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O eu e suas vidas não vividas: Norbert Elias e a sociologia de um tema existencialista, por Gabriel Peters

A ideia de que vivemos uma única vida, dentre uma infinidade de vidas que "poderiam ter sido e não foram", é um tema central à filosofia existencialista. Ao historicizar e sociologizar este tema, Elias mostra que a experiência de "vidas não vividas" é menos um universal da condição humana do que um efeito psíquico das condições sociais e históricas da modernidade.

Arte por Mariana Cavalcanti e Vinícius Buarque

Texto por Gabriel Peters

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Ensaio dedicado a Maria Stela Grossi Porto , cuja conduta de professora, orientadara e (finalmente) colega sempre me inspirou e agradeço desde que ela me indicou, quando eu ainda era um desorientado aluno de graduação, um texto que trazia o lado mais “existencial” das reflexões de Norbert Elias. 

Introdução: viver uma vida possível, perder todas as outras

“… o que eu poderia ter sido não foi. O passado, levado pela memória afetiva, oferece farrapos de conteúdos virtualmente no eu inicial, que se tornou, dentre tantos outros possíveis, apenas o eu insatisfatório que é.

Antonio Candido comentando Carlos Drummond de Andrade (2017: 73)

Talvez haja, em algum lugar, depósitos de tesouros onde se armazenem todas essas vidas não vividas, como armaduras, berços ou vestimentas que ninguém jamais usou. Todos os caminhos acabam levando a esse arsenal de coisas não vividas.

Rainer Maria Rilke, citado por Norbert Elias (1994a: 107)

Quando ainda era uma estudante na casa dos vinte e poucos anos, Simone de Beauvoir definiu, no seu diário, o dilema de sua vida adulta: embora ela tivesse diante de si, naquele momento de sua trajetória existencial, todo um conjunto de “vidas” Possíveis, sua única vida real transcorreria à custa das “mortes” de todas as suas outras biografias potenciais – estas restariam, no fim das contas, como vidas que poderiam ter sido e não foram (Kirkpatrick, 2020: 66). Impressiona o fato de que Beauvoir já entretivesse, então, as ideias que ela própria popularizaria posteriormente no pressuposto filosófico da “angústia” e da “contingência”. Para além da evidência antissexista de que Beauvoir já era um bocado existencialista em época na qual nem sabia da existência de Sartre(digamos que ele era nada para ela), a formulação no seu diário estudantil também dava testemunho de outro insight beauvoiriano: vivências humanas ordinárias como a ansiedade da escolha são, mesmo entre não filósofos, impregnadas de conteúdo filosófico .

Com efeito, não é preciso ter encontrado conceitos existencialistas em livros de filosofia para se ter uma compreensão intuitiva de que escolher um caminho (p.ex., um parceiro amoroso, uma formação acadêmica, um percurso profissional) é renunciar a outros ( a uma desenvolvido de outros). Da “vertigem da liberdade” em Kierkegaard (2011: 67) à tentação da “má-fé” em Beauvoir (2016: 21) e Sartre (1997: 92), passando pela angústia no Heidegger de Ser e tempo (2006: 329 ) , filósofos de sensibilidade existencial e existencialista expressaram no discurso uma vivência que já conhecia, pelo menos em alguma medida, de modo intuitivo e pré-discursivo. Como tentei defender aqui (com amigos), aqui e aqui, tais ideias filosóficas foram retrabalhadas em chave sociológica por figuras como Peter Berger , Pierre Bourdieu , Anthony Giddens e Ulrich Beck .

Antes tomado pela filosofia existencial(ista) como traço universal da condição humana, o senso angustioso de que a biografia real é apenas uma dentre outras possibilidades contingentes, as quais serão para sempre aniquiladas na construção de nossa vida única “em situação”, foi historicizado por uma sociologia da modernidade . A angústia da escolha entre vidas possíveis, levando a uma consciência potencialmente dolorosa de vidas diversas que “poderiam ter sido e não foram”, é muito mais comum em configurações sociais modernas. Estas ampliaram o espaço de decisão individual em domínios antes abandonados à inércia das estruturas tradicionais, como o casamento ou a profissão.

