Por Gabriel Peters
O que vai abaixo não é uma apresentação sintética da obra extensa e multifacetada de Bernard Lahire. Quem tiver interesse na trajetória intelectual desse sociólogo pós-bourdieusiano já pode encontrar excelentes mapeamentos, por exemplo, nessa aula de Priscila Coutinho e nesse post de Frédéric Vandenberghe. Em vez de oferecer uma introdução bibliográfica ao percurso sociológico de Lahire, discutirei seu projeto intelectual de uma “sociologia psicológica” ou “sociologia do indivíduo”. Na discussão, farei um entrecruzamento livre de suas ideias com aquelas de outros autores que apertam minha mente, a começar pelo espírito obsessor de Lahire na sociologia: Pierre Bourdieu.
Com e contra Bourdieu: uma radicalização do determinismo sociológico
Ao longo de toda a sua carreira, Lahire parece querer estabelecer com o legado de Bourdieu uma relação similar àquela que o próprio Bourdieu travou com o estruturalismo de Lévi-Strauss: uma crítica imanente, disposta a abrir e retificar seu esquema analítico “a partir de dentro”, conservando seus elementos válidos, porém corrigindo e expandindo seu programa teórico de pesquisa em novas direções. Eis por que Lahire consegue ser simultaneamente, como notou Vandenberghe (2016: 96), o mais entusiasmado discípulo e o mais persistente (para não dizer teimoso) dos críticos de Bourdieu.
Ambos compartilham uma orientação disposicionalista, calcada na tese de que a subjetividade é moldada – nas suas disposições de pensamento, sentimento e ação – pela socialização em condições particulares de existência. Como é sabido, parte da infatigável energia sociológica de Bourdieu foi despendida na demonstração de que o agente individual não se opõe ao mundo social como uma realidade a ele externa, mas constitui um dos modos de existência desse mundo (2001: 185). O programa lahireano de uma “sociologia psicológica” ou “sociologia na escala individual” (2008) abraça essa tese bourdieusiana para, então, acompanhá-la em todas suas implicações. O curioso, diz Lahire, é que algumas dessas implicações tornam problemáticas certas ideias centrais do próprio Bourdieu. Seria o caso, em particular, da tese de que os agentes tendem a utilizar as mesmas disposições incorporadas no seu habitus em diferentes cenários de ação, graças ao caráter “transponível” de tais disposições – por exemplo, o burguês transferiria seu “gosto de luxo” para suas mais diferentes esferas de consumo (na escolha das roupas que compra, dos restaurantes que frequenta, dos filmes que assiste no cinema etc.), o mesmo valendo para o “gosto de necessidade” interiorizado no habitus das classes populares.
Se a expressão “sociologia psicológica” arrisca sugerir mais uma tentativa de reduzir explicações de processos sociais a psiques individuais autônomas, Lahire insiste que seu projeto é o inverso: mostrar que os modos de agir, pensar e sentir das subjetividades individuais são inteiramente explicáveis sociologicamente, isto é, como produtos da socialização dessas subjetividades em condições sócio-históricas específicas. Longe de um questionamento do “determinismo sociológico” de Bourdieu ou de quaisquer outros, portanto, a sociologia psicológica projetada por Lahire é uma radicalização e uma especificação desse determinismo.
