Explicação e compreensão séries

Explicação e compreensão (Parte 4): O que é individualista no individualismo metodológico de Max Weber? , por Gabriel Peters

Da Série Verbetes

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Fonte: https://www.scientificamerican.com/article/the-stress-of-crowds/

Por Gabriel Peters

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Racionalidade, hábito e afeto: da teoria à pesquisa

Como vimos no post anterior desta série, ao conceituar as diferentes modalidades de ação social como “tipos ideais”, Weber quis enfatizar que tais modalidades, na sua forma “pura”, não são jamais encontráveis na realidade empírica. O argumento weberiano quanto ao caráter típico-ideal de seus conceitos sociológicos, inspirado em ideias epistemológicas afins àquelas de seus contemporâneos neokantianos, reconhece de saída, portanto, que ações sociais concretas entrelaçam aspectos pertinentes aos distintos tipos puros. Vejamos alguns exemplos de tais entrelaçamentos na obra do próprio Weber.    

Misturas do concreto (1): racionalidade instrumental, racionalidade valorativa e hábito

Como é amplamente sabido, no seu diagnóstico do que é peculiar à modernidade ocidental, Weber sustenta que esse tipo de sociedade abriga um grau historicamente inaudito de racionalização da conduta nos mais diversos setores da vida humana (Cohn, 2003: 15). Na esfera econômica, por exemplo, a forma especificamente moderna-ocidental de capitalismo (2004) envolve a disciplina racional do trabalho e a organização racional da produção com vistas ao lucro tomado como um fim em si próprio, a ser indefinidamente reinvestido na atividade produtiva (Para quê? Para gerar lucro. Para quê? Para reinvestir na produção. Para quê?…já captou a ideia). No âmbito jurídico-político, com o perdão do adjetivo composto (trata-se de um erudito alemão, ora pois!), Weber encontra a gigantesca ampliação da dominação racional-legal, calcada em normas impessoais e abstratas, bem como ancorada em um número crescente de funcionários especializados que atuam com base no conhecimento perito de tais normas (Weber, 2000: 147). Na esfera cultural, a racionalização se exprime na “autonomização das esferas de valor” cognitiva, ética e estética (Weber, 1982: 174): se outrora o verdadeiro, o justo e o belo eram identificados entre si graças ao abrigo comum de uma cosmologia religiosa, na modernidade eles se desengatam uns dos outros, tornando-se domínios ou – se me permitem a bourdieusianice – campos autônomos. Finalmente, ainda no plano ideacional, a racionalização se exprime em uma cosmologia secularizada que radicaliza o processo, já em curso no Ocidente desde o judaísmo antigo, de “desencantamento do mundo”: grossíssimo modo, em vez do “jardim encantado”, isto é, do universo povoado por espíritos e divindades intencionais que era vivenciado nas cosmologias de outrora, o ser humano compreende mais e mais o seu mundo circundante como uma ordem “desmagificada” e regulada por mecanismos impessoais. (O contraste é esquemático, pois, como sempre acontece com Weber, o argumento possui um sem-número de nuances e complicações.)[i]    

Como vimos em texto prévio, Weber distingue a conduta racional-com-relação-a-fins (zweckrational) da conduta racional-com-relação-a-valores (wertrational). Ambos os tipos de ação racional comparecem no texto clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo (2004). Por um lado, segundo aquele que é provavelmente o mais famoso de seus argumentos histórico-sociológicos, uma das fontes causais importantes do capitalismo ocidental-moderno consistiu em uma forma rigorosíssima de conduta racional-valorativa de vida, a saber, a ética da vocação do protestantismo ascético (mais sobre isso logo abaixo). Por outro lado, o próprio Weber reconheceu também que, se o compromisso religioso com valores últimos irrigou a racionalização do capitalismo ocidental nos seus primórdios lá pelo século de 1600, o sistema continuou vivo e forte, em larga medida, ao se impor a indivíduos que praticamente não têm escolha a não ser responder, de modo racional-com-relação-a-fins, às suas injunções. Nos termos do esquema analítico da sociologia compreensiva, a história do capitalismo moderno é marcada, portanto, pela expansão de escopo da ação racional-instrumental e pelo correlato encolhimento do alcance da ação racional-valorativa, outrora tão importante na emergência daquele sistema econômico. Como martelam as palavras devastadoras que Weber pôs no fecho da obra:  

