Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Pentecostalism#/media/File:Congreso_Nacional_Juvenil3.jpg
William E. Connolly (Universidade Johns Hopkins)
Tradução Bruno Reinhardt
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Resumo: A aliança atual nos Estados Unidos entre o capitalismo cowboy e o cristianismo evangélico não pode ser suficientemente compreendida através das categorias de causalidade eficiente ou análise ideológica. Os grupos eleitorais desdobram disposições espirituais semelhantes em ideologias e credos um tanto diferentes. Cada parte amplifica estas disposições uma na outra através da política de ressonância da mídia. O ethos que infunde a máquina de ressonância é expresso sem ser articulado. A incapacidade de compreender esta economia política de modo separado das espiritualidades que a infundem pode ter implicações para a forma que um contra-movimento bem sucedido possa assumir.
Palavras-chave: ressonância; causalidade; capitalismo; ressentimento; evangelismo; teísmo aberto; mídia; sensibilidade
Ressonância: ressoar; uma vibração de grande amplitude causada por um pequeno estímulo periódico de um período igual ou próximo ao da vibração natural do sistema; a intensificação e o enriquecimento de um tom musical por vibração suplementar; o aumento de uma reação atômica, nuclear ou de partículas por excitação de movimento interno no sistema.
Novo Dicionário Colegiado do Webster
I.
Qual é hoje a conexão entre cristianismo evangélico, capitalismo cowboy, meios eletrônicos de comunicação e o Partido Republicano?[1] Estas conexões podem ser entendidas nos termos da causalidade eficiente? Nos quais você primeiro separa os fatores e depois mostra como um deles é a causa básica, ou como eles causam uns aos outros, ou como eles juntos refletem uma causa mais básica? Uma elite corporativa-republicana manipula, digamos, a ala evangélica desta formação [assemblage], levando esta última a subordinar seus interesses econômicos a apelos espúrios de fé? Ou será que as principais partes desta coalizão estão ligadas antes de tudo por interesses econômicos, nos quais líderes evangélicos e corporativos juntos manipulam seus seguidores? Ou, alternativamente, eles compartilham uma doutrina ou credo geral que define seus interesses e lealdades comuns? Acredito que nenhuma destas explicações, nem outras parecidas com elas, respondem de maneira adequada ao problema. Se isto for correto, nenhuma economia política ou prática religiosa é auto-contida. Ao contrário, na política diversos elementos se infiltram uns nos outros, metabolizando em um complexo móvel. Causação como ressonância entre elementos que se fundiram em um grau considerável. Aqui, a causalidade, como relações de dependência entre fatores separados, se transforma em complexidades energéticas de imbricação mútua e de inter-envolvimento, nas quais, daqui para frente, elementos não conectados ou associados frouxamente, dobram-se, inclinam-se, misturam-se, emulsificam-se, e dissolvem-se uns nos outros, forjando uma formação qualitativa resistente a modelos clássicos de explicação[2].
II
É impossível aproximar-se da máquina de ressonância a ser aqui interrogada em clima de neutralidade política. Qualquer tentativa de fazê-lo seria derrotada pelos termos da descrição que ela mesma emprega. Portanto, deixe-me enunciar alguns eixos críticos – afirmados a partir de uma perspectiva que pretende ser igualitária, pluralista na aspiração e democrática na ambição. Eles fornecem a perspectiva a partir da qual esta máquina de ressonância será avaliada e acessada.
(1) Não é apenas o capitalismo cowboy, mas ele em conjunto com a ambição teocrática do setor mais militante do cristianismo americano que gera a maior ameaça à democracia.
(2) A mídia eletrônica de notícias agora serve como câmara de eco deste complexo capitalista-evangélico, duplicando e triplicando os obstáculos que os movimentos democráticos enfrentam para promover a segurança econômica, reduzir a desigualdade e fomentar o pluralismo multidimensional.
(3) Os movimentos de redução da desigualdade econômica e de ampliação da diversidade cultural são mais congruentes do que opostos uns aos outros. Para progredir hoje em dia qualquer dessas frentes é necessário fazer algum progresso na outra.
(4) A ação democrática em nome destes objetivos deve ocorrer em vários locais, incluindo o envolvimento político local, movimentos sociais em todo o país, pressão direta sobre as estruturas corporativas, participação na política partidária nacional e redes interestaduais de cidadãos para desafiar o estado americano de dentro e de fora ao mesmo tempo. É quando as ações em vários locais ressoam juntas que as perspectivas de realização democrática positiva melhoram.
A formação capitalista-evangélica está alinhada contra tais objetivos e aspirações. Ela encontra expressão no apologismo do mercado e na exploração de escândalos pela mídia eletrônica, nas mobilizações do Partido Republicano e da Fox News, nos decretos administrativos para derrubar o ambientalismo e enfraquecer o trabalho, nos ataques à Previdência Social, nas restrições aos direitos das minorias em nome da moralidade religiosa, na pressão por nomeações da direita para a Suprema Corte, no apoio às guerras preventivas, na tolerância com relação, ou pior, nas próprias práticas estatais de tortura que desrespeitam as Convenções de Genebra, e na propagação de um clima de medo e aversão contra o mundo islâmico e grandes partes da Europa. Esta máquina de ressonância se infiltra na percepção e abriga o interesse econômico, mesmo que, ocasionalmente, subordine este último. Por isso, é importante vir a termo com as afinidades identitárias que energizam essa formação, afinidades que traduzem alguns interesses econômicos em ganância corporativa e infundem outros em intensidade religiosa, afinidades que convertem alguns artigos de fé religiosa em campanhas vingativas contra os interesses econômicos daqueles que estão fora da fé e imbuem outros com um impulso para a vingança.
Os principais coletivos desta máquina nem sempre compartilham as mesmas doutrinas religiosas e econômicas. Afinidades de sensibilidade também os conectam através de vínculos e diferenças na doutrina formal. O complexo se torna uma máquina errática à medida que as sensibilidades evangélicas e corporativas ressoam juntas, atraindo cada uma delas para um movimento maior que amortece a importância das diferenças doutrinais entre elas. No início, as partes sentem afinidades preliminares de sensibilidade; eventualmente provocam umas às outras para transformar essas afinidades em uma máquina política de massa. E a máquina então fomenta novas intensidades de solidariedade entre estes coletivos.