Em primeiro lugar, já sabíamos que, se as subjetividades individuais são socialmente moldadas em seus modos de agir, pensar e sentir, o teorema se aplica não apenas à explicação de semelhanças entre indivíduos (p.ex., agentes de diferentes classes sociais que falam um mesmo idioma nacional), mas também às diferenças entre eles (p.ex., agentes que falam um mesmo idioma, porém segundo diferentes “estilos” de classe). Mas Lahire dá um passo decisivo ao salientar também que tais diferenças interindividuais não são redutíveis a diferenças intergrupais (p.ex., os volumes desiguais de “capital linguístico” entre agentes de diferentes classes que falam um mesmo idioma). Nesse sentido, uma sociologia na escala individual poderia explicar, pela reconstrução de histórias particulares de socialização, diferenças entre agentes individuais socializados em “idênticas” condições sociais de existência – idênticas, isto é, segundo critérios macroestruturais (p.ex., classe, gênero, raça, etnicidade etc.). Pensemos em dois indivíduos gêmeos, cuja identidade de material genético coexiste ainda com as mesmas influências socializadoras fundamentais (família, escola, condições socioeconômicas etc.). Mesmo esses gêmeos não possuem, a rigor, a mesma história de socialização: quando um quebra um vaso e recebe uma bronca do pai enquanto o outro apenas testemunha a cena, digamos, seus percursos socializadores já começam a conter diferenças que, mesmo se pequenas em si, podem se acumular como uma bola de neve para engendrar enormes discrepâncias em suas respectivas personalidades.
A teoria bourdieusiana do habitus sublinha que indivíduos socializados em condições de existência semelhantes adquirem disposições de conduta também semelhantes, já que estas são “interiorizações” das circunstâncias sociais nas quais se formaram (p.ex., os confortos ou desconfortos, oportunidades ou privações associados a uma fração de classe em um espaço social desigual). Bourdieu reconhecia de bom grado que nenhum indivíduo empírico poderia estar de posse de um habitus exatamente idêntico a qualquer outro, pois não existiriam duas socializações absolutamente iguais em todos os seus pormenores. Contudo, ele tratava logo de sublinhar que tais diferenças eram, por assim dizer, “variações sobre um mesmo tema” ou, no caso, sobre um mesmo habitus: “a história de um indivíduo”, assim falou Bourdieu (1983: 81), “se desvenda como uma ‘variante estrutural’ do habitus de seu grupo ou de sua classe”.
Todo esse papo sobre “variante estrutural” teria servido, sugere Lahire, para que Bourdieu retirasse com a mão esquerda o que acabara de ofertar com a mão direita: uma sociologia dos repertórios disposicionais singulares de indivíduos empíricos.
Afinal, como um habitus é “transmitido” e “incorporado”? Abrindo as caixas-pretas
Fazendo apelo a partidários de uma “sociologia analítica” com a qual sua obra, de resto, tem pouco em comum (p.ex., Raymond Boudon), Lahire defende que a sociologia elucide os mecanismos internos de fenômenos que, embora centrais à teorização sociológica, possuem nela o status de “caixas-pretas”. Grosso modo, a metáfora da “caixa-preta” designa aquelas situações científicas em que a conexão causal entre duas variáveis é bem asseverada, mas o mecanismo que as liga não é bem conhecido. Por exemplo, sabemos que crianças tendem a falar com sotaques parecidos ou idênticos àqueles dos seus principais agentes de socialização, mas como exatamente se dá tal aprendizado dos sotaques? Mimetismo inconsciente? Imitação consciente? Um misto dos dois processos?
A bem da verdade, a condição da caixa-preta se aplica a boa parte dos processos de aquisição de disposições mentais e corpóreas via socialização. Quais são os mecanismos interpsíquicos e intrapsíquicos por meio dos quais, por exemplo, a criança vem a internalizar esquemas de percepção já possuídos por seus agentes primários de socialização, como pais e professores? Como diz o autor:
“O programa científico de uma sociologia psicológica viria a preencher o vazio deixado pelas teorias da socialização ou da inculcação (como a teoria do habitus)…que se referem retoricamente à ‘interiorização da exterioridade’ ou à ‘incorporação das estruturas objetivas’ sem jamais verdadeiramente lhes ‘materializar’ pela descrição etnográfica (ou histórica) e pela análise teórica” (Lahire, 2008: 378).