Pois bem. Antes de todos os autores citados acima, tal processo já havia sido sublinhado por Norbert Elias em sua sociologia histórica do estado nacional moderno e da “civilização dos costumes” que o acompanhou :

à medida que os indivíduos deixam para trás os grupos pré-estatais estreitamente parecidos, dentro das sociedades nacionais cada vez mais complexas, eles se descobrem diante de um número crescente de opções . Mas também têm que decidir muito mais por si . Não apenas podem como devem ser mais autônomos . Quanto a isso, não têm opção” (Elias, 1994a: 102; grifos meus).  

Ainda que Elias – cuja economia de citações nominais é bem conhecida – não o diga explicitamente, ele próprio sugeriu uma contribuição pioneira para a historicização e sociologização do tema existencialista das “vidas não vividas”, sobretudo no seu breve ensaio “ A individualização no processo social ” publicado em A sociedade dos indivíduos (1994a: 101-126). Oriundo de notas de aula, o presente comentário põe as 25 ou 26 páginas do texto de Elias para conversar livremente com outras páginas do próprio autor e de outros autores que me interessam. O propósito não é, portanto, oferecer uma apresentação condensada da obra inteira do sociólogo alemão, algo que diversos estudiosos competentes do pensamento de Elias no Brasil estão mais bem preparados para fazer –vide, para dar só um exemplo, o ótimo livro que Andrea Borges Leão e Tatiana Landini acabam de lançar .

“Sujeiras” formativas: uma nota sobre Elias e o existencialismo

No presente texto, meu interesse primordial se dirige ao modo como Elias trata sociologicamente dos temas substantivos do existencialismo, muito mais do que às passagens de sua obra em que o sociólogo alemão dialoga explícita ou implicitamente com filósofos como Heidegger e Sartre – os quais são, digamos desde já, causticamente criticados pelo autor d’ O processo civilizador nas poucas vezes em que ele os menciona expressamente.

É mais comum encontrarmos tais menções em entrevistas, quando a relativa informalidade da situação de conversa permite que Elias se expresse mais livremente. A Peter Ludes, por exemplo, Elias afirmou que Sartre partiu do reconhecimento sensato de que os seres humanos possuem algum grau de autonomia e liberdade, mas desembocou, a partir disso, em uma insatisfatória “idealização romântica” da “liberdade metafísica do homem” ( Elias, 1984: 144). Em movimento típico de seu modus argumentandi , Elias sugeriu ainda que a antítese filosófico-especulativa entre liberdade e determinismo, acarinhada por filósofos como Sartre, deveria ser substituída por uma abordagem sociológica centrada em relações de interdependência e balanços de poderentre os seres humanos (Ibid.).

Quanto a Heidegger, a história é mais complexa. Em Norbert Elias por ele mesmo , o autor alemão destacou o quanto incorporou de seu orientador de doutorado, Richard Hönigswald, uma disposição de não perder tempo com “imbecis e metafísicos” ou com o que derivasse da “simples especulação filosófica”:

Era impossível discutir com ele [Hönigswald] sobre Heidegger e filósofos existencialistas, tinha bastante dificuldade em esconder o desprezo que sentia por tais ‘sujeiras do pensamento’ . (…) É a…Hönigswald…em particular…que devo uma consciência que não deixa passar essas ‘sujeiras do pensamento’, a afetação, as poses, as fachadas hipócritas, em suma, que rejeita a maior parte do que não deriva do tema tratado ” (2001a: 102).

Já idoso, em uma entrevista televisiva, Elias chegou a ridicularizar os jogos de palavras heideggerianos como retórica vazia. Questão resolvida? Nem tanto. O próprio autor que menciona esse episódio de zombaria aberta da heideggerianice, o eliasiano e eliasólogo Richard Kilminster (2007: 20), argumenta longamente em favor da tese de que as críticas “existenciais” e “existencialistas” de autores como Heidegger e Jaspers à herança cartesiana e ao(s) neokantianismo(s) foram tolerados para a trajetória do jovem Elias nos seus anos de formação na Alemanha. Diversas inflexões na “filosofia da existência” que a contrapunham às heranças de Descartes e Kant, como a ênfase no entrelaçamento originário da subjetividade com um mundo social de atividades práticas, conseguindo um caráter “proto-sociológico” (Ibid.: 158). Ao exporem “problemas na ortodoxia kantiana”, os debates que tais correntes existenciais estimularam animado Elias a “buscar soluções especificamente sociológicas” para aqueles problemas (Ibid.: 19). O interesse tardio de Elias sobre temas como o tempo (1998) e a morte (2001b) indicaria ainda, segundo Kilminster, tanto a reverberação de problemáticos existencialistas no seu pensamento quanto sua intenção de criticar as respostas filosóficas do existencialismo – criticá-las, isto é , desde a posição heuristicamente mais vantajosa da sociologia.      

