Arte por Mariana Cavalcanti
Por Gabriel Peters
Teoria crítica alemã…para além de Frankfurt
Hartmut Rosa é uma das figuras mais interessantes da atual teoria crítica alemã, pensada para além da sua identificação estrita com os “frankfurtianismos” de ontem e hoje, embora certamente em diálogo com tais frankfurtianismos. De modo um tanto similar a outras versões de teorização crítica (p.ex., a abordagem honnethiana ao tema do reconhecimento), a teoria rosiana da aceleração social como tendência-chave da modernidade procura suas âncoras nos próprios anseios e vivências dos agentes humanos imersos no mundo social. Embora sem escorregar para qualquer reducionismo psicologizante, o autor alemão compreende como “sintomas sociais” as formas de sofrimento psíquico contemporâneo associadas, de um modo ou de outro, ao aumento na velocidade de nossos ritmos atuais de vida. Da correria ansiosa para manter-se informado a respeito de questões políticas à dificuldade de fixar informações obtidas em leituras apressadas e superficiais; dos malefícios do fast-food à angústia crônica frente à falta de tempo para fazer o que devemos e o que queremos fazer; do derrame sofrido na bicicleta por um entregador de aplicativo que ganha menos de 50 centavos por quilômetro pedalado até o colapso depressivo de um professor substituto que não consegue mais levantar da cama… Exemplos de “sofrimento temporal” derivados da aceleração da existência na modernidade tardia estão, enfim, em todo canto.
Como outras tentativas de elucidar o sofrimento individual com lentes sociológicas , a teoria da aceleração social de Hartmut Rosa mostra que a vivência crônica da falta de tempo, a despeito de ser comumente tomada como um desafio biográfico, possui fontes sistêmicas . Longe de se reduzirem à incompetência na administração temporal de nossas atividades, portanto, as múltiplas vivências individuais de escassez de tempo são, na fase tardia da modernidade, uma espécie de alarme civilizacional: o sinal de um descompasso radical entre o ritmo do mundo social , de um lado, e o ritmo da existência individual, de outro.
Assim como a racionalização de acordo com Weber, a aceleração é tomada por Rosa como um processo multidimensional que se processa em diferentes arenas societais de maneiras diversas e conforme ritmos discrepantes (i.e., algumas acelerações podem ser mais aceleradas do que outras). Em vez de multiplicar os domínios de aceleração em um inventário exaustivo de dimensões da vida social, entretanto, Rosa propõe uma distinção mais básica entre três esferas relativamente autônomas, porém interdependentes: 1) aceleração técnica ; 2) aceleração da mudança social; 3) aceleração do ritmo da vida.
Três esferas de aceleração
Diferentemente do que ocorre com a vivência (inter)subjetiva da aceleração do ritmo da vida, a aceleração técnica tem a vantagem de ser facilmente mensurável segundo índices objetivos – como, digamos, o tempo necessário para percorrer mil quilômetros (p.ex., de carro ou de avião), para enviar uma mensagem de texto do Brasil ao Japão (p.ex., via carta, e-mail ou Whatsapp) ou para fabricar um tênis (p.ex., com maquinário mais ou menos desenvolvido) . As ilustrações apontam para os três âmbitos centrais à definição rosiana de aceleração técnica: transporte de coisas e pessoas, comunicação de informações e produção de mercadorias . Embora o desenvolvimento tecnológico stricto sensu de meios de transporte, comunicação e produção seja central à aceleração técnica, ela também inclui, desde o início, inovações organizacionais – por exemplo, a aceleração técnica da produção propiciada pelo regime fordista entrelaça um certo maquinário tecnológico a um método de administração social do trabalho.
Fundamental à ideia de aceleração da mudança social, por sua vez, é o fato de que a modernidade institucionaliza um aumento contínuo da velocidade com que os padrões de comportamento se transformam. O presente dura cada vez menos tempo, transformado que é em passado pela invasão rápida do futuro. Hein? Explico: Rosa concebe o presente como o intervalo temporal no qual as expectativas dos agentes coincidem com seus horizontes de experiência – por exemplo, aquela janela de tempo em que as habilidades que descubro serem mais valorizadas no mercado de trabalho, quando ainda estou no meu período de preparação profissional, continuam a ser as mais valorizadas quando entro nesse mercado.