Uma maneira de desafiar a máquina é concentrar a publicidade e o protesto contra os efeitos econômicos das práticas corporativas-governamentais sobre as pessoas comuns. Muitos tentam esta estratégia. Assim, para enfocar por um momento a aliança entre a derrocada da Enron e a administração Bush, você poderia mostrar como a Enron manipulou o mercado de energia, Dick Cheney e Enron cooperaram para sufocar a regulamentação estatal do mercado, a mídia eletrônica ignorou a crise emergente, e a programação da mídia após o evento ajudou a desviar a atenção dela[3]. Tudo isso é muito relevante. Mas o que atrai Cheney, Fox News, o Partido Republicano e a Enron juntos aqui? É simplesmente que todos eles acreditam no mercado livre? Ou, um pouco melhor, que eles apoiam desregulamentações que dão a corporações específicas o poder de manipular mercados? Ou, melhor ainda, que elas estão ligadas por uma história de laços econômicos, contribuições de campanha e assim por diante? Sim, todas essas coisas. Mas, mais uma vez, como esses vínculos se tornaram tão esmagadores? E o que separa as partes desta aliança de outras que têm visões formais semelhantes sobre o mercado e o papel do governo? É a ganância magnetizada até a máxima intensidade? Ou qualquer partido, empresa, CEO ou meio de comunicação participaria dela se lhe fosse dada a oportunidade? Talvez sim, até certo ponto. Mas, ainda assim, o que impulsiona estes coletivos em particular a perseguir esses fins de forma tão implacável? Aqui, como em qualquer outro lugar, a questão da gradação é criticamente relevante. O que mais, então, atrai essas partes para uma constelação tão agressiva, conclamando-os a manipular o mercado e a defender uma interpretação mercadológica dos eventos de forma beligerante, mesmo quando isso vai contra as evidências disponíveis?
III.
Uma possibilidade é que, em meio aos vínculos e diferenças de credo, as partes também compartilhem uma disposição espiritual para a existência. Sua impiedade, extremismo ideológico, prontidão para defender uma ideologia de mercado contra evidências significativas, e compulsão para criar ou tolerar escândalos contra qualquer partido que se oponha a sua visão do mundo, expressam uma disposição fundamental de ser no mundo. As imbricações entre essa espiritualidade e esses programas então amplificam a espiritualidade. Na medida em que conseguem instalar as estruturas que as apoiam, as práticas tornam-se mais imperativas institucionalmente, mesmo para aqueles que não compartilham desta espiritualidade.
Não me interpretem mal. Não estou dizendo que uma sensibilidade existencial particular é a causa. Ao contrário, ela funciona infiltrando-se e flexionando uma variedade de crenças, credos, interesses, instituições e prioridades políticas; cada uma delas, por sua vez, dobram-se sobre esta espiritualidade, modificando-a e intensificando-a. Também não sugiro, como veremos, que outras doutrinas e movimentos sejam imunes a este tipo de contágio. Tampouco suporei aqui o que impulsiona um coletivo socialmente definido mais do que outros para tal espiritualidade econômica. A variedade de possíveis influências é grande. Finalmente, não estou dizendo que todos que acreditam em uma economia de mercado desregulamentada sejam animados por tal sensibilidade belicosa. Claramente, muitos não são. Estou dizendo que o lado corporativo da máquina de ressonância está imbuído de uma orientação existencial que a encoraja a transfigurar o interesse em ganância, ganância em ideologia antimercado, ideologia antimercado em manipulação de mercado, manipulação de mercado em institucionalização estatal destas operações, e todo este complexo em políticas para afastar a rede de segurança dos trabalhadores comuns, consumidores e aposentados – fazendo com que alguns destes últimos também traduzam novas intensidades de ressentimento e/ou cinismo e participem desta máquina. Acima de tudo, a espiritualidade encoraja seus participantes a forjar alianças com aqueles de outros setores da vida que compartilham suas intensidades disposicionais.
Dada a intensidade do ethos que une as partes em meio a variações na doutrina religiosa, no credo econômico e nas condições de vida; qualquer coletivo ou movimento social que os desafia estará sujeito a fortes castigos e acusações. Este é o cerne da verdade na afirmação de Bill Clinton de que o Partido Republicano possui uma “máquina de destruição” que os democratas não possuem. Ele deveria saber. O que Clinton subestima, entretanto, é como esta máquina se estende muito além de um partido político e como ela está tão envolvida em iniciar políticas e programas políticos corporativos quanto na destruição do caráter de seus oponentes.
Estou confiante de que este relato, como até agora apresentado, parecerá implausível para muitos, em parte porque ele atrai para o tecido da própria economia política elementos existenciais que muitos consideram irrelevantes para essas estruturas. O relato pode se tornar um pouco mais plausível, no entanto, à medida que mudamos de marcha na mesma máquina. Como uma preliminar para essa virada, considere o relato do economista político Mark Blyth sobre como o keynesianismo, que havia sido hegemônico por algumas décadas na Europa e nos Estados Unidos, foi derrubado nos anos 70 e 80 pela doutrina de um mercado sem restrições, economia centrada na oferta [supply-side economics] e desregulamentação estatal. Blyth afirma que esta mudança não pode ser explicada suficientemente por referência ou a determinantes estruturais ou aos interesses econômicos daqueles que apoiaram a doutrina. Ele olha além disso, para o surgimento de um conjunto distinto de idéias econômicas, sua publicação através de novos think tanks à direita, sua amplificação através dos meios de comunicação, sua aceitação parcial pelo Presidente Carter, e seu abraço pelo Presidente Reagan.
Em períodos de incerteza econômica, sugere Blyth, as idéias e as capacidades diferenciais que os agentes têm para torná-las públicas desempenham um papel significativo na formação dos interesses políticos e econômicos. Os keynesianos, neste caso, perderam a competição das idéias, mesmo que as previsões e promessas ligadas à teoria econômica de seus adversários tenham fracassado. Mais tarde no livro, Blyth pergunta como algumas idéias econômicas prevalecem sobre outras durante os períodos de incerteza. Ele diz que “uma resposta possível é que em momentos de crise, quando os agentes estão incertos sobre seus interesses, eles recorrem a repertórios de ação que ressoam com suas identidades centrais”.[4]
Hoje, também, a identidade desempenha seu papel na segunda versão deste mesmo movimento. As identidades são compostas de uma mistura de fé, doutrina e sensibilidade. As ideias-imbuídas-de-afeto que as compõem são instaladas nos tecidos leves do afeto, emoção, hábito e postura, bem como no intelecto. Estas sensibilidades desencadeiam as respostas das pessoas por ela imbuídas mesmo antes de começarem a pensar sobre este ou aquele evento. Esse é particularmente o caso quando disposições complementares se repetem em uma grande máquina política, com cada conjunto de atores ajudando a cristalizar, amplificar e legitimar as disposições do todo.