Ao procurar elucidar os mecanismos que as ciências sociais costumam apenas pressupor ou, como afirma Lahire com certa injustiça, descrever de modo “retórico”, a sociologia psicológica se desdobra em uma microssociologia radicalizada. No entanto, lembremos uma vez mais, essa aproximação à dimensão microscópica da vida social não vem acompanhada por uma ênfase na liberdade relativa do indivíduo em relação a seus contextos sociais. A radicalização de uma inflexão micro na sociologia psicológica de Lahire não esposa qualquer antideterminismo. Ao contrário, trata-se de uma radicalização do determinismo sociológico mediante aquela abertura de “caixas-pretas” comumente abandonadas à psicologia: um hiperdeterminismo que, ao deparar com uma multiplicidade de instâncias sociais moldadoras da subjetividade, rapidamente se converte em um multideterminismo.
Já que falamos, aliás, da entrada da sociologia em domínios tradicionalmente tomados como exclusivos da psicologia, cabe lembrar que o determinismo sociológico de Lahire se converte também em uma espécie de “expansionismo” sociológico desavergonhadamente voltado a temas psicológicos clássicos. Lançando uma preciosa sugestão em uma nota de rodapé, Lahire afirma, por exemplo, que a sociologia não deveria abordar o tema da “doença mental” somente pelo estudo da sua “percepção social e histórica” ou da “trajetória socioinstitucional” de indivíduos marcados por tal classificação. A sociologia também deveria buscar explicar as próprias experiências psicopatológicas ou, na formulação radical do autor, “a produção social da própria doença” (Ibid.: 373). (Quer um exemplo desse tipo de análise? Cá está.).
Lahire acrescenta, ainda, que um raciocínio similar se aplicaria a quaisquer outros fenômenos classicamente tomados como centrais pela psicologia, inclusive o “sonho” – tema a respeito do qual ele veio a escrever um livro inteiro (2018).
Quem diabos disse que é mais fácil estudar o indivíduo?
Críticos anglófonos do individualismo metodológico, como Steven Lukes e Roy Bhaskar, já haviam questionado afirmações segundo as quais fenômenos individuais seriam de mais fácil acesso empírico do que fenômenos sociais. Lukes (1977: 181) lembrou, por exemplo, que a interação entre juiz, réu e advogados em um julgamento é bem mais fácil de observar e entender do que, digamos, o que vai pela mente do réu. Bhaskar (1998: 30) também frisou que conceitos relativos a indivíduos não são necessariamente menos complexos do que conceitos referentes a fenômenos coletivos, a exemplo das noções de “amor” e “guerra”: uma guerra entre milhões de indivíduos pode ser de mais fácil descrição, pelo menos no essencial, do que as complexidades, nuances e ambiguidades de uma única experiência amorosa.
Lahire não dá mostras de conhecer esse debate anglo-saxão, mas é um entusiasta da ideia de que o indivíduo é uma realidade mais difícil de estudar sociologicamente do que “os universos sociais, os campos, os grupos sociais, as instituições ou as situações” sociais (Lahire, 2008: 376). Trazendo à mente de quem lê a famosa definição que Marx deu do concreto como “síntese de múltiplas determinações” (Marx, 2008: 258), Lahire arremata que, se o indivíduo é um estado individualizado ou “desdobrado” do social, a singularidade do caso individual só pode ser alcançada pela compreensão “dos processos gerais dos quais esse caso não é mais do que o produto complexo” (p.385). Em outras palavras, entender sociologicamente um único indivíduo demanda entender uma multiplicidade de processos sociais que, ao se entrecruzarem na sua trajetória de experiências, o determinam na sua singularidade.