Se o presente for pensado nesse sentido, conclui-se que a aceleração da mudança social se expressa em uma “contração” ou diminuição dessas ilhas de “estabilidade” existencial. Assim, por exemplo, é cada vez mais comum que uma habilidade adquirida pelo indivíduo ao longo de anos, na expectativa de aumento do seu capital profissional, sofra uma súbita desvalorização devido a uma transformação no mercado de trabalho (p.ex., uma inovação tecnológica). A notável redução nos “prazos de validade” dos saberes colhidos no passado, assim como das expectativas quanto ao futuro, encolhe a vivência do presente e, por conseguinte, o próprio senso que o indivíduo tem de sua autoidentidade (p.ex., estar em uma profissão vai se tornando muito mais comum do que “ser” profissional nisto ou naquilo; estar em um relacionamento com Fulana/e/o torna-se mais comum do que “ser” companheiro de Fulana/e/o; e assim por diante) .
A referência aos impactos existenciais da aceleração de mudanças sociais se desdobra, pois, na terceira esfera tematizada por Rosa: a aceleração do ritmo da vida, evidenciada nos tantos sintomas de uma extraordinária “escassez de tempo” vivida por indivíduos imersos em engrenagens coletivas em transformação acelerada. Interpretado em conexão com o desenvolvimento tecnológico, aquele agudo senso de falta de tempo não deixa de ser uma ocorrência tristemente irônica, sobretudo frente às promessas de tempo “liberado” feitas, pelo menos até ontem, pelos arautos e defensores da inovação tecnológica (p.ex., com mais trabalhos sendo deixados às máquinas, seres humanos poderiam dedicar mais tempo ao lazer e às atividades criativas…e assim por diante).
A teoria da aceleração social moderna delineada por Rosa explica o paradoxo acima como resultado de um ciclo impremeditado de retroalimentação . O senso da escassez de tempo entre os indivíduos gera uma demanda por dispositivos que o economizem. Tal demanda é respondida por inovações técnicas e socioeconômicas que, mesmo se funcionam no plano individual, contribuem sistemicamente para a dinamização coletiva de práticas e formas de vida que havia gerado aquela demanda em primeiro lugar. Rosa dá concretude a esta tese com o exemplo de Paciêncio, morador de Kairos, cidade do país Utêmpia: graças à invenção do telefone, ele “ganhou” o tempo que gastaria se tivesse de ir a pé a Chronos para mandar uma mensagem a Ephêmerus; graças às máquinas que possibilitam a cópia de livros, ele “ganhou” o tempo que antes gastava no seu trabalho copiando-os à mão; graças à máquina fotográfica digital, ele não precisa mais esperar horas a fio para obter um retrato de si com seu gato, o qual antes era pintado pelo pintor Aeternus; e assim por diante… Diante de tanto aparente “ganho de tempo”, por que Paciêncio se sente mais e mais acossado pela sua escassez ? Porque, responde Rosa,
“ …o tempo que Paciêncio ganha é novamente perdido, já que a copiadora, a máquina fotográfica e o telefone, com os quais ele economiza tempo, precisam ser fabricados e adquiridos. Supondo também que em Kairos haja produção por divisão do trabalho, Paciêncio tem que reproduzir, após a descoberta da “técnica”, proporcionalmente mais livros que antes (o que pressupõe, por sua vez, que a demanda de livros em Utêmpia também tenha crescido correspondentemente). Dessa forma, a administração do tempo, apesar da promessa da tecnologia, poderia ter se transformado em um jogo de soma zero (ou até mesmo de soma negativa): os moradores de Utêmpia precisariam do mesmo tanto ou talvez até de mais tempo para produzirem e conseguirem adquirir os aparelhos economizadores de tempo do que o tempo que eles economizam” (2019: LIV ).
Tal relação circular entre indivíduos e sistemas encontra seu análogo em uma dinâmica de pressão aceleratória mútua entre os diferentes sistemas que compõem sociedades hipercomplexas: em processos que envolvem a sincronização entre sistemas diferentes, a aceleração operacional de um deles (p.ex., o sistema econômico) exerce uma pressão pela aceleração dos demais (p.ex., o sistema educacional). No mais, na medida em que cada sistema funciona de modo autorreferencial (como ensinou Luhmann), ele considera “perdido” o tempo despendido em outros sistemas (p.ex., o tempo passado brincando com o filho é tempo perdido para o sistema que avalia a produtividade científica do sujeito, ao passo que o tempo passado na escrita de artigos é tempo perdido para as demandas afetivas do seu filho). Como resultado, o indivíduo é “sanduichado” pelas demandas práticas de diferentes sistemas e obrigado, assim, a acelerar o tempo despendido em cada uma delas (p.ex., preciso encurtar o jantar com o meu filho para escrever um projeto de pesquisa para a Capes…e preciso escrevê-lo rapidamente para poder levar meu filho à escola amanhã…e, aliás, preciso acelerar ambos os processos se quiser tempo para renovar meu passaporte etc.).