Elias e a sociologia do individuo

Elias foi um mestre da “imaginação sociológica” no sentido clássico que Wright Mills (1975) emprestou à expressão: a captura sagaz dos vínculos complexos entre dilemas biográficos e processos macrossociais. O pano de fundo macrossociológico do estudo eliasiano sobre as “vidas não vividas” reconhece na diferenciação estrutural e na especialização de funções duas tendências centrais à modernidade. Voltado aos efeitos que tais mudaram nas estruturas sociais modernas produziram sobre as estruturas de personalidadedos indivíduos nelas imersos, Elias mostra que sociedades altamente diferenciadas pressionam seus membros individuais a se singularizarem e, portanto, a discreparem uns dos outros nos seus modos de estar no mundo. Como Durkheim e outros, o autor d’ O processo civilizador (1994b; 1994c) sublinhou, pois, o quanto a individualização de interesses, treinados, competências, aptidões etc. ao contrário, um resultado histórico de pressão que a própria sociedade exerce sobre os indivíduos.

As coletividades humanas não se dão a uma fonte de homogeneização das personalidades. Quando altamente diferenciadas, como são aquelas da modernidade, as sociedades também são forças de singularização das subjetividades individuais. Em suma, a “singularidade do indivíduo”, sugere Elias como sociologizador implacável, não é o que escapa à influência social, mas o efeito dessa influência. Isto dito, tal influência é frequentemente difícil de compreender na medida em que, por sua própria natureza, a experiência individual da própria singularidade não é vivenciada como um processo de fonte social, mas, ao contrário, como suposta evidência de uma separação ou distanciamento frente à sociedade como um todo (1994a: 107).  

Bora ver isso.

Na medida em que sociedades complexas dependem de trabalhadores especializados, elas próprias têm de instituir o controle de treinamento necessário à especialização profissional de seus membros individuais. Quanto mais técnicas se tornam tais especializações, mais prolongados são os processos de capacitação cognitiva e prática para o exercício de trabalhos especializados. Eis o que ajuda a explicar, numa história de longa duração, o alongamento temporal das trajetórias educacionaisnecessária à participação de um indivíduo adulto no mundo do trabalho de uma sociedade complexa. Com sua característica sensível à moldagem social da subjetividade, inclusive na sua dimensão corpórea, Elias destaca o papel central que a diferenciação funcional moderna teve para a própria invenção histórica da “adolescência” como geração preservada entre a infância e a fase adulta (Ibid.: 104 ). 

Trilhando um caminho analítico já vislumbrado por Durkheim, Elias notou que os efeitos da especialização sobre as subjetividades individuais não se restringem à aquisição das habilidades stricto sensu necessárias ao exercício da profissão. Na medida em que as diferentes porções da personalidade não constituem compartimentos herméticos, as experiências socializadoras locais de treinamento educacional e/ou profissional impactam mais amplamente a subjetividade dos indivíduos ali treinados (eg, suas inclinações políticas, influenciadoras artísticas, disposições afetivas etc.) . Ainda que estejamos tratando de tendências , não de leis inelutáveis, pode-se supor, por exemplo, que uma formação em ciências sociaisencorajar os indivíduos a uma problematização política de esferas de sua vida que são formalmente independentes de sua atuação profissional, tais como sua existência familiar e seus relacionamentos erótico-afetivos. Desde que mantivemos a ressalva de que lidamos aqui com probabilidades, em vez de estereótipos rígidos com força de padrões de inclusão, passamos a dar outras tantas ilustrações de vínculos entre ocupações profissionais e tipos de personalidade.

Como já antecipamos, o breve ensaio de Elias capta as instruções geracionais dos altos níveis de especialização funcional e, por conseguinte, de individualização de personalidades na sociedade moderna. Embora o autor alemão não o diga com todas as letras, seu texto pode ser conectado ao ensinamento histórico de que a adolescência, como geração preservada entre a infância e a fase adulta, não é um fenômeno universal segundo as épocas históricas e os cenários culturais. Sem negar a historicidade dos próprios modos de socialização de crianças, pode-se reconhecer na consolidação sociocultural da adolescência, como geração transicional, um contraste agudo com as passagens abruptas do status de criança ao statusde adulto em diversas configurações sociais não modernas (Van Gennep, 2014).