Contra o situacionismo radical
Ao reivindicar sua pertença à sociologia disposicional, Lahire quer rejeitar as “aproximações não históricas e ‘dessocializantes’ do mundo social (reduzido a uma gramática ou uma lógica de ação presente, aos sistemas de ação, à ordem presente de interação” (Ibid.: 377). Trata-se de rechaçar, bem entendido, todas as formas de “situacionismo metodológico” que julgam ser a conduta social explicável por lógicas situacionais que se exerceriam sobre agentes intercambiáveis. Por exemplo, para um situacionista radical como Garfinkel, o usuário de uma agência bancária é sempre usuário de uma agência bancária, independentemente de sua história pregressa de socialização. Assim, a ordem situacional (i.e., a agência bancária) possuiria uma primazia explicativa em relação a quaisquer fulanas e beltranos empíricos nela situados.
Contra essa visão, Lahire sustenta que agentes dotados de diferentes disposições de conduta, retraçáveis a diferentes percursos de socialização, produzirão respostas práticas também diferentes às “mesmas” situações (p.ex., um indivíduo tímido e um indivíduo extrovertido não se comportarão do mesmo modo em uma festa e nem mesmo em uma agência bancária). Lahire “não nomeia nomes”, mas é fácil ver que sua crítica se aplica tanto a tradições norte-americanas (p.ex., Goffman, que definiu sua abordagem como voltada não a “homens e seus momentos”, mas a “momentos e seus homens” [1967: 3]) quanto à “sociologia pragmática” de Boltanski e Thévenot, que reagiram com uma espécie de situacionismo presentista radical ao que viram como peso excessivo conferido por Bourdieu às disposições adquiridas .
Disposições duráveis? Depende
Lahire pretende flexibilizar o modelo bourdieusiano da operação situada de disposições adquiridas. Sem negar o peso das primeiras experiências socializadoras, o crítico de Bourdieu quer levar mais a sério mudanças de trajetória social que impliquem graus mais profundos de “reestruturação” ou mudança disposicional:
“Essas disposições podem se extinguir progressivamente, chegando até mesmo a desaparecerem completamente por falta de atualização…? Poderiam elas…ser destruídas em um trabalho sistemático de contra-socialização (pensa-se em todas as intenções missionárias, sectárias, totalitárias ou escolares de destruição dos hábitos existentes, considerados como maus costumes a serem erradicados)? […] Como as múltiplas disposições incorporadas, que não formam necessariamente um ‘sistema’ coerente ou harmonioso, se organizam ou se articulam?” (Ibid.: 377)
A passagem citada evidencia uma orientação básica – e sensata – da teorização lahireana: um senso da variedade de possibilidades empíricas que mantém sob controle os riscos da generalização abusiva. O caso de indivíduos que, ao mudarem-se de um cenário linguístico para outro, eventualmente esquecem o idioma em que primeiro foram socializados, por exemplo, ilustra disposições que se “extinguem progressivamente”. Quanto aos trabalhos de “contra-socialização”, a questão é complexa. Por um lado, a recalcitrância das disposições combatidas por esses trabalhos “contra-socializantes”, recalcitrância exemplificada pelas frequentes “recaídas” vividas por indivíduos já “convertidos” a um novo modo de vida (p.ex., um retorno momentâneo ao uso de drogas por um indivíduo que estava sóbrio desde sua conversão a uma religião neopentecostal), ainda dá testemunho da relativa inércia e durabilidade de disposições previamente adquiridas. Tais disposições não desaparecem, decerto, da noite para o dia. Por outro lado, o fato de que diversos desses trabalhos de contra-socialização terminam sendo “bem-sucedidos” em seus propósitos práticos, pelo menos em significativa medida, também indica que a “plasticidade” disposicional que um agente individual apresenta ao longo da vida tendeu a ser subestimada por Bourdieu, pelo menos nos seus escritos mais antigos.
Isto dito, se você acha que Lahire não é completamente justo com Bourdieu aqui, concordo contigo.