Sem tempo
Círculos viciosos de aceleração retroalimentada também caracterizam a existência de indivíduos que, para se manterem “competitivos”, se forçam a permanecer em “rodinhas de hamster” que giram cada vez mais rapidamente. Para além das normatizações temporais explícitas, como prazos e horários precisos, a aceleração da experiência cotidiana é impulsionada por “cronoimperativos” frequentemente invisíveis e implícitos. Exemplos desses imperativos são a pressão social por respostas rápidas em redes sociais (p.ex., uma mensagem indicada como visualizada em uma rede social, mas ainda não respondida, é fonte de embaraço e/ou irritação) ou a lógica da gratificação instantânea (p.ex., posts no Instagram têm uma pequena janela de oportunidade para gerarem curtidas antes de serem eclipsados por novidades, as quais envelhecerão rapidamente elas próprias).
Como acontece com os dias da semana, tais imperativos temporais, embora sejam intersubjetivamente convencionados, tendem a ser experienciados como dados inescapáveis do “mundo lá fora”, quase tão naturais quanto o tempo cosmológico (p.ex., não tenho uma mera consciência intelectual de que a segunda-feira de manhã chegou; eu sinto a segunda-feira de manhã pesar fisicamente sobre mim como um piano jogado na minha cama durante a madrugada). Na medida em que os constrangimentos normativos em prol da aceleração não podem ser plenamente atingidos pelo indivíduo, um senso de culpa, vergonha e/ou fracasso pelo hiato entre o tempo tal como deveria ser despendido, de um lado, e o tempo tal como efetivamente despendido, de outro, se torna uma vivência crônica e amplamente difundida.
Para além de sentimentos como culpa, vergonha e fracasso, o não atendimento das demandas sistêmicas por uma aceleração da vida produz uma série de sanções punitivas mais ou menos severas – por exemplo, não responder ao imperativo da “atualização” contínua das próprias competências profissionais pode implicar perdas no valor do próprio capital profissional, quando não da “empregabilidade” mesma. Tal ilustração oriunda do mundo do trabalho é somente uma dentre diversas outras de uma dinâmica aceleratória que se impõe ao conjunto das esferas biográficas dos indivíduos: das atividades de lazer às relações erótico-afetivas, da convivência familiar à operação cotidiana da sua cognição (p. ex., quanto tempo pode ser dedicado à leitura de um texto).
Como pré-requisito da permanência em arenas sociais altamente competitivas, o compromisso existencial e energético com a manutenção do próprio movimento nessas arenas atrapalha, quando não aniquila completamente, qualquer outro projeto pessoal autônomo. Nosso senso interior da experiência temporal também é, por conseguinte, profundamente alterado. O presente é contraído em atividades e vivências de curto prazo, dando a elas o caráter de “episódios” separados uns dos outros e incapazes de deixarem uma marca durável sobre nossas personalidades. Nosso tempo é “perdido”, diz Rosa retomando reflexões famosas de Benjamin, no sentido de que nossas vivências pregressas não adquirem durabilidade ou cumulatividade, ou seja, não são integradas à totalidade da nossa trajetória biográfica.
É possível pular fora da roda de hamster?
Uma questão já ventilada na fortuna crítica da obra de Rosa, assim como em discussões mais gerais sobre a relação entre subjetividade e poder no novo capitalismo, diz respeito aos graus em que a inserção dos indivíduos na configuração moderno-tardia é motivada por uma vontade livre, por uma obrigação inescapável ou por dinâmicas sociopsíquicas ambiguamente situadas entre uma e outra coisa.