“Superid”? Sociologia dos ansiosos inflados

Dialogando com a teoria freudiana da psique, Elias enfatizou que as trajetórias prolongadas de aprendizado preparatório para a vida adulta, assim como as experiências socializadoras no sistema educacional, não apenas como envolvimento das faculdades cognitivas dos indivíduos. Aquelas trajetórias são fundamentais à instilação dos controles morais historicamente intensificados que os filhos da sociedade moderna são forçados a exercitar sobre suas funções fisiológicas e seus impulsos afetivos. Para além das matérias disciplinadas, por exemplo, a escola “ensina” o indivíduo a passar longos períodos do seu dia sentado, a despeito dos impulsos imediatos que nele acorrem (p.ex., “queria um salgado da lanchonete”, “que vontade de ver agora o próximo episódio de Naruto !” etc.).

Tal disjunção vivida pelo aluno da escola entre ansiosos internos em disparada, de um lado, e comportamento externo disciplinado, de outro, ilustra algo além da introdução do significado histórico da “educação” como instituição moderna – tema que aproxima Elias de Foucault . Aquela disjunção entre o “dentro” e “fora” do indivíduo também mostra, se não a invenção histórica, pelo menos a tremenda intensificação da privacidade na modernidade – tanto no caso de funções fisiológicas (p.ex., uma dor de barriga ou vontade de cuspir da qual só o indivíduo tem consciência) quanto naquele de afetos (p.ex., uma pontada de inveja, escondida com todas as forças, quando um amigo fica sabendo do sucesso de outro):

Essas relações — todo o estilo de sua convivência social — levam cada vez mais a um controle geral dos afetos…À medida que prossegue essa mudança social, as pessoas são mais e mais instadas a umas das outras, ou até de si mesmos , as funções corporais ou as manifestações e desejos instintivos antes livremente expressos, ou que só eram refreados pelo medo das outras pessoas, de tal maneira que normalmente se tornam inconscientes deles” (Ibid.: 103; grifos meus).

Por óbvio, Elias está infinitamente mais próximo do retrato freudiano do que do retrato existencialista da psique, ainda que também submeta Freud a reparos  historicizantes e sociologizantes . O problema é que uma discussão mais detalhada sobre a relação entre existencialismo e psicanálise me levaria longe – tão longe que eu correria o risco de não voltar nunca mais. Então, direi apenas que, com a formulada sobre o que as pessoas escondem “ umas das outras, ou até de si mesmas ”, Elias abre espaço para abarcar tanto desejos privados conscientes (que o indivíduo não esconde de si mesmo, mas dos outros ) quanto desejos inconscientes (que o indivíduo, por definição, esconde de si próprio), sem falar nas zonas cinzentas entre uns e outros (desejos semiadmitidos, semiconscientes etc.).

Seja como for, em vez de suportar que as formas de (auto)controle “civilizado” próprias à sociedade moderna se exerçam sobre um repositório de paixões, afetos, aspirações e anseios associais, Elias enfatiza o caráter social e historicamente moldado desse próprio psicológico de impulsos e anseios . Historicizando e sociologizando o argumento de Freud em O mal-estar na civilização (Ibid.: 120), o sociólogo alemão afirma que a intensidade dos conflitos psíquicos entre desejos do “id”, de um lado, e controles interiorizados no “ego” e no “superego”, de outro, é variável segundo os contextos sócio-históricos . Tal variabilidade floresce do fato de que não somente esses controles como também aqueles desejos podem se expandir e sediversificar como resultado de influências socializadoras.

Ao construir uma versão sociologizada do retrato freudiano da psique, Elias abre espaço, no seu modelo analítico, para abrigar o contraste sócio-histórico que observares diversos pintaram entre os tempos vitorianos de Freud, de um lado, e nossos tempos “pós-neuróticos ( Ehrenberg, 2009), de outro. Vestindo roupasgens variadas em autores que vão de Bauman a Zizek, o argumento aponta para uma transformação socialmente induzida na relação entre desejos e proibições: enquanto o sujeito vitoriano, psicanalisado por Freud, sofria com a passagem oriunda da carga significativa de restrição social que a civilização “sólido-moderna” (Bauman) impunha aos seus impulsos, o habitante da “modernidade líquida” sofre não da contenção de seus anseios e desejos, mas, ao contrário, de sua incapacidade de responder plenamente à exortação a realizá-los oriunda de seu meio societário.

