a existência e a legitimidade de potenciais alternativas.

    Ainda nesse contexto, é preciso ter em mente que a percepção do tratamento precoce como um significante vazio não é singular dessa dinâmica, mas desse modelo de comunicação digital, no qual o vazio é, em regra, sempre preenchido pelo próprio sujeito como forma de expressão da sua autonomia. 

    Nesse contexto, talvez Popper e Kuhn possam ajudar pouco. Isso porque, me parece que o debate nos coloca frente a emergência de outras formas de pensar e as reações que observamos explicitam as dificuldades ou limites para lidar com essas racionalidades distintas. As dinâmicas hierarquizantes e produtoras de tensões desse “modelo científico” operam no sentido do reforço e do reconhecimento de sua própria autonomia – a eficácia (não nos iludamos), aquela que talvez seja a mais eficiente, vem em segundo lugar.

    Desse modo, a aproximação com essa categoria abstrata de “ciência” é só mais uma ação estratégica para imprimir confiabilidade, mas não me parece ser o cerne da questão desse discurso alternativo. 

    Aliás, em se tratando de significante vazio é preciso repensar o que estamos chamando de ciência ou científico. Equiparar o que é feito em humanas ao que é produzido em química, física, matemática talvez traga consigo grandes problemas. Randomização, duplo-cego, reprodutibilidade? Esse papel de as humanidades servirem de infantaria de um modelo peculiar de produção de verdade me parece anacrônico face uma multiplicidade de agendas, pautas e desafios colocados para nós nos dias atuais. Essa questão me parece um pressuposto para sair da ideia de que afirmar que o tratamento precoce não seria ciência resolveria o problema.

    Assim como vários estudos fizeram em relação aos militares, pensando-os a partir de um bloco homogêneo, é preciso ir além nas avaliações sobre os médicos antes dar tamanha centralidade aqueles que ocupam a posição de “influenciadores digitais” – i.e., como determinante para influenciar no comportamento dessa categoria. Afinal, hoje em dia é impossível imaginar que grande parte dos médicos esteja desconectada das grandes farmacêuticas. Elas estão imersas o dia-a-dia da medicina. O argumento conspiracionista tem limites e empregá-lo para justificar a rotina hospitalar talvez implique ultrapassar tais contornos.

    De todo modo, ainda pensando em conspiração e espiritualidade, faz-se necessário lembrar que essas são questões que estão postas “desde sempre”. Por que eles ganham força nesse momento? Talvez a pista para pensar nisso seja a ideia de que há uma mudança na forma de organizar o pensamento – que a tecnologia, sem dúvida exerce um papel importante – e que, dentre outras implicações, pode marginalizar certas formas de produção de verdade, como a científica. 

    Por fim, o próprio texto expõe essa contradição quando diz que a melhor verdade sobre a eficácia se atingiria via processo científico, mas se esse for seguido, os conspiracionistas vão achar um meio para minar sua legitimidade. Aqui o argumento explicitado me parece emergir de forma circular, deixando pouca (ou nenhuma) margem para avançar no entendimento do fenômeno em si. 

  4. Aqui eu faço um desafio:

    Que a autora do texto, me mostre um único estudo da HCQ em tratamento precoce onde o grupo de tratamento tenha se saído pior que o não tratado. Observacional, RCT, qualquer um.

    Também da fluvoxamina, nas mesmas condições.

    Também da Vitamina D, nas mesmas condições.

    Também da budesonida, nas mesmas condições.

    Se ela fizer isso. Ela calará minha boca, e eu pedirei desculpas publicamente por ter a ousadia de vir aqui comentar este texto.

    Deixando claro: não precisam de dois estudos. Um só. Único. De qualquer uma dessas intervenções.

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