O problema torna-se agudo quando Rosa enfrenta o paradoxo central de seu livro: o fato de que as tecnologias aceleratórias nos domínios do transporte, da comunicação e da produção não levaram a uma sensação de tempo liberado em abundância, mas, ao contrário, de extraordinária escassez temporal. Os polos da vontade livre e da obrigação imposta do exterior parecem corresponder respectivamente a duas vivências comuns na contemporaneidade: o medo de perder oportunidades (frequentemente designado pelo acrônimo FOMO: fear of missing out), de um lado; e a compulsão à adaptação, de outro (2019: 268). No primeiro caso, a difusão cultural de um ideal de boa vida fundado na riqueza e na variedade de vivências exerce uma pressão motivacional em prol da aceleração daquelas vivências. O aumento no número de vivências (p.ex., livros lidos, viagens feitas, mensagens trocadas) em um mesmo intervalo de tempo (p.ex., 80 anos de vida) requer necessariamente uma aceleração do ritmo daquelas vivências, graças à qual elas podem caber no período temporal em mira. Por exemplo, um potencial encontro de duas horas com um amigo terá de ser substituído, conforme aquele ideal, por dois encontros mais rápidos de uma hora com dois amigos diferentes. Um período de três horas que poderia ser devotado à leitura de um ensaio ou a uma exposição no museu é dividido entre ambos, o que significa que tanto a leitura quanto a visita ao museu têm de transcorrer de modo mais rápido. E assim por diante…Sob esse aspecto, a aceleração é uma promessa cultural de boa vida que leva os indivíduos a desejarem viver mais rápido.
Em contraste, como a própria expressão já torna evidente, a compulsão à adaptação se apresenta como resultado, nas vidas individuais, dos imperativos sistêmicos oriundos da aceleração da mudança social. Indivíduos são tomados pela consciência aguda, vivida também na pele e nas vísceras, de que a aceleração do mundo social circundante ameaça tornar obsoletas as habilidades já adquiridas e as realizações já alcançadas. Mesmo aqueles que têm o privilégio raro de poder contar com intervalos de tempo livre e desobrigado (p.ex., um mês mochilando; duas semanas de férias sem acessar o e-mail) sabem que esse “crédito” temporal terá de ser pago no momento de retorno (p.ex., condições de trabalho modificadas que exigem novas habilidades ou tornam supérfluos trabalhos anteriormente realizados; uma caixa de entrada entupida de mensagens).
A contração do eu
Como Norbert Elias e quase todo sociólogo que se respeite, Rosa sustenta que transformações na estrutura social se conectam a transformações nas estruturas de personalidade dos indivíduos. Ele sublinha, como convém à sua perspectiva “analítico-temporal” ou “cronossociológica”, que é a sincronização entre os respectivos ritmos temporais da sociedade e da subjetividade o ponto de “acoplamento” (2019: 294) entre uma e outra. Central à investigação de Rosa sobre os efeitos psíquicos da aceleração societal na modernidade tardia é o tipo de “autorrelação subjetiva” (i.e., de relação vivencial do indivíduo consigo mesmo) que é condicionado por aquela aceleração. Como vimos, o aumento da velocidade de mudança faz com que o passado seja cada vez menos confiável, para agentes e instituições, como fonte de ensinamentos seguros para as experiências subsequentes. O futuro, por sua vez, emerge como tão incerto e incontrolável que é preferível pensar nele como um horizonte aberto: a preparação genérica para “alguma mudança” ganha precedência sobre preparações específicas para futuros bem definidos. Em consequência, os indivíduos são pressionados a uma autoidentidade radicalmente presentista e situacional.
Os mecanismos pelos quais tais pressões sistêmicas sobre a individualidade atuam são múltiplos. Um dos mais evidentes envolve os prêmios materiais e simbólicos que as condições de trabalho no novo capitalismo oferecem à adaptabilidade e à flexibilidade: competências e redes estáveis vão se tornando menos valiosas do que a disposição do trabalhador em “atualizar” continuamente suas competências e, ademais , se dispor à sociabilidade com pessoas e redes sempre novas em função dos imperativos cambiáveis do mercado de trabalho.
Referenciais sociais da autoidentidade vigentes ao logo da modernidade, como localização geográfica ou ocupação profissional, não desaparecem. No entanto, o senso de sua instabilidade e, portanto, da sua circunscrição temporal se torna bem mais intenso: “o indivíduo não é padeiro, ele tem trabalhado (há dois anos) como padeiro; ele não é marido de Y, mas está morando junto com Y; ele não é de Munique e conservador, mas está morando (pelos próximos anos) em Munique e tem votado pelos conservadores” (2019: 296; grifos do autor).
No coração do livro de Rosa, encontre-se a tese de que as três modalidades de processo aceleratório por ele identificadas estabeleceram, na modernidade, uma relação histórica de retroalimentação circular, graças à qual a aceleração social, como megatendência multidimensional, adquiriu um caráter autopropelido (2019: 302). O senso de que essa interação circular entre as modalidades de aceleração não pode ser interrompida por iniciativas individuais, juntamente com a consciência das desvantagens interpostas aos projetos de desaceleração como iniciativa política (pelo menos por meios democráticos, acrescenta ele), dá ao livro seu sabor de pessimismo crítico-germânico, como se a gaiola de ferro ou “rija crosta de aço” (Weber) houvesse sido substituída por uma igualmente inescapável roda de hamster ou esteira em declive.