Escrevendo antes de Bauman e Zizek, por claro, Elias se debruça sobre a experiência do indivíduo jovem que tem diante de si uma gama de futuros possíveis. A transição prolongada à “vida adulta” já possui, no seu horizonte, uma especialização inescapável. No entanto, o processo que resulta em um afunilamento de opções depende de explorações empíricas e/ou imaginativas de diferentes caminhos profissionais e, por extensão, biográficos. Como acontece com relacionamentos erótico-afetivos, o espaço para a escolha individual na trajetória profissional é, em condições modernas, significativamente maior do que aquele de configurações pré-modernas, nas quais a escolha de uma ocupação ou de um parceiro matrimonial sequer despontava como possibilidade . Isto dito, a própria estrutura temporal das biografias individuais modernas tende a encorajarhiatos dolorosos entre as expectativas cultivadas nos seus primeiros ganhos (p.ex., anelos por sucesso profissional na realização de uma vocação artística ou esportiva) e os desenlaces reais condicionados pelos limites coletivos à autorrealização individual (p.ex., uma ocupação ditada pela necessidade material, com o correlativo abandono das esperanças vocacionais da juventude):

As tarefas profissionais acessíveis à massa dos indivíduos, na longa estrada da industrialização e da urbanização das tensas sociedade de transição, só coincidem com as expectativas dos jovens na minoria dos casos. Especializadas como são, dão margem limitada, na maioria deles, às inclinações e faculdades dos indivíduos. Muitas vezes, não há uma congruência ou continuidade adequada entre a vida na reserva da juventude e nos campos predominantemente restritos da atividade adulta . (…) Na vida social desse grupo etário, é comum desenvolverem-se aptidões e interesses aos quais as funções dos adultos, dentro dessa estrutura, não dão margem alguma; são formas de comportamento e inclinações que os adultos têm que cercear ou reprimir ” (Ibid.: 105).  

Seria essa consciência eliasiana de fontes sociais de psíquicas uma espécie de “retorno do Freud recalcado”? Talvez, desde que não esqueçamos que o conflito retratado por Elias não se dá (ou não se dá somente) entre impulsos pré-sociais e controles societários. Ele se dá também (ou sobretudo) entre anseios libidinais ( lato sensu ) e limites frustrantes que são engendrados, ambos, pela própria sociedadeonde o indivíduo trilha as diferentes possibilidades de sua vida. Primeiro, a sociedade encharca a criança e o jovem com desejos e ambições, alimentados por toda a sorte de fantasias estimuladas por meios de comunicação diversos (da televisão ao cinema, passando pelos videogames). Depois, essa mesma sociedade, lançando o indivíduo em um ambiente competitivo no qual uns só podem vencer às custas da derrota de outros, impondo aos adultos um grau de psicologia psicológica que eles não conseguiram caso seus desejos não tivessem sido tão intensamente cultivados e inflados por seu ambiente socializador. (Sim, sob esse aspecto, o Durkheim da discussão sobre anomia em O suicídio é atualíssimo! Mas isto é assunto para outro dia.).

Na juventude, a pessoa pode e deve escolher, dentre a profusão de metas possíveis que essas sociedades lhe oferecem — primeiro através da posição de seus pais e depois através da que ela atinge —, esta ou aquela meta que prometa a realização máxima de suas inclinações e aspirações pessoais. (…) as probabilidades de se chegar à consecução desses esforços em tais sociedades são sempre ínfimas em relação ao número de pessoas que a buscam. (…) O que nos interessa aqui não é a discrepância entre uma luta não-social inata do indivíduo e uma estrutura social que impeça sua realização. Trata-se, antes, de uma batalha pessoal aprendida, produzida no indivíduo por instituições sociais e experiências específicas, que, nesses casos, as instituições sociais não adotaram” (Ibid.: 119; grifos meus).