A reflexividade como mediadora entre disposições plurais e conflitantes
Como vimos em uma das pílulas dedicadas a Bourdieu, a noção de “senso prático” pressupõe que a maior parte das situações empíricas de ação no mundo social se dá em condições marcadas por uma “urgência da prática”. Tal qual em um esporte como o tênis e o futebol, os agentes não teriam nem o tempo nem o luxo de refletir conscientemente sobre alternativas de ação. Por isso, eles seriam obrigados a recorrer às disposições incorporadas do seu senso prático para responder às circunstâncias com que deparam.
Repetindo uma crítica feita por muitos outros, Lahire nota que esse “modelo esportivo da ação” (2002: 45) passa ao largo das frequentes situações de conduta social movidas pela reflexividade; i.e., pela consideração consciente de alternativas de ação, pelo ensaio imaginativo de condutas, pela conversação interna e silenciosa do indivíduo consigo mesmo sobre o que deve fazer etc. Segundo a sugestão de Lahire, um dos motivos dessa negligência da reflexividade do ator leigo (i.e., não sociólogo) na teoria da prática de Bourdieu é sua negligência correlata das experiências de hesitação, dúvida ou conflito interior a respeito do que fazer. Frente aos estímulos de uma situação particular, o agente bourdieusiano raramente veria surgir em si próprio propensões de conduta conflitantes entre si: “não se resiste, não se é despertado por outros desejos, trabalhado por outras pulsões” (Ibid.: 379).
De novo, Lahire é um tanto injusto aqui, ignorando as muitas discussões de Bourdieu sobre o “habitus clivado”, inclusive como fonte de reflexividade entre agentes leigos (por exemplo, na sua sociologia econômica da Argélia).
Seja como for, se as deliberações reflexivas sobre cursos de conduta tomam a forma de “conversações internas”, por exemplo, não surpreende que tais conversações se imponham justamente nos momentos em que “partes” de um mesmo self ou subjetividade discordam a respeito do que fazer. Se a vontade de comer uma fatia de bolo de chocolate salta à consciência juntamente com o desejo de permanecer firme na dieta, um resultado frequente é alguma espécie de diálogo interno entre os diferentes “membros” dessa minissociedade que é a mente. Na verdade, tal interação “intrassubjetiva” abre espaço para a ocorrência, no seio de uma mesma subjetividade, de todos os fenômenos que a psicologia mapeia nas relações intersubjetivas, como a negociação (p.ex., Parte A da subjetividade: “e se for só um pedacinho pequeno, para aplacar a vontade de sabor doce sem ingerir calorias em excesso?”; Parte B da subjetividade: “só se você prometer que, a partir de amanhã, vai retomar a dieta pra valer e sem essas desculpas“) ou a briga (p.ex., Parte B: “não, você não vai comer esse bolo de chocolate!”; Parte A: “Mas eu mereço! Hoje foi um dia mais difícil do que o habitual!”; Parte B da subjetividade: “Não interessa! Quantas vezes você já se deu essa mesma desculpa?” etc.).
Educação para a transponibilidade: sistemas educacionais bourdieusianos
Como notaram outros autores (e.g., Lave, 1988), todo o sistema educacional das sociedades modernas é estruturado pela premissa (bourdieusiana!) da “transferibilidade” das competências intelectuais ali adquiridas. Em contraste, muito da psicologia cognitiva contemporânea, ao se tornar sensível à variedade situacional em que a cognição opera, mostra que tal transferibilidade é bem mais problemática do que supõe a doutrina pedagógica dominante. Por um lado, atores como entregadores de caixas de leite (Shenk, 2010: 40-41) ou donas de casa responsáveis por compras no supermercado (Lave, 1988) são capazes de realizar, no trato com esses desafios práticos, cálculos cuja complexidade corresponde a níveis muito mais altos de instrução educacional formal em matemática do que o possuído por eles (na verdade, por quaisquer pessoas que não sejam matemáticos profissionais). Por outro lado, não é difícil encontrar competências intelectuais que, por bem estabelecidas que sejam na relação do indivíduo com seu ambiente formal de ensino, tendem a ser abandonadas pelo mesmo indivíduo quando ele transita por outros ambientes. Por exemplo, ao enfrentar questões de lógica e teoria dos conjuntos em um teste simulado, um concurseiro pode reconhecer formalmente o erro da afirmação “Se todo B é A, todo A é necessariamente B”. No entanto, quando não está estudando, mas ouvindo um podcast de discussão política, o sujeito comete as mesmíssimas falácias lógicas que havia evitado no espaço formal de ensino – por exemplo, tendo ouvido que todo comunista (B) é esquerdista (A), ele conclui que todo esquerdista (A) é comunista (B).