(Embora este não seja meu tema aqui, deixe-me ressaltar rapidinho que os trabalhos subsequentes de Rosa buscam remediar esse pessimismo mediante uma teoria da “ressonância” ).
Assim como outros autores enfatizam que o aumento nos índices de depressão tem de ser interpretado como um efeito sistêmico das exigências que o novo capitalismo faz às mentes e corpos dos indivíduos, Rosa contribui para uma contundente apreensão das fontes sistêmicas da vivência crônica e amplamente difundida de falta de tempo. Fundamentalmente, não é “o desperdício individual ou institucional de tempo”, muito menos “a indolência”, o que explica “o sentimento ubíquo de estar sempre atrasado diante de um mundo ‘sempre em fuga’”. A chave da questão é a “incongruência estrutural”, nos termos de Hans Blumenberg, entre o “tempo do mundo” e o “tempo da vida” (2019: 311).
A depressão do eu
As considerações de Rosa sobre a identidade “situacional” poderiam se desdobrar em um exercício detalhado de sociologia existencial , voltado às implicações psíquicas daquele modo de identidade. No que toca à relação com o próprio passado, o caráter situacional da identidade obsta, na autoconsciência do indivíduo, uma compreensão de sua trajetória pessoal como uma história inteligível de progresso ou desenvolvimento. Na medida em que nossa memória de vivências passadas é fortemente dependente de suportes materiais e interpessoais (p.ex., casas longamente habitadas, objetos de uso pessoal que pertenceram a outros, companhias pessoais que nos ajudam a fortalecer lembranças de tempos distantes etc.), a “descartabilidade” incrementada que a aceleração social impõe a tais suportes termina servindo também de dispositivo de enfraquecimento mnemônico. Se a evocação de lembranças pessoais se ancora com frequência em estímulos perceptuais disponíveis no presente, como bem sabia Marcel Proust, aquelas lembranças passam a minguar conforme minguam os estímulos que lhes serviam de ancoragens mnemônicas (p.ex., uma casa onde se mora há anos em vez de meses, um/a companheira/o de décadas em vez de anos).
Rosa expressa tal fenômeno na linguagem benjaminiana da “perda de experiência”. Não se trata de dizer, por óbvio, que os indivíduos perderam quaisquer registros mnemônicos de suas vivências passadas, mas, sim, que eles são cada vez mais destituídos das condições de transformar tais vivências em experiências no sentido de Benjamin: um passado vivenciado que transforma a personalidade ao integrar-se duramente a ela. Quanto à relação do indivíduo com o futuro, na medida em que a aceleração da transformação social proscreve expectativas e predições confiáveis, o futuro não aparece mais como cenário de cumprimento de metas definidas, mas como um destino desconhecido em direção ao qual, não obstante, nos movemos.
O presente é, pois, marcado por uma aceleração do ritmo da vida movida sistemicamente, no mesmo passo em que se comprime entre um passado com o qual rompeu e um futuro forçosamente indefinido. Já que a identidade presentista desatou seus laços tanto com o passado quanto com o futuro, o indivíduo está “estabilizado” ou “paralisado” sempre no presente, ainda que tal presente seja feito de contínua agitação: um estado paradoxal de “paralisia frenética”, na expressão de Paul Virilio. Nesse estado bizarro (que é o nosso), “a vida não se move em direção a lugar nenhum; ela anda em alta velocidade (de transformação) sem sair do lugar” (2019: 495).
Embora Rosa desenvolva o ponto com certa pressa (sic), há uma riqueza heurística a ser explorada na sua ideia de que a depressão constitui a psicopatologia mais representativa dessa condição existencial de paralisia frenética induzida pela aceleração social na modernidade tardia. Tal representatividade não deriva, por óbvio, de um estado de coisas em que todos os habitantes da modernidade tardia se tornam deprimidos. Ela resulta, sim, do fato de que as condições depressivas levam ao paroxismo os componentes “cronopatológicos” inerentes à paralisia frenética:
“Em primeiro lugar, é consenso atualmente que ela [a depressão] pode ser uma consequência de situações reiteradas de estresse, ou seja, de pressão temporal indesejada, mas também de altos índices de transformação e de insegurança. Em segundo,…ela representa uma reação psíquica identificada pela sensação de um tempo viscoso e paralisado, e de uma ausência de futuro ” (2019: 499-500).