O elemento de identidade mais significativo para este movimento, eu sugiro, é a insistência de seus membros de que eles estão sendo perseguidos, a menos que estejam no poder, e o sentimento compensatório de merecimento que acompanha a ascensão ao poder de um coletivo que assim se constrói. Resta saber se tal disposição belicosa também expressa uma orientação existencial mais profunda.
IV.
A perna direita do movimento evangélico está unida, pelo quadril, à perna esquerda do ogro capitalista. Nenhuma das pernas poderia saltar longe a menos que estivesse unida à outra. Alguns podem explicar a associação entre eles em termos simples: o interesse corporativo se harmoniza com o interesse econômico da direita evangélica, pois esta última manipula os cidadãos pobres e mais velhos a despejarem dinheiro em seus cofres para salvar suas almas. Em certa medida, é verdade. Mas novamente, por que uma ala do movimento evangélico dá prioridade tão intensa a seu interesse econômico, ao invés de pressionar o Estado e as corporações para proteger os mais fracos entre nós? Por que não pregar o Evangelho Social, como inúmeros crentes cristãos no passado, dando ao Jesus de Lucas prioridade sobre o Cristo do Apocalipse?
A vanguarda da direita evangélica está organizada em torno de uma visão da Segunda Vinda de Cristo, dramatizada na série de romances de sucesso Left Behind (NT. Tradução portuguesa: Deixados para trás). A série já vendeu mais de 50 milhões de cópias até hoje [NT. 2004]. No primeiro romance, ele mesmo intitulado Left Behind, milhões de cristãos renascidos em Cristo de todo o mundo são elevados subitamente ao céu durante o Arrebatamento. O resto da humanidade é “deixado para trás”. A súbita partida desses milhões cria inúmeros engarrafamentos, interrupções em cirurgias médicas, acidentes aéreos, caos governamental e cônjuges enlutados que perderam parceiros e filhos. Se você acha que o terrorismo da Al Qaeda e da máquina de tortura de Bush tem sido traumáticos, é uma tempestade em um balneário em comparação com o terror global desta figuração de Cristo.
Alguns dos que ficaram para trás descobrem o que aconteceu e se aliam totalmente ao Cristo do Apocalipse. Ao nascerem de novo – um processo que cobre 400 páginas – e logo após a ONU ter sido assumida por um Anticristo aparentemente benevolente, o novo exército se prepara para sete anos de guerra total contra os descrentes e a ONU. “A tarefa da Força da Tribulação era clara e seu objetivo era nada menos que ficar de pé e lutar contra os inimigos de Deus durante os sete anos mais caóticos que o planeta jamais veria”.[5] Essa é a linha final do primeiro romance, com vários outros a seguir.
Mais tarde, no Dia do Juízo, Cristo vai levar os muçulmanos, judeus, agnósticos, ateus e muitos católicos ao fogo eterno. Rememorando este dia maravilhoso por vir através de uma visão, um dos cruzado lembra que “Jesus apenas levantou uma mão alguns centímetros e eles… caíram, uivando e gritando “[6].
O mais significativo sobre a promessa sincera do Arrebatamento, do Cristo-terrorismo e do Dia do Julgamento não é o futuro horrendo que ele antecipa, embora isso seja notável. É o seu efeito sobre a conduta atual de milhões de pessoas que entretêm esta visão. Abraçar esta visão é colocar sob suspeita diária uma série de doutrinas, instituições e círculos eleitorais tidos como contaminados; é fomentar uma vontade coletiva de vingança contra os descrentes considerados responsáveis pelo tempo de tribulação e obstáculos à felicidade futura que aguardam os crentes. Além disso, o Anticristo e seus seguidores são visualizados como mestres consumados do engano e da intriga. Os crentes devem desconfiar daqueles que prometem progresso social por meios humanistas. Pois os seguidores do diabo, muitas vezes eles se apresentam como agentes de beneficência. Assim, uma aura de desconfiança, ressentimento e vingança é introduzida nas percepções diárias dos fiéis, encorajando-os a fazer as piores interpretações dos de fora e a aceitar qualquer história escandalosa contra eles espalhada por talk shows da direita, a máquina publicitária republicana, os blogs da Internet e os pregadores da direita.
A combinação do destino terrível reservado para a maioria e a promessa radiante para alguns desencadeia sentimentos de ansiedade entre os fiéis – que se preocupam se eles são suficientemente fiéis. Uma maneira de afastar essa ansiedade é deslocá-la, definindo seus adversários como pecadores desonestos. As pressões para fazer isso aumentam durante um período de maior consciência global, à medida em que os crentes descobrem que o cristianismo é uma religião minoritária no mundo como um todo. Daí a bússola mundial da série Left Behind. Essas dúvidas e incertezas são transfiguradas em um impulso implacável de vingança contra aqueles que negam que Cristo é o filho de Deus, foi ressuscitado e voltará para passar julgamento.
Renascer em Cristo é ser protegido; é também adotar uma inquestionável obediência a aqueles ordenados para interpretar a vontade de Cristo antes do Arrebatamento. Na medida em que se admite este elemento existencial no movimento evangélico, é possível discernir afinidades de sensibilidade entre ele e a borda direita da máquina corporativa. Também fica claro porque as correlações entre interesse econômico, posição de classe, doutrina religiosa formal, nível educacional e idade, por um lado, e participação na máquina de ressonância da direita, por outro, são incompletas e incertas. Os elementos de sensibilidade e ethos intervêm, atraindo alguns a posições de sujeito correspondentes na máquina, tocando outros nas mesmas posições de forma menos intensa, tornando-os indiferentes e impelindo outros ainda a correr o mais rápido possível. Os fatores sociais empregados para explicar a participação em uma formação política são comprometidos e complicados pelas diferentes intensidades da espiritualidade que também ajudam a compô-la. Por isso, é um erro equiparar a crença na doutrina evangélica ao compromisso fervoroso com a máquina de ressonância. A série Left Behind, de fato, foi projetada para aproveitar intensidades latentes para que um maior número de crentes seja atraído para dentro da máquina.
