Por Gabriel Peters
Nota preliminar: O texto que vai abaixo foi lido na cerimônia de colação de grau dos cursos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE em 5 de dezembro de 2022.
Muito boa noite! É com imensa satisfação que eu participo hoje dessa celebração como paraninfo da turma de formandos do curso de ciências sociais, a quem eu quero agradecer do fundo do meu coração. Agradeço a chance de poder parabenizar de viva voz essas alunas, alunes e alunos cuja sensibilidade, engajamento e inteligência fazem a minha profissão valer a pena. Como se não bastasse tamanha alegria, ainda acumulei a sorte imerecida de ter de falar hoje pelos paraninfos de todos os cursos do nosso CFCH: o Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Eu parabenizo, então, cada um dos patronos, paraninfos e, principalmente, cada uma das alunas/es/os de antropologia, arqueologia, ciência política, filosofia, geografia, história, psicologia e, por último, mas certamente não menos importante, sociologia.
Se uma formação universitária em qualquer dessas áreas das ciências humanas já é prova de competência e coragem, o diploma que vocês recebem hoje, depois de enfrentarem um dos períodos mais catastróficos de toda a história brasileira, é um atestado de heroísmo. A coragem da estudante de ciências humanas já começa na escolha do seu curso. Como qualquer outra pessoa, ela obviamente tem preocupação com a possibilidade de encontrar um emprego que possa sustentá-la e pagar suas contas. No entanto, ela se arrisca o suficiente para querer algo mais. Ela quer um trabalho dotado de um sentido e um propósito, mesmo que esse trabalho pague menos. Ela quer uma formação universitária que não seja simples ingestão de informação, mas o acesso a um conhecimento que possa transformar sua personalidade inteira e torná-la uma força para o bem em um mundo repleto de crueldade e sofrimento imerecido.
Enquanto a engenheira civil dificilmente se verá radicalmente transformada, na consciência da sua própria humanidade, ao estudar pontes ou antenas, cada um de vocês, ao escolher estudar seres humanos, embarcou em uma viagem de conhecimento do outro que é também uma viagem de autoconhecimento e autotransformação. Como na descida aos infernos de que falaram Kant, Freud ou Bourdieu, mergulhar nas ciências humanas é se expor a múltiplas crises existenciais que ameaçam destruir o próprio chão sob os nossos pés. Arqueólogos e Museólogos, por exemplo, tornam-se agudamente cientes da pequenez de cada vida individual, no mesmo passo em que se fascinam com traços de existências individuais que atravessam a poeira de milhares de anos até chegar aos nossos laboratórios e museus. Cientistas sociais aprendem a problematizar aspectos de sua vida social cotidiana que até então eram vividos com naturalidade e inocência. (Por exemplo, “se tanto minha mãe quanto meu pai trabalham fora, por que é ela quem vai lavar a louça e colocar o meu irmão pra dormir enquanto meu pai se senta na TV pra assistir televisão?” “Afinal de contas, será que uma piada é sempre uma piada às custas do outro? Qual outro?” E assim por diante…).
Finalmente, ao estudar história, geografia ou antropologia, as estudantes se dão conta da vertiginosa pluralidade de modos humanos de estar no mundo. Da culinária à sexualidade, do direito à arte, da crença em único Deus à crença em múltiplos deuses, nos damos conta de que nossas próprias maneiras de agir, pensar e sentir não são eternas, naturais ou universais; elas são apenas possibilidades particulares desse animal plural que é o ser humano.
A consciência aguda de que não vivemos sós, mas em redes de interdependência e cuidado, costuma levar, no meio da graduação, ao aprendizado mais perturbador de que a sociedade não existe somente fora de nós, mas também dentro e através de nós. O processo pode ser desconfortável e doloroso. Descobrimos que somos menos livres do que pensávamos, menos singulares do que pensávamos e menos inocentes, no fim das contas, do que pensávamos.
No entanto, a coragem para descobrir o quão profundamente o mundo social nos determina é o primeiro passo para adquirirmos mais liberdade em nossa relação com esse mundo e com a nossa própria personalidade. O aluno negro que descobre, em uma aula sobre relações raciais no Brasil, que foi exposto a uma estética racista que o levou a estranhar sua própria pele escura e cabelo crespo ganha a chance de romper com esse racismo instilado em sua própria psique. Ele descobre que uma política antirracista de transformação do mundo social passa por uma ética da autotransformação em que ele assume orgulhosa e desafiadoramente sua negritude. Algo similar ocorre com a aluna que descobre, em uma aula sobre desigualdades de gênero, que seu problema de timidez e autoconfiança não é só seu, mas deriva de uma distribuição desigual das prerrogativas de fala entre homens e mulheres. Essa aluna tem agora uma motivação política para tomar a palavra em público e, ao fazê-lo, dar o exemplo para outras mulheres que, como ela, podem ter interiorizado o machismo em sua própria subjetividade.