Disposições transponíveis? Depende
Afinal, o que Lahire tem para substituir a tese da alta coerência e transponibilidade das disposições adquiridas? Basicamente, a ideia de que, em sociedades amplamente diferenciadas que levam os indivíduos a circular em esferas de ação com princípios distintos, o agente incorpora um repertório de disposições plurais e mesmo conflitantes entre si. Na medida em que uma disposição de conduta sempre permanece em stand-by até ser ativada por algum gatilho situacional, a maior parte dos indivíduos nas sociedades modernas não “transfere” as mesmas disposições de uma situação a outra. Ao contrário, eles ativam diferentes disposições desse repertório plural a depender das diferentes situações em que se encontram (p.ex., o mesmo sujeito é combativo e brigão no trabalho, amoroso e carinhoso com os filhos em casa, tímido e temeroso na hora de conversar com o pai etc.).
Ainda que não mencione Simmel, Schütz ou Mead, Lahire aqui trilha um caminho prefigurado por aqueles três autores. O exemplo dos administradores nazistas de campos de extermínio – cuja prática impiedosa do assassinato profissional de milhares de pessoas dava lugar, no âmbito privado, a disposições como aquelas do marido afetuoso, do pai gentil ou do pianista amador – é apenas o mais extremo dentre diversos outros desse caráter situado da operação disposicional da subjetividade.
Admiravelmente alerta quanto aos riscos da generalização abusiva, Lahire enfatiza que sua argumentação sobre os limites da transferibilidade disposicional não procura substituir um apriorismo teórico por outro. Nesse sentido, assim como critica os usos do teorema da transferibilidade como postulado a priori, ele rejeita também a tendência de algumas “sociologias pós-modernas” a substituírem a total coerência do ator por uma tese reversa que postula sua “dispersão, explosão, fragmentação ou disseminação infinita” (Ibid.: 383). Em última instância, em vez de decidir-se de antemão por uma teoria da unicidade ou da pluralidade do ator, cabe à sociologia investigar as condições sócio-históricas concretas de produção de agentes mais ou menos (in)coerentes nas suas disposições de conduta.
Bourdieu, Lahire, Weber
Em diversos momentos, a discussão de Lahire pode ser traduzida na linguagem da distinção weberiana entre o “tipo ideal” e o “tipo médio” (Weber, 2000: 6), sobretudo na medida em que o sociólogo francês se dirige contra confusões entre formas de subjetividade ideal-típicas, de um lado, e formas de subjetividade empíricas, de outro – confusões contra as quais a epistemologia neokantiana de Weber se insurgiu com muita frequência. Uma ilustração aventada por Lahire é o contraste entre disposições ascéticas e hedonistas na sociologia da educação. Por motivos analíticos, poder-se-ia construir dois modelos típico-ideais de estudantes: de um lado, o estudante ascético sempre disposto a sacrificar gratificações extraescolares (p.ex., ocasiões de lazer com os amigos) em prol da sua dedicação aos estudos; de outro lado, seu antípoda hedonista que manda para o espaço as obrigações escolares, pelo menos sempre que pode, para dedicar-se de todo àquelas gratificações. Segundo Lahire, um pesquisador que adentrasse tal ou qual espaço escolar concreto com a expectativa de encontrar manifestações de carne e osso daqueles tipos ideais de estudante se veria, na melhor das hipóteses, com uma minoria estatística de candidatos. “A grande maioria dos estudantes”, afirma Lahire, se encontra…
“…em situações ‘medianas’,…mistas, ambivalentes: eles não são nem máquinas-de-trabalho nem arroz-de-festa, mas alternam, de acordo com os contextos e, sobretudo, seus entornos (e suas pressões) no momento, épocas de dedicação ao trabalho e momentos de relaxamento, sofrendo alternativamente da dor de sua adoção do ascetismo e da dor de consciência do estudante hedonista. Portadores de disposições…relativamente contraditórias, eles são mais numerosos estatisticamente que seus companheiros ‘exemplares’” (Ibid.: 386).