V.
Por que, no entanto, afirmar que a perna econômica desta formação está unida no quadril à perna religiosa? Será que alguns capitalistas cowboy não torcem o nariz quando ouvem a promessa de vingança divina? Outros não se identificam com outros credos e culturas, como o judaísmo e o secularismo, que os colocam em risco nos últimos dias? Sim, sim, sim… Mas, ainda assim, por que simplesmente torcer seu nariz enquanto participa desta aliança feia em vez de romper publicamente com as tendências de consentimento que pressionam tais histórias e promessas vingativas? Ou, no mínimo, trabalhar abertamente para reduzir as intensidades nelas insinuadas? Qual é, em suma, é, a atração exercida pelo espírito da história em meio ao dissenso sobre a letra de sua doutrina?
Uma vontade abstrata de vingança contra o mundo e o peso do futuro ajuda a diferenciar os cowboys que se alinham com a margem direita do movimento evangélico daqueles que rompem com ele. A belicosidade existencial daqueles infusos pela ganância econômica reverbera com o ressentimento transcendental daqueles que visualizam a violência justa de Cristo. Uma parte desconta o futuro da Terra para estender seus interesses econômicos agora, a outra para se preparar para o Dia do Julgamento contra os não-crentes. Essas cargas elétricas ressoam para frente e para trás, gerando uma máquina política mais potente do que a agregação de suas partes. Elas encontram expressão na promessa de mergulhar milhões em um inferno ardente; na legitimação e ocultamento do crime corporativo; nas decisões de apoiar uma guerra preventiva em nome do antiterrorismo quando se podia saber que a Al Qaeda não estava sediada no Iraque; a aceitação casual de Abu Ghraib e do Gulag disfarçado em Guantanamo ao insistir que se trata apenas do trabalho de algumas “maçãs ruins”; a produção, compra, uso e desregulamentação estatal de SUVs, mesmo quando as partes conhecem as ameaças que o veículo representa;[7] a exigência de novos benefícios fiscais para os ricos quando impõem sacrifícios aos pobres de agora e a gerações inteiras no futuro; a decisão da quadrilha de cinco membros da Suprema Corte de pôr de lado seu próprio mito do “construtivismo rigoroso” para colocar seu homem no cargo; a campanha de escândalos se fim promovidas pela Fox News contra Clinton e qualquer ator ou ativista à sua esquerda; o constante senso de urgência na voz de Wolf Blitzer ao mapear novos perigos para o país e desviar toda voz crítica; e uma disponibilidade generalizada para apresentar qualquer evidência econômica ou incerteza teológica que possa moderar a vontade de vingança contra igualitários econômicos, pluralistas e não crentes.
Poderia se chamar essa máquina de “O Fator O’Reilly” para dramatizar como o garoto-propaganda expressa seu temperamento em suas expressões faciais, timbre de voz, interrupções insistentes, exigência de autoridade inquestionável, e estilo acusatório. Você também poderia chamá-la de “A Síndrome de Bush” para dramatizar como George W. reúne seus elementos em uma só pessoa, através de sua retórica extraída do Apocalipse, cadência de voz, fraseologia no definitivo, contabilidade governamental cheia de penumbras, compadrio econômico, nacionalismo agressivo e prontidão para impor novas cargas econômicas aos cidadãos de baixa renda e futuros aposentados. Lembre-se do argumento, amplamente divulgado na mídia, que George W. teve com sua mãe sobre se aqueles que não acreditam em Cristo estão condenados ao inferno. Ela negou que assim fosse, de acordo com as reportagens, e pediu a Billy Graham que a apoiasse. A crença aparente de George W. de que todos que não são batizados estão condenados a arder no inferno repercute nas práticas do Gulag de Guantanamo e em Abu Ghraib.
É pertinente ver como figuras como Bush e O’Reilly dramatizam a máquina de ressonância. Mas ao fazer isso, é fundamental lembrar que eles seriam apenas personagens lunáticos a menos que acionassem, expressassem e amplificassem uma máquina de ressonância maior do que eles. Eles são agentes catalisadores e pontos cintilantes na máquina; sua partida só a enfraquecerá se ela não gerar uma nova personalidade para substituí-los.
VI.
É possível aprofundar nossa compreensão do ethos que circula através desta máquina? Pode-se recorrer a Baruch Spinoza ou Max Weber aqui. Spinoza chama a atenção para como os resultados da luta entre as paixões positivas e negativas que sempre circulam em uma sociedade infundem o estado, a economia e as disposições religiosas. Weber mostra como a espiritualidade paradoxalmente estruturada de uma ala do protestantismo preparou a mesa histórica para a busca do lucro sem prazer e do trabalho disciplinar sem amor, mesmo antes das instituições do capitalismo serem instaladas com segurança. Apesar do valor de sua análise do surgimento do capitalismo, a espiritualidade que Weber traça difere em tom daquela aqui discernida. E ele acredita que uma vez instaladas as estruturas institucionais apropriadas, a espiritualidade não mais desempenhou um papel tão proeminente no sistema[8]. Sugiro que as estruturas porosas do capitalismo se movem ao longo de uma trajetória temporal relativamente aberta, menos fechada do que as teorias weberiana, neoclássica ou marxista às vezes sugerem. Assim, a qualidade do ethos que habita estas estruturas é pertinente ao seu funcionamento.
Um pouco mais próximos de onde quero chegar estão os insights do Zarathustra de Nietzsche. Ele fala de uma espiritualidade cultural do ressentimento, que nasce de uma vontade de vingança contra a mortalidade, o tempo e o mundo.
Eis o buraco da tarântula… Bem-vindo tarântula! E eu também sei o que está em sua alma. A vingança está em sua alma. Onde quer que você morda, crescem crostas negras; seu veneno faz a alma rodopiar com vingança.
. . . E onde havia sofrimento, sempre se quis castigo também.