Sociologia das fantasias de futuro

Ao tratar dos efeitos psíquicos dessas trajetórias biográficas, é importante considerar o papel central das capacidades imaginativas – carregadas de afetos – dos indivíduos que as percorreram. Nas etapas preparatórias à “vida adulta”, como na formação escolar que precede a entrada na universidade ou, ainda, no treinamento universitário que antecede a vida profissional, as escolhas existenciais entre caminhos possíveis não dependem somente da experiência. Elas também dependem, e em maior medida, das fantasias da imaginação. Tais exercícios imaginativos, já associados a gratificações emocionais (p.ex., o prazer de se imaginar médico ou astro da música), podem se ligar a probabilidades de sucesso com graus variados de realismo. Devido ao próprio modo como os desejos individuais são moldados por uma cultura moderna saturada por meios de comunicação como a televisão, o cinema e a Internet, a fantasia antecipada dos benefícios de uma vida como – digamos – celebridade televisiva ou campeão esportivo contrasta com as antecipações imaginadas que se ligam à escolha de formações profissionais consideradas menos espetaculares: digamos, advogado ou médica, engenheira ou arquiteto. O contraste tem a ver, claro, com o maior ou menor desligamento de esperados plausíveis de realizações e com o grau em que a satisfação proporcionada pela fantasia é reconhecidamente imaginária.

Nesses últimos casos, decisões por um caminho em vez de outros podem se ancorar, decerto, em informações empíricas. O jovem pode, por exemplo, fazer sondagens de possibilidades financeiras (p.ex., “quanto ganha o psicólogo clínico amigo da minha mãe?”) e do cotidiano experiencial do trabalho (p.ex., “o que faz o psicólogo clínico ao longo do dia?”). Para que seja convertido em decisões efetivas quanto a uma profissão, entretanto, mesmo essa informação empírica tem de ser traduzida, na psique do indivíduo, em “ensaios imaginativos” (Dewey, 1980: 290) nos quais ele experimenta “como é ser x” (p.ex., como é ser uma engenheira que passa os seus dias entre computadores, planilhas de cálculos e canteiros de obras ou, ainda, uma psicóloga cuja escuta atenta de outros ocupa a maior parte de sua jornada de trabalho).  

Observadores atentos à desigualdade de classe e à precarização das condições de trabalho no novo capitalismo não tardarão a notar que os exemplos acima ainda se concentram sobre uma fatia notadamente privilegiada das sociedades contemporâneas. De todo modo, o que vale sustentar, por ora, é que mesmo o ajuste realista das aspirações subjetivas, ajuste que vai dos sonhos espetaculares (p.ex., tornar-se celebridade musical ou esportiva) para mais factíveis (p.ex. ., tornar-se funcionário público concursado), mesmo esse ajuste ainda deixa um espaço significativo para um hiato entre antecipações imaginativas e realidades vividas (p.ex., “ser professor é viajar o mundo discutindo ideias com pessoas inteligentes de interesses afins” vs .“ser professor é corrigir provas, participar de bancas, realizar trabalho administrativo etc.”).

A isso se soma a natureza compete desses espaços modernos, jogos de soma-zero nos quais a vitória de alguns (uma minoria) só pode se dar às custas da derrota de outros (uma maioria). Como Bourdieu depois dele , Elias sublinha que…

“…a luta por se destacar, por conquistar algo excepcional, por usar os dons pessoais e realizar-se na vida, só pode ser vencida por uma minoria. Contrapondo-se à satisfação de alcançar essas metas conceder a uma pequena minoria de pessoas, há uma insatisfação emudecida ou claramente sentida do número muito maior daqueles que não conseguem aquilo que esperavam nas grandes e pequenas competições, das que ficam aquém das aspirações de sua juventude à medida que envelhecem. Os sentimentos de realização dos primeiros correspondem aos últimos aos de não-realização, aborto, apatia, depressão, culpa e ausência de significado na vida. Também nesse caso, uma das formas características das pessoas em questão interpretarem seu destino é, muitas vezes, a ideia de uma discrepância entre sua natureza individual e as condições sociais que lhes são externas.” (1994a: 121). 

No meio do caminho tinha uma vida: reflexões no futuro do preto

Conforme o indivíduo passa pelos choques mais ou menos dolorosos da realidade ao tornar-se mais velho, ele não perde a capacidade demasiadamente humana de se desligar de sua realidade empírica presente, transportando-se em imaginação para domínios de experiência “virtual”. O “virtual” aqui deve ser entendido em sentido amplo, como designativo de experiências com algum desligamento, auxiliar pela imaginação, do cenário espaço-temporal imediato em que o indivíduo está lançado (p.ex., a vivência de um jogo de vídeo jogado com outros avatares no ciberespaço é certamente virtual, como reza o senso comum, mas também são “virtuais” o mergulho na narrativa ficcional de um romance ou a lembrança de minha viagem ao litoral dez anos atrás). Sendo finitos e tendo consciência de sua finitude, no entanto, os indivíduos sabem que anos a mais são anos a menos, conforme os dias vividos passam a superar em número os dias que se pode esperar viver. Ensaios imaginativos de futuros possíveis vão dando lugar, gradativamente, a reconstruções imaginadas de experiênciaspassadas .