A distinção weberiana entre o tipo ideal e o tipo médio também ajuda a dar sentido à tese lahireana, veiculada em A cultura dos indivíduos (2006), de que, quando se levam em conta as preferências culturais dos agentes empíricos, a coerência dos princípios de gosto ao longo de diferentes esferas de consumo, coerência que Bourdieu embute nos seus retratos ideal-típicos dos habitus de diferentes frações de classe, é antes a exceção estatística do que a regra. O caráter muldimensional dos habitus retratados por Bourdieu, no mesmo passo em que os fortaleceu como mapas heurísticos das diferenças nos gostos de classe, transformou-os em tipos ideais no sentido weberiano, no sentido de não corresponderem, na sua forma pura, a qualquer agente empírico.
Pensemos, sei lá, em tipos ideais dos estudantes de ciências sociais e de engenharia civil. O interesse pelo que singulariza uma categoria em relação à outra pode nos levar à multiplicação de variáveis – por exemplo, os primeiros têm maior tendência a usar bermudas, calçar chinelos, ser de esquerda e ouvir música brasileira, enquanto os segundos têm maior tendência a usar calças, calçar tênis, ser de (ou mais à) direita e ouvir música estadunidense. A questão é: a cada nova variável inserida (p.ex., cabelo grande e cabelo curto; maior ou menor interesse por cinema nacional; e assim por diante), vai diminuindo a probabilidade de encontrarmos um estudante empírico, em ambos os cursos, que corresponda exatamente ao perfil ideal-típico em todos os seus traços. Correlativamente, vai aumentando a probabilidade de perfis empíricos “dissonantes” quanto às características elencadas nos tipos (p.ex., um estudante de engenharia que vai à universidade de calça e sapato, mas é de esquerda), até o ponto em que os dissonantes se tornam maioria estatística.
A mesma lógica se aplica ao argumento lahireano de que perfis culturais dissonantes são estatisticamente majoritários. Citemos – só dessa vez, juro! – uma passagem enorme do homem mesmo para ilustrar o argumento:
“Por exemplo, assume-se que visitantes de museus são demasiado sérios para considerarem a possibilidade de frequentar parques de diversões ou assistir a filmes de ação. Hiperinterpretações desse tipo, que não precisam ser uma consequência inevitável da teoria da legitimidade cultural, nos levam, então, a presumir, mediante uma intensificação puramente imaginária de investimentos e conhecimentos culturais, que todos aqueles culturalmente mais privilegiados são ascéticos culturais. Seja qual for o contexto (Com quem? Quando? Por quê?), a disposição cultivada é tomada como mais forte do que todo o resto…(…) Se retivermos apenas duas variáveis, para tomar o mais básico dos perfis culturais, é nítido que o número daqueles que associam práticas ou gostos menos legítimos com práticas e gostos altamente legítimos nunca é insignificante. Pares que não se encaixam do ponto de vista da legitimidade cultural. (…) Por exemplo, 48% daqueles que normalmente leem livros altamente legítimos (literatura clássica, ensaios) têm uma preferência por música menos legítima (36.4% deles também preferem filmes de baixo status). Quando se acrescenta um terceiro domínio cultural (daí um quarto, um quinto, um sexto e, finalmente, um sétimo), observamos uma erosão gradual dos perfis coerentes e revelamos as incoerências entre parte daqueles que, até então (na base de duas práticas culturais), tinham um perfil perfeitamente coerente. Por conseguinte, quanto mais práticas adicionarmos, maior será a probabilidade de revelar indivíduos culturalmente compósitos ou híbridos, pessoas com geometria variável em gostos (o que não significa que eles sejam culturalmente livres de qualquer determinação). De qualquer maneira, é bastante difícil afirmar, como faz Pierre Bourdieu, que ‘os esquemas gerativos do habitus são aplicáveis, por simples transferência, às áreas mais dissimilares da prática’” (Lahire, 2015: 112; 115; grifos meus).