Mas agora aprenda isto também: a própria vontade ainda é uma prisioneira. A vontade liberta; mas o que é isso que coloca até mesmo o próprio libertador em grilhões? “Era” – é o nome do ranger de dentes da vontade e da mais secreta melancolia. Sem poder contra o que foi feito, ele é um espectador irado de tudo o que já passou. A vontade não pode querer prospectivamente; e ela não pode quebrar o tempo e a cobiça do tempo. . . . Que o tempo não corre para trás, essa é sua ira.[9]
Zarathustra diz que a vingança existencial gira em torno daqueles que se ressentem mais intensamente do “fato banal” da mortalidade e de um mundo no qual você não pode desejar o passado novamente. Este é o ressentimento do tempo e seu “era”. Tais ressentimentos também podem rodopiar, como ele entendeu, em um complexo maior, produzindo um furacão de elementos até então vagamente associados. Indução cultural na idéia de um Deus vingativo; intensificação do medo humano da morte e ressentimento secreto contra um mundo que o requer; ressentimento flutuante contra as exigências imperiosas de seu Deus, que não devem ser articuladas; impulsos compensatórios para um direito econômico especial e conforto neste mundo; campanhas feias para vilipendiar aqueles cuja diferença na fé lança em dúvida a sua autoconfiança- estas são algumas das disposições que um poderoso conjunto político pode fomentar e ampliar, instalando-os nos padrões habituais de percepção, identidade, interesse e julgamento de direitos.[10]
Antes da Segunda Guerra Mundial, o lado vingativo do movimento evangélico estava um pouco menos ligado a um movimento político explícito[11]. A tendência dominante era advertir os seguidores para se prepararem para um evento que a política humana não poderia promover ou impedir. Mas, hoje, em parte por causa das iniciativas políticas da direita corporativos iniciadas nos anos 80, em parte por causa das campanhas de Karl Rove para colocar questões-chave como o aborto e o casamento gay na agenda política, e em parte por causa do 11 de setembro e do antagonismo intensificado entre o cristianismo e o islamismo fomentado pela direita, a margem direita do evangelismo é altamente politizada. O importante, sob estas condições, é chegar a um acordo com o elemento espiritual que atraia dois grandes grupos eleitorais para uma máquina teo-econopolítica.
É pertinente ver, em primeiro lugar, como nenhuma das partes da máquina jamais declara abertamente os investimentos existenciais mais feios que a inspiram e, em segundo lugar, como este silêncio em si é politicamente potente. Tal espiritualidade faz seu trabalho político e teológico mais eficaz quando encontra expressão indireta nas tonalidades e intensidades de seus líderes e em sua seleção de inimigos. Considere, a este respeito, a estrutura do Humoreske, de Robert Schumann (1838), como relatado por Frank Ankersmit. Há três pautas musicais. A superior é tocada com a mão direita, a inferior com a esquerda. Mas a melodia do meio não é tocada. Ao contrário, ela é ouvida pela audiência por causa de sua localização entre a pauta superior e a inferior. Eis o que dizem Ankersmit e Charles Rosen, o historiador da música em que ele se baseia:
Dito de outra forma, a melodia . . . será ouvida pelo ouvinte, sem que ela realmente seja escutada por ele. Portanto, o que se ouve . . . é o eco de uma melodia não formada; é tanto interior como interna, um duplo sentido calculado pelo compositor. . . . Ela tem . . . sua existência somente através do eco.[12]
A vontade de vingança que energiza a máquina evangélico-corporativa subsiste como uma melodia não cantada. Ela reverbera entre líderes e seguidores, até tornar-se incerto quem dirige e quem canta o refrão[13]. Assim, no início da campanha presidencial de 2004, a comitiva de George W. Bush girava em torno de uma pista da NASCAR na frente de 100.000 fãs. Ele emergiu da única SUV da comitiva para um incrível rugido de aprovação. A multidão respondeu à SUV como um símbolo de desdém com relação às mulheres ecologistas, defensoras da segurança, defensoras da economia de combustível, pluralistas de vontade débil e internacionalistas. Bush brincou com o símbolo e tirou energia da aclamação da multidão. O ressentimento contra aqueles que expressam um ethos de cuidado com o mundo nunca foi nomeado: uma mensagem expressa sem ser articulada.
Hoje o ressentimento contra a diversidade cultural, o igualitarismo econômico e o futuro giram juntos na mesma máquina de ressonância. É por isso que seus participantes identificam alvos semelhantes de ódio e marginalização, como o casamento gay, mulheres que buscam status igual no trabalho, família e negócios; secularistas, ateístas, devotos da fé islâmica e moradores afro-americanos das periferias que não apreciam a beleza abstrata do capitalismo cowboy.
Veja, por exemplo, a campanha Bush-Rove de feminização contra John Kerry, em 2004. A lógica é primeiramente consignar as mulheres implicitamente a um status subordinado como seres inconstantes – uma visão que já circula entre marqueteiros cowboy e do movimento evangélico, e depois definir o candidato democrata como feminino vivendo em um tempo em que a mão inabalável de um líder magistral da agressão militar é necessária. A imagem televisiva de Kerry, que vai e vem em uma prancha de windsurf, amplifica o ressentimento contra o ramo caduco da classe alta, uma vez que visualiza o estilo de um artista ecológico [flip-flop artist]. O contraste é Bush em jeans podando árvores com um olhar de propósito no rosto. A campanha de Karl Rove de 2004, de fato, replicou uma campanha de Richard Nixon contra George McGovern em 1970, no meio da Guerra do Vietnã. Ser um “artista ecológico” é ser mulher, não ter um compromisso inabalável com um Deus ciumento (“o Todo-Poderoso”), ser desconfiado com a política econômica neoliberal e recuar do nacionalismo belicoso. A convicção de que Kerry é uma “artista ecológico” [flip-flop artist] foi primeiramente veiculada em anúncios no início da campanha quando a maioria das pessoas não estava atenta a ela. Essa estratégia, segundo os especialistas em publicidade alertas às descobertas da neurociência, é uma excelente maneira de plantar uma idéia[14]. Ela entra nos sentimentos-imbuídos-de-pensamento dos telespectadores antes de ser submetida a um exame crítico. Os frutos são então colhidos meses depois, quando grande parte do eleitorado conclui que agora ele está sendo lembrado de uma disposição que já havia discernido. A política da percepção. As iterações da Fox News, os anúncios de Bush, a repetição interminável dos Cheneys e as declarações dos bispos católicos de que Kerry não merecia a comunhão porque era um apoiador pouco engajado de sua própria fé se uniram para consolidar a percepção. O próprio Kerry não ajudou a dispersar estas acusações, é claro, e o frenesi de segurança que se apoderou do país preparou o cenário para elas. Mas a campanha também teve seu preço.