Como sublinharam filósofos da contingência tão diferentes como Sartre e Foucault , a abertura contingente da vida e da história fornece uma lente de interpretação não apenas do futuro, mas também do passado. Tomar a vida real como realização efetiva de uma dentre outras possibilidades contingentes significa sensibilizar-se às vidas que poderiam ter sido e não foram. Conforme vai desesperançando do futuro do presente (“eu poderei…”), a imaginação dos indivíduos tem de se dedicar ao futuro do pretérito (“eu poderia…”):

Quando se olha para trás, é fácil deixar-se tomar pela dúvida. Eu não deveria ter escolhido um rumo diferente? Não terei desprezado todas as oportunidades que tive naquela ocasião? Agora que consegui isto, que produzi isto ou aquilo, que me tornei um especialista nisto ou fielmente, não terei deixado que se perdessem muitos outros dons? E não terei deixado de lado muitas coisas que poderiam ter feito? É próprio das sociedades que enfrentaram de seus membros um grau muito elevado de especialização que grande número de alternativas não utilizadas — vidas que o indivíduo não viveu, papéis que não desempenharam, experiências que não tiveram, oportunidades que perderam — ficam deixados à beira do caminho ” (Ibid.: 109-110). 

No fim das contas, tal experiência de “vidas não vividas” é menos um universal da condição humana, portanto, do que um efeito psíquico das condições sociais e históricas da modernidade.

Não quero dizer que ele faz menos. 

Os devaneios sobre vidas não vividas, para além de dolorosas, podem rapidamente tornar-se perniciosos, pois roubam nossa atenção do precioso presente onde está essa vida única que nos foi dado viver. Seria preciso algum médico sábio e bem-humorado, inventado por algum poeta sem dar muita bandeira, para nos tirar desse estado macambúzio:

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos. 

A vida inteira que poderia ter sido e que não foi. 

Joga, joga, joga. 

Mandou chamar o médico: 

-Diga trinta e três. 

-Trinta e três…trinta e três…trinta e três…

-Respirar. 

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. 

– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? 

– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. ” 

(Pneumotórax [Manuel Bandeira, 2006: 18]). 

Aqui vai um tango argentino:

Referências

BANDEIRA, Manuel. 50 poemas escolhidos pelo autor . São Paulo: Cosac Naify, 2006.

BAUMAN, Z. 1998. O mal-estar da pós-modernidade . Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Vol 1: Fatos e mitos . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BERGER, P. Perspectivas sociológicas . Petrópolis: Vozes, 1972.

CANDIDO, A. Vários escritos . Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017.

DEWEY, J. Teoria da vida moral. In: Dewey (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1980.

EHRENBERG, A. 2009. O cansaço de si. Montreal: McGill-Queen’s University Press.

ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.

________ O processo civilizador. Vol.1 . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994b.

________ O processo civilizador . Vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994c.

________ Sobre o tempo . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

________ Norbert Elias por ele mesmo . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001a.

________ A solidão dos moribundos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001b.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo . Petrópolis: Vozes, 2006.

KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia . Petrópolis: Vozes, 2011.

KILMINSTER, R. Norbert Elias: sociologia pós-filosófica . Londres: Routledge, 2007.

KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. São Paulo: Planeta do Brasil, 2020.

KRIEKEN, RV Norberto Elias . Londres: Routledge, 1998.

MILLS, CW A imaginação sociológica . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975.

SARTRE, JP O ser eo nada . Petrópolis: Vozes, 1997.

VAN GENNEP, A. Ritos de passagem . Petrópolis: Vozes, 2014.  

 Para citar este texto: 
PETERS, Gabriel. O eu e suas vidas não vividas: Norbert Elias e a sociologia de um tema existencialista. Blog do Labemus, 2023. [Publicado em 23 de março de 2023]. Disponível em:  https://blogdolabemus.com/2023/03/23/elias-e-as-vidas-nao-vividas/

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