puritano queria ser um profissional — nós devemos sê-lo. Pois a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu [com sua parte] para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem — não só dos economicamente ativos…[…] Na opinião de Baxter [Richard Baxter, pregador puritano do século XVII], o cuidado com os bens exteriores devia pesar sobre os ombros de seu santo apenas ‘qual leve manto de que se pudesse despir a qualquer momento’. Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço {na célebre tradução de Parsons: iron cage = jaula de ferro}. No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como nunca antes na história. Hoje seu espírito …safou-se dessa crosta. O capitalismo vitorioso,…desde quando se apóia em bases mecânicas, não precisa mais desse arrimo. Também a rósea galhardia de sua risonha herdeira, a Ilustração, parece definitivamente fadada a empalidecer, e a ideia do ‘dever profissional’ ronda nossa vida como um fantasma das crenças religiosas de outrora” (Weber, 2004: 165).

Lição central na sociologia compreensiva é a ideia de que condutas exteriormente similares podem estar fundadas em orientações subjetivas de sentido bastante distintas, o que é ilustrado pela diferença, acima aludida por Weber, entre a conduta profissional como resposta a um chamado religioso (ação racional-com-relação-a-valores) e a conduta profissional como adaptação autointeressada a exigências econômicas implacáveis (ação racional-com-relação-a-fins). Mas há mais. Em um erudito artigo sobre o tema do “hábito” na sociologia clássica, Charles Camic (1996) aduz o seguinte lembrete: mesmo ao retratar a expansão da ação racional-instrumental nos mais diversos âmbitos da existência humana na modernidade ocidental, Weber reconheceu que ações que continuam a ser racionais-com-relação-a-fins, para todos os propósitos práticos, não raro se tornam habituais. Pensemos nas técnicas contábeis empregadas diariamente pela contadora experiente, nos preenchimentos cotidianos dos mesmos formulários pelo funcionário de uma repartição pública ou na preparação dos equipamentos de laboratório pela cientista experimental, para ficar apenas em um punhado de ilustrações. Em uma discussão sobre a burocracia, por exemplo, Weber afirma que ela se ancora em “treinamento especializado, uma especialização funcional do trabalho e uma atitude fixada para o domínio habitual e virtuoso de funções únicas, e, não obstante, metodicamente integradas” (Weber, 1982: 265; grifo meu). A transmutação da ação racional-valorativa em ação racional-instrumental, assim como a tendência à habitualização da ação racional-instrumental, são fenômenos que só alguém anormalmente sensível às misturas do “socialmente real”, como era o caso do velho Weber, poderia captar. 

E quanto aos afetos? Já te digo.

Misturas do concreto (2): racionalidade e afeto

A importância que Weber confere aos afetos como motores subjetivos da conduta humana pode ser ilustrada por um processo descrito, uma vez mais, em A ética protestante e o espírito do capitalismo (2004): como as experiências de “solidão interior” (Ibid.: 95) e angústia diante da incerteza quanto à própria salvação levaram fiéis protestantes a uma práxis religiosamente motivada que, por seu turno, influenciou decisivamente a racionalização da atividade econômica na aurora do capitalismo ocidental moderno. Resumamos, de modo criminosamente esquemático, um raciocínio bem conhecido acerca do calvinismo em particular. A tese calvinista da “predestinação absoluta” determinava que a decisão quanto aos que seriam salvos, bem como quanto àqueles que estavam destinados à danação eterna, já havia sido tomada por Deus no momento da criação (Ibid.: 91-92). Como os propósitos de Deus seriam insondáveis, ao passo que seus juízos seriam perfeitos por definição, nenhum fiel teria como saber, de antemão, qual seria a aventurança (boa ou ruim) de sua alma: “o sentido de nosso destino individual”, para o calvinista, “acha-se envolto em mistérios obscuros que é impossível e arrogante sondar” (Ibid.: 94). Conscientes estavam todos os fiéis, entretanto, de que não havia absolutamente nada que pudessem fazer para anular a decisão divina já tomada no momento da criação, dado que isto seria pressupor que Deus é capaz de errar e ter suas decisões alteradas por correção humana: “Uma vez estabelecido que seus decretos são imutáveis, a graça de Deus é tão imperdível por aqueles a quem foi concedida como inacessível àqueles a quem foi recusada” (Ibid.: 95).