O objetivo é discernir como as apresentações na mídia, por um lado, fazem grande parte de seu trabalho abaixo do nível da atenção explícita e, por outro, encorajam a intensa codificação dessas experiências na medida em que o fazem. Parte da razão, eu acho, é que o espectador de TV e cinema é imobilizado diante de uma imagem e trilha sonora em movimento, enquanto o percebedor cotidiano ou é móvel ou está a um passo de distância da mobilidade. A posição de imobilidade amplifica as intensidades afetivas recebidas, da mesma forma que um treinador de basquete sente as intensidades da competição mais do que os jogadores na quadra, que absorvem as intensidades em ação[15]. Esta diferença, de fato, dramatiza a sabedoria da recomendação de Nietzsche para agir sobre ressentimentos específicos antes que eles se ossifiquem em uma disposição ressentida.
Ao lado da campanha de feminização aconteceu uma outra, que desviou a atenção pública de como a política e o show business se fundiram. O apresentadores de telejornal da Fox News debateram repetidamente a questão: “Será que atores devem tomar posições públicas sobre questões políticas?”, concentrando-se nos atores que criticaram a guerra no Iraque. A pergunta não foi colocada sobre os famosos empresários ou generais aposentados ou vários candidatos republicanos que haviam sido atores. A forma da pergunta encoraja assim as pessoas a identificar o show business com críticas não patrióticas, ao invés de discernir como filmes críticos, a música rock, certas séries de TV e o jazz são freqüentemente associados com a esquerda Democrata, enquanto a música country, os “talk shows” de rádio e as celebridades evangélico-corporativas são frequentemente ligadas à direita. A reiteração da questão nesta forma desvincula a máquina de ressonância da direita do show business, ao mesmo tempo em que vincula seus oponentes a ela. O resultado é desviar a atenção de como a política, a religião e a publicidade, todas participam hoje em dia do show business.[16] Aqueles que receberam estas mensagens, entretanto, não foram simplesmente manipulados pela mídia para aceitá-las; muitos foram predispostos à mensagem através do espírito de suas orientações preliminares ao ser.
VII
Expor e combater a política de vingança existencial não significa desdenhar das reclamações específicas, ressentimentos e energias críticas que impulsionam as energias democráticas positivas para frente. Isso seria subtrair as energias críticas de sua própria causa em nome de um intelectualismo espúrio que ignora o papel da paixão na prática religiosa, na atividade econômica, no pensamento e na luta política. O alvo é a disposição congelada do ressentimento, não todo modo de ressentimento.
No entanto, o impulso para a vingança existencial, embora mais receptivo a alguns credos econômicos e doutrinas religiosas do que outros, pode na verdade habitar qualquer fé, círculo eleitoral, doutrina, instituição ou máquina. Essa é a questão, e o desafio. Zarathustra acabou por apreciar este perigo depois que “seu símio” repetiu suas próprias frases de volta para ele em um tom espumoso de vingança existencial. De fato, suspeito que nenhuma grande tradição existencial em qualquer lugar, incluindo o cristianismo, o islamismo, o hinduísmo, o budismo e o judaísmo, e nenhuma tradição menor ou minúscula como o epicureanismo, o kantianismo, o nietzscheanismo e o levinasianismo, conseguiu forjar uma resposta totalmente satisfatória ao fato obstinado da mortalidade, do tempo e do sofrimento imerecido. A possibilidade de ressentimento existencial reside assim em toda e qualquer fé existencial ou movimento politico mortais.
Como corolário, alguns defensores de qualquer credo podem superar o ímpeto de vingança muitas vezes ligado a ele, particularmente se uma contra-máquina estiver disponível para eles. É a fé nesta rasura potencial entre um modo de sensibilidade e um credo ou doutrina ao qual a primeira seja comumente apegada que torna possível para Nietzsche conclamar-nos para uma “espiritualização da inimizade” entre nobres partidários de diferentes doutrinas existenciais e religiosas.
Então vamos nos voltar para uma pergunta legítima feita a pessoas como eu: Como você evita o deslize humano demasiado humano de ressentimentos políticos específicos [resentments] para o ressentimento [ressentiment]? Pois o risco cresce à medida em que a insatisfação de um grande segmento do eleitorado americano com a mídia eletrônica e a política econômica estatal se aprofunda. Os ressentimentos acumulados podem, desta forma, se transformar em uma disposição de ressentimento fixo contra o mundo realmente existente.
Então, como responder ao risco? A resposta coletiva mais nobre seria a transdução da incapacidade mútua de diversas fés existenciais de resolver definitivamente algumas das próprias questões e necessidades que as chamam ao ser através de conexões recíprocas que cruzam linhas de diferença doutrinária. Pontos comuns de insuficiência ou incerteza poderiam fornecer uma base para a conexão política através de diferenças notáveis de credo e filosofia. Mas tal agenda de pluralismo profundo não está colocada hoje, para dizer o mínimo. Hoje em dia, a resposta mais viável envolve andar para frente e para trás entre o diagnóstico da máquina de ressonância da direita e a busca de linhas seletivas de conexão com os círculos eleitorais à sua margem. Tal esforço envolve engajar-se com as pressões econômicas, de segurança e existenciais que encorajam a política da ressonância em muitos, uma tarefa que já explorei em outros lugares.[17] Uma
tarefa complementar é engajar-se com um movimento minoritário positivo dentro do próprio evangelismo ou do capitalismo de mercado.
VIII
Observo, portanto, uma tendência minoritária dentro do evangelismo que pode plantar a semente de uma futura coalizão. Os defensores evangélicos do “Teísmo Aberto” alegam que a visão de Deus como onipotente e onisciente torna Deus cúmplice do mal. Os teístas abertos oram a um Deus limitado e amoroso que aprende à medida em que o mundo se transforma. Assim, eles abraçam uma imagem do tempo como devir que toca tanto o não-teísta Nietzsche quanto o filósofo americano de um Deus limitado em um mundo em devir, William James.