É uma pena que Rosa não se expresse de modo mais preciso nessas passagens. Suas ideias a respeito da depressão ganham mais nitidez, entretanto, quando ele cita autores que falam de “uma interrupção na passagem entre passado e futuro”, em função da qual o “congelamento” ou “aprisionamento” do indivíduo em uma condição estacionária é vivenciado menos como um eterno presente do que como um “salto” ou “expulsão” do movimento temporal: “a sensação de cair para fora de um mundo no qual a incessante transformação de futuro em presente e de presente em passado é autoevidente” (Baier, apud Rosa, 2019: 500). Trata-se de uma vivência já discutida na fenomenologia da depressão, com o apoio imprescindível de escritoras geniais como Sylvia Plath.
Nesse entroncamento de sua análise, Rosa vai ao encontro de autores que, sem romantizarem os sofrimentos inerentes à condição depressiva, percebem nela um componente paradoxal de autoproteção . De modo inconsciente e patológico, a condição depressiva representaria uma reação autoprotetora frente a exigências sociais de atividade acelerada que se tornaram insuportáveis. Alain Ehrenberg, pioneiro na leitura sociológica da depressão como sintoma social, resumiu essa ideia ao assinalar que a depressão “não é apenas a miséria” da “pessoa desnorteada”, mas também o seu “corrimão” (apud Rosa, 2019: 501). Uma vez mais sem que seja preciso idealizar uma condição terrivelmente sofrida, poder-se-ia enxergar mesmo certo “realismo” envolvido na atitude do sujeito depressivo quando ele, consciente em algum nível de que todos os seus esforços no presente estão destinados à rápida obsolescência, desiste do engajamento em atividades cujos produtos futuros serão, já sabe ele de antemão, velozmente condenados ao passado pela sociedade que o circunda.
No mais, a sensação de “esvaziamento” existencial de si vivenciada em certos casos depressivos como que radicaliza, no plano da vivência da mais do que naquele da consciência teórica, o senso do caráter situacional da identidade: já que qualquer identidade que o “eu” assuma está condenada a ser efêmera e transitória, o indivíduo é tomado, no fim das contas, pela sensação desnorteante de que não possui qualquer “eu” que exista de fato. A radicalidade dessa vivência existencial possui um tanto de (melancólica) sagacidade sociológica.
Conclusão e cenas do próximo capítulo
Segundo Rosa, a política, tal como a identidade, também se torna situacional com a radicalização da aceleração social na modernidade tardia.
Escrevo sobre o tema no próximo post desta série.
Se sobrar tempo, é claro.
PS1 : Para continuar a discussão, sugiro esse episódio do Podcast Resenhemus em que eu e Diogo Corrêa discutimos, em ritmo de paralisia frenética causado pela pandemia, a sociologia do tempo e da aceleração.
PS2 : Veja também essa entrevista que eu, Diogo e João Lucas Tzminadis conduzimos, em inglês, com o próprio Hartmut Rosa, entrevista publicada na Revista Civitas.
Referência
ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade . São Paulo: Unesp, 2019.
Para citar este texto:
PETERS, Gabriel. Da jaula de ferro à roda do hamster (1): notas de uma aula sobre Hartmut Rosa, aceleração social e sofrimento psíquico. Blog do Labemus, 2023. [Publicado 14 de fevereiro de 2023]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2023/02/14/harmutrosaeaceleracaoswocial/
Que se ressalte que ao se falar de sentimentos, ansiedade, sofrimentos e assim por diante, fica claro que as ações sociais são produtos de afetos e afecções e não de uma Razão comunicativa, histórica ou do sujeito reflexivo. Está mais que na hora da teoria social se libertar do racionalismo etnocêntrico e pseudo-iluminista que a assombra e distorce seus resultados.
Como sempre brilhante, professor. Só senti falta que o tópico “é possível pular fora da roda do hamster?” tivesse, se não uma resposta, ao menos um esboço de possíveis caminhos. Mas não, a despeito de qualquer expectativa que o subtítulo inerente a este tópico desperte, ele só agudiza a situação.
Forte e grato abraço,
Arnaldo
O título está Harmut Rosa, ao invés de Hartmut. Apenas um lembrete para correção.
Caro Arnaldo, título corrigido! Muito obrigado pela leitura e pelo lembrete! Abraço!