Esses são apenas dois exemplos em que um curso de ciências humanas, ao transformar os estudantes que nele entram, contribui para transformar o mundo. Mas será que esses exemplos dão razão ao tio reacionário do Whatsapp? Será o CFCH uma instituição de doutrinação esquerdista da juventude para o socialismo globalista e a destruição da família cristã? Somos parte da conspiração satanista-gayzista-abortista-Guarani-Kaiowá-do-Foro-de-São-Paulo? Não, não somos (não necessariamente). Somos cientistas! Diferentemente do tio do zap, que se considera especialista em todos os assuntos, vocês de fato se submeteram a anos de estudos e provas, de noites mal dormidas e de ginásticas intelectuais que fazem doer o cérebro; tudo isso para que possam produzir um conhecimento sobre o mundo social que é mais preciso, rigoroso, aprofundado e responsável do que aquele disponível no senso comum.
Assim como um físico que procura fontes ecologicamente sustentáveis de energia ou uma bióloga que procura a cura de uma doença, nós, das ciências humanas, também investimos em um conhecimento científico que possa melhorar as vidas de outros seres humanos e, aliás, das criaturas não humanas que, como nós, também sentem e sofrem. A suposta oposição entre ciência engajada e ciência neutra se dissolve quando lembramos que o conhecimento científico sobre a vida social será uma ferramenta tão mais valiosa e responsável de intervenção política sobre esse mundo quanto mais rigorosa e implacavelmente objetiva for nossa ciência. É somente o conhecimento objetivo das causas da pobreza que nos dará as ferramentas práticas mais eficazes para combatê-la; e o mesmo vale para o machismo, para o racismo e para tantas outras de nossas mazelas estruturais.
Houve uma época em que as perguntas mais chatas ouvidas por um estudante de ciências humanas diziam respeito à sua futura profissão. “Mas, afinal, o que faz um sociólogo?” “E você não quer ganhar dinheiro?” “Por que mesmo você quer ser professor no Brasil?”
Como sabem vocês melhor do que eu, essas perguntas não desapareceram, mas agora se juntaram a interrogações e ataques bem mais radioativos às universidades públicas em geral e às ciências humanas em particular. Um dos primeiros alvos do negacionismo letal que assolou o Brasil nos últimos anos foi o conjunto das ciências humanas, cujo caráter de cientificidade foi negado por doutrinadores que prometiam a qualquer pessoa um rápido pacote de opiniões sobre questões que vínhamos estudando há décadas. Do desarmamento civil à legalização da maconha, das cotas nas universidades às desigualdades na educação, um saber científico pacientemente acumulado foi estigmatizado como doutrinação esquerdista por doutrinadores de direita que, eleitos em 2018, chegaram ao poder com a intenção de nos destruir. A turma de ciências sociais da qual sou paraninfo chama-se “Sobreviventes do ensino remoto”. Vocês também são sobreviventes dos ataques ideológicos e institucionais de um governo que elegeu as ciências humanas como um de seus principais inimigos. E o diploma que vocês hoje recebem não é somente um atestado de resistência heroica aos ataques desse inimigo feroz, mas o início auspicioso de uma trajetória profissional e pessoal que tem tudo para deixar uma marca positiva no mundo.
Os mesmos ideólogos que tentaram negar – a nós das ciências humanas – nossa condição de cientistas eventualmente avançaram com seu negacionismo na direção das próprias ciências naturais e biológicas, alimentando uma política antivacina que resultou em centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas. Sim, vocês são sobreviventes. Mas, como sobreviventes, vocês…nós…temos o dever da memória em relação a estas pessoas que não sobreviveram à violência desencadeada nesses últimos anos pela pandemia, pelo machismo, pelo racismo, pela LGTFobia, dentre tantas outras mazelas.
Esse dever de memória não nos condena, entretanto, à seriedade crônica. Ao contrário, ele também nos leva a celebrar a vida como só nós das ciências humanas, modéstia à parte, sabemos fazer. O governo Bolsonaro está quase acabando. O percurso profissional de vocês, por outro lado, está somente começando. Modificando Belchior: eles perderam, e o sinal está aberto pra nós que somos jovens (ok, no meu caso, já não tão jovem quanto a maioria de vocês).
Que cada um possa fazer um caminho lindo e, com esse caminho, deixar o Brasil e o mundo um pouco melhores. Um abraço enorme e tudo de bom pra vocês!
Excelente texto!
Valeu, Marcos! Tamo junto! Feliz ano novo!