John Sanders, autor de The God Who Risks: A Theology of Providence, chegou ao Teísmo Aberto poucos anos após a morte de seu jovem irmão, quando companheiros paroquianos lhe explicaram como a morte era parte do inescrutável plano de Deus. Ele resistiu a essa história. Mais tarde, ele leu as Escrituras com esta questão em mente, dissecando seções do Antigo e do Novo Testamentos, como ele os chama, onde Deus escuta, reconsidera, ou reavalia. A Bíblia, diz ele, está cheia de tais instâncias, incluindo a tentativa bem sucedida de Moisés de convencer Javé a não matar os judeus que haviam sacrificado o bezerro e os momentos em que Jesus implora a Deus que o escute. A própria oração pode sugerir um Deus que escuta, pensa de novo e periodicamente muda de idéia. Sanders resume sua leitura da Escritura em um ponto,
Em sabedoria, Deus decidiu cumprir suas promessas através do caminho particular que Jesus tomou. Em sabedoria, Deus decide como ele continua a cumprir suas promessas, e a sabedoria divina leva em conta as circunstâncias mutáveis do mundo . . . Deus é livre para fazer coisas novas e assim identificar-se de novas maneiras.[18]
Alguns defensores do Teísmo Aberto têm sido condenados por heresia em suas escolas e igrejas, mas outros parecem estar de pé até hoje[19]. E o debate está se deslocando para os bancos das igrejas evangélicas.
Este contra-movimento contém alguma promessa de pluralizar o cristianismo evangélico a partir de dentro, pois desafia a teologia dominante sobre onipotência, tempo, conhecimento, moralidade e responsabilidade. Mais profundamente, seus líderes expressam o desejo de substituir uma espiritualidade permeada pela vingança por uma espiritualidade inspirada pelo cuidado com a fragilidade do mundo. Aqueles que confessam esta fé também fazem contato com a busca mundana de Zarathustra quando ele diz “Que aquele homem seja libertado da vingança, isto é, para mim… a ponte para a mais alta esperança e um arco-íris após longas tempestades”.[20] Há aqui, então, afinidades de sensibilidade que se estendem através de diferenças doutrinárias significativas, afinidades que poderiam ser trabalhadas para atrair proponentes de vários credos para um conjunto maior de ressonância. Para empreender o esforço, porém, é necessário que os radicais, liberais e secularistas reconsiderem o papel que as disposições existenciais desempenham na política e na vida econômica, derrubando o impulso de autodestruição que aprisiona credos e modos de espiritualidade no âmbito privado.
Considere o potencial. Um Deus que arrisca e aprende pode aprender a expandir seu cuidado com a diversidade do ser. Ele poderia decidir um dia que a homossexualidade não é um pecado, que os recursos do mundo não são infinitos, que as mulheres não são ordenadas a serem subordinadas, que a moralidade nem sempre toma a forma de um comando e que o neoliberalismo é tão pouco necessário para a vida econômica quanto um Deus onipotente o é para a religião. Naturalmente, tais questões e problemas seriam submetidas a uma série de dolorosos debates, tanto dentro das igrejas quanto fora delas, para que qualquer um desses movimentos surgisse. E aqueles de nós fora do movimento evangélico que apreciam o papel da espiritualidade dentro de uma economia cultural e de uma cultura de vida econômica teriam que colocar algumas de nossas orientações favoritas sob revisão crítica também. Os domínios inter-codificados da escritura, filosofia, literatura, igreja, organização do trabalho, carteiras de investimento, mídia e tumulto familiar seriam todos trazidos em jogo. Permanecer fora desses debates e domínios hoje é retirar-se das paixões da política.
Aqueles que resistem ao impulso de vingança existencial que faz girar a máquina evangélico-capitalista precisam fazer conexões com dissidentes nas bordas desta máquina. Não porque nossos credos reflitam os deles, embora possam, em alguns casos, refletir os deles. Mas, primeiro, porque eles procuram insinuar uma pluralização ativa da fé no cristianismo evangélico; segundo, porque eles transmitem um cuidado transformador pelo ser que deve crescer se as energias democráticas quiserem se expandir; terceiro, porque eles diminuem o elemento dogmático do ethos da fé; e quarto, porque conduzem a uma corte nessa aliança ímpia entre o capitalismo cowboy e o cristianismo extremista, que sufoca as perspectivas do igualitarismo e da democracia pluralista.
Os participantes de uma tal contra-máquina poderiam se reunir em torno de um grafite anônimo rabiscado em um muro após o 11 de setembro. Ele dizia: “Proteja-nos Deus daqueles que acreditam em você”, e previa a conexão entre aqueles que aterrorizam em nome de Alá e aqueles que permanecem em silêncio sobre a máquina de tortura de Bush sob a rubrica da fé. Muitos em tal contra-movimento abraçariam (em algumas variantes) o Deus chamado a nos proteger, enquanto outros poderiam extrair uma disposição complementar desta ou daquela fé não teísta. Uma série de afinidades existenciais através de linhas de diferença de credo poderia lançar a semente para um movimento político maior. Esta luta pode não ser muito mais difícil do que aquela que atraiu os portadores da ganância capitalista e da vingança transcendental para uma máquina teopolítica de ressentimento.
[1] Uma apresentação anterior do elemento evangélico na economia política contemporânea foi feita na primavera de 2005, em um painel da WPSA em Oakland, CA, organizado em torno da nova edição de Sheldon Wolin’s Politics and Vision (Princeton: Princeton University Press, 2005). Essa edição acrescenta uma Parte II ao texto clássico de 1960. Enquanto discordei de seu relato sobre o Nietzsche, recorri ao argumento de Wolin sobre a América como “Superpotência” na Parte II. Este ensaio é dedicado a Sheldon Wolin, em apreço ao seu trabalho pioneiro e à inspiração que ele proporciona a muitos que praticam a vocação da teoria.
[2] Para a idéia de causalidade emergente aqui exposta veja William E. Connolly, “Method, Problem, Faith”, em Ian Shapiro, Rogers M. Smith, e Tarek E. Masoud, Problems and Methods in the Study of Politics (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), 332-339. Este ensaio, assim como o presente, é endividado a Gilles Deleuze e Felix Guattari, “Micropolitics and Segmentarity” in Brian Massumi trans., A Thousand Plateaus (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987), 208-231.
[3] Aqui estão algumas textos que focalizam o papel que a ganância desempenha nesta aliança. No entanto, eles não ancoram essa ganância em nada além dos processos normais do capitalismo sub-regulamentado. “Enron’s Smoking Gun,” The Foundation for Taxpayer and Consumer Rights, http://www.consumerwatchdog.org/utilities/nw/nw002172.php3; “Unveiling the Corporate GreedMarket,” http://www.consciouschoice.com/cc1709/hightower1709.html ; “Enron Flew Under the Radar,” Common Dreams New Center, http://www.commondreams.org/ view02/0212-03.htm
[4] Mark Blyth, Great Transformations: Economic Ideas and Institutional Change in the Twentieth Century (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), 267.