Conclusão: sou uma só pessoa e sou livre…só que não
Embora Lahire não insista tanto sobre o tema da “ruptura epistemológica” quanto Bourdieu, não há dúvida de que concorda com o postulado. O tema é pertinente para a discussão sobre a “unicidade” dos atores socializados, pois o feitio heterogêneo e mesmo contraditório das disposições dos agentes humanos escapa, com muita frequência, à consciência deles próprios. Por que tal falta de consciência quanto à própria heterogeneidade disposicional ou, pelo menos, quanto ao alcance dessa heterogeneidade? No mais das vezes, responde Lahire, as disposições discrepantes do mesmo ator não são ativadas simultaneamente, mas em situações distintas – o que significa que as mesmas discrepâncias não aparecem tão dramaticamente à consciência do agente quanto o fariam caso fossem ativadas ao mesmo tempo. Ademais, afirma Lahire, “a ilusão de um eu unificado, homogêneo, coerente” (Ibid.: 384) é produzida e reforçada por um sem-número de discursos, ideologias, dispositivos e instituições, os quais vão das unificações e continuidades encorajadas pelas narrativas de si até os mecanismos de individualização formal instituídos pelo estado (p.ex., documentos de identidade).
O acento de Lahire sobre a multiplicidade de determinismos socializadores que pesam sobre o indivíduo serve a ele de hipótese explicativa para o próprio “sentimento de liberdade” que é tão amplamente distribuído entre os membros das sociedades contemporâneas. Segundo o autor francês, na medida em que as forças sociais que determinam as práticas do indivíduo variam marcadamente segundo seus cenários de ação, o indivíduo termina por concluir que é livre, pelo menos em última instância, em relação a todas elas. Para Lahire, o inverso é verdadeiro: ele é determinado (multideterminado) por todas.
Pesado isso.
Referências
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________O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.
GOFFMAN, Erving. Interaction ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon, 1967.
LAHIRE, Bernard. O homem plural. Petrópolis: Vozes, 2002.
________Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre, ArtMed, 2004.
________A cultura dos indivíduos. Porto Alegre, ArtMed, 2006.
________“Esboço do programa científico de uma sociologia psicológica”. Educação e Pesquisa, v.34, n.2, 2008.
________”Culture at the level of the individual: challenging transferability”. In: COULANGEON, Phillipe; DUVAL, Julien. (org.). The Routledge Companion to Bourdieu’s Distinction. London: Routledge, 2015.
________L’interprétation sociologique des rêves. La Découverte: Paris, 2018.
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LUKES, Steven. Essays in social theory. London: Macmillan, 1977.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
SHENK, David. The genius in all of us. New York: Doubleday, 2010.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Vol.1. Brasília: UnB, 2000.
Para citar este texto: PETERS, Gabriel. O que cabe em um indivíduo? Notas de uma aula sobre Bernard Lahire e a sociologia psicológica. Blog do Labemus, 2023. [publicado em 19 de abril de 2023]. Disponível em: blogdolabemus.com/2023/04/19/lahire-sociologiapsicologica/
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