O poeta inglês John Milton chegou a afirmar que preferiria ir para o inferno do que respeitar um Deus como esse. Entre os indivíduos que abraçavam esta crença, no entanto, a consequência foi um sentimento de extraordinária “solidão interior”, já que ninguém – pregador, fiel, igreja – poderia interceder em seu favor para influenciar o juízo divino quanto à sua aventurança eterna. Se o próprio Calvino estava um bocado tranquilo acerca de sua salvação (Ibid.: 100), o mesmo não podia ser dito dos mais comuns entre os fiéis calvinistas, que se viram compreensivelmente mergulhados em uma tremenda angústia: “Serei eu um dos eleitos? E como eu vou poder ter certeza dessa eleição?” (Ibid.). Então, para aplacar as dúvidas ansiosas que os fiéis frequentemente lhes traziam, diversos pastores calvinistas passaram a distribuir duas formas fundamentais de aconselhamento. Primeira: o indivíduo tinha a obrigação de se considerar entre os eleitos, repudiando qualquer dúvida como tentação demoníaca. Segunda: a melhor maneira de mitigar dúvidas angustiantes quanto à salvação, ganhando assim confiança na própria graça, seria mediante a dedicação intensa ao trabalho profissional intramundano (Ibid.: 102). Na medida em que o tempo de trabalho era visto como dedicado à glória de Deus, os lucros obtidos na ação empresarial não deveriam servir de meios à prossecução de prazeres pessoais, mas tinham de ser reinvestidos naquela empreitada produtiva pela qual o indivíduo se experimentava como ferramenta divina no mundo. Cumprida essa condição, as riquezas obtidas como fruto do trabalho disciplinado podiam ser vistas como sinais comprobatórios de que o sujeito se encontrava entre os eleitos.

O que pretendo destacar, com este breve recurso a um exemplo de explicação histórica na obra de Weber, é o fato de que o autor não toma “desvios” e “perturbações” irracionais da conduta racional como ninharias residuais na vida social concreta. O caminho que vai da doutrina calvinista da predestinação à disciplina ascética na atividade econômica não é o de uma consequência lógica. Entre as injunções éticas da doutrina, de um lado, e a conduta prática dos fiéis, de outro, intervieram o que Weber chama de “motivações”, “prêmios” ou “estímulos psicológicos”[ii] irracionais:

não nos importa aquilo que era ensinado teórica e oficialmente nos compêndios…éticos da época…mas antes…rastrear [aqueles] estímulos psicológicos [criados pela fé religiosa e pela prática de um viver religioso] que davam a direção da conduta de vida e mantinham o indivíduo ligado nela” [Ibid.: 89; grifo do autor]

A intensa pressão emocional pela busca de sinais comprobatórios da própria salvação, uma consequência psicológica (mas não lógica) da doutrina da predestinação entre fiéis calvinistas, teve como consequência prática, por seu turno, um “ascetismo intramundano” que servia à dissipação das dúvidas angustiosas quanto ao destino póstumo. Cá está um exemplo magno de que Weber estava longe de subestimar o papel das emoções e dos afetos na vida humana em sociedade. 

O que é individualista no individualismo metodológico de Weber?

Weber não chegou a utilizar a expressão “individualismo metodológico” em seus escritos, mas se