[5] Left Behind: A Novel of the Earth’s Last Days, by Tim Lahaye and Jerry B. Jenkins (Wheaton, IL: Tyndale Publishers, 1995), 468.
[6] Esta citação vem de uma coluna de Nicholas Kristof, “Apocalypse (Almost) Now” New York Times, 24/11/04, 27. É do último volume da série. Eu ainda não li esse.
[7] Existem agora SUVs grandes, comedores de combustível, perigosas e destrutivas e outros de design menor e mais eficientes. As diferenças são revistas no relatório do New York Times de 1º de abril de 2005 sobre os veículos que os republicanos e os democratas compram, respectivamente. As correlações entre partido e veículo são boas, mas o que é necessário são correlações refinadas entre a disposição existencial e o uso do veículo. Estas também poderiam ser buscadas, particularmente à luz de novas técnicas de escaneamento cerebral que, avançando além daquelas disponíveis por algumas décadas, podem discernir estados cerebrais específicos que unem os comunicantes em uma relação de confiança.
[8] Ver Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, trad. Talcott Parson (Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1958). “A riqueza é, portanto, má eticamente apenas na medida em que é uma tentação à ociosidade e ao prazer pecaminoso da vida, e sua aquisição é má apenas quando é com o propósito de mais tarde viver alegremente e sem cuidados … A ênfase na importância ascética de um chamado fixo forneceu uma justificativa ética para a moderna divisão especializada do trabalho. De maneira semelhante, a interpretação providencial do lucro justificava as atividades do homem de negócios” (163). Estas duas declarações esclarecem tanto o contato quanto a diferença entre a análise de Weber sobre o elemento espiritual na formação do capitalismo e minha mais modesta tentativa de decifrar a espiritualidade de uma determinada constelação de pessoas em um país hoje.
[9] Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, 99, 140
[10] Ler Zarathustra como eu o faço é discernir que a vontade de “ser igual” – que ele conecta com a vontade de vingança – é principalmente a exigência de que todos ou se tornem iguais (por exemplo, tenham a mesma fé, a mesma sexualidade, a mesma etnia, a mesma crença no mercado) ou sejam punidos por não o serem. O “super-homem” não é um tipo separado de humano para Zarathustra até o final do texto; ele eventualmente se torna uma voz nobre em meio a muitos eus em nome da afirmação. Mais do que Zarathustra, eu separo a vingança contra a diferença do impulso para reduzir a desigualdade econômica. A primeira é uma medida da minha dívida para com ele; a segunda, da minha resposta agonística a sua despreocupação com a desigualdade econômica.
[11] Ver Timothy P. Weber, Waiting for the Second Coming, 2d ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1987). Weber traça o movimento desde o início do século XX até a década de 1980. Sua visão de que a “privação relativa” apenas ajuda a explicar suas atrações é pertinente ao relato aqui. Sua atenção aos milenaristas, como o ex-senador do Oregon Mark Hatfield, que compartilhava suas crenças mas não abraça sua política feia, também é pertinente. Mais uma vez, é a crença formal em conjunto com a suscetibilidade ou resistência ao ressentimento existencial que é importante. É por isso que pode ser possível pluralizar ainda mais as orientações políticas dos evangélicos.
[12] Frank Ankersmit, ““Democracy’s Inner Voice: Political Style as Unintended Consequence of Political Action”, em John Corner e Dick Pels eds., Media and the Restyling of Politics, (Londres: Sage, 2003), 19. O objetivo de Ankersmit é mostrar como a realidade política não se esgota com as articulações de seus participantes.
[13] Talvez este seja o ponto em que se deva notar que o ressentimento existencial pode ser expresso sem ser articulado porque tal disposição afetiva está repleta de idéias. Portanto, dizer que as pessoas podem compartilhar o mesmo credo formal enquanto diferem na sensibilidade nele infundida não é dizer que uma sensibilidade consiste em puro efeito. Ao invés disso, uma sensibilidade impregnada de ideias inflete o significado de um credo definido publicamente desta ou daquela forma. O credo explícito pode dizer: “Somente Jesus pode salvá-lo”. A idéia implícita e afetivamente carregada pode ser “e você vai arder no inferno se não for batizado” ou “se você for uma pessoa decente, ele vai salvá-lo”. Além disso, duas pessoas poderiam compartilhar a primeira disposição, mas diferem significativamente na intensidade com que ela é sentida.
[14] Robert Heath, The Hidden Power of Advertising: How Low Involvement Processing Influences the Ways We Choose Brands (Oxford: Admap Publications, 2001).
[15] O livro de Heath mencionado acima pode ser lido de forma proveitosa em conjunto com Mark B. N. Hansen, New Philosophy for New Media (Cambridge: MIT Press, 2004), especialmente o capítulo 6. Hansen explora a arte experimental, que traz para o primeiro plano as dimensões afetivas geralmente deixadas no fundo da percepção. Uma contrapolítica eficaz da percepção deve se basear em tais experimentos para criar maneiras de desafiar as campanhas de mídia de imagem-som com as quais somos bombardeados.
[16] Para um ensaio que explora as imbricações entre a mídia, o show business e a política eleitoral na Inglaterra e na Holanda ver John Street, “The Celebrity Politician”: Political Style and Popular Culture”, em John Corner e Dick Pels, eds., Media and the Restyling of Politics, 85-98. Um livro perspicaz que examina o papel do entretenimento na política dos Estados Unidos é Jeffrey Jones, Entertaining Politics (Nova Iorque: Rowman e Littlefield, 2004).
[17] Eu persigo esta pergunta sobre os registros de identidade e economia em The Ethos of Pluralization, capítulo 4, “Fundamentalism in America” (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994). Estou em dívida com Patchen Markell, que depois de fazer comentários atenciosos sobre um primeiro rascunho deste ensaio, também me encorajou a relembrar este momento anterior em meu pensamento.
[18]John Sanders, The God Who Risks: A Theology of Providence (Downers Grove, IL: Intervarsity Press, 1998), 108
[19] “Can God See the Future?” The Chronicle of Higher Education (November 26, 2004), 12.
[20] Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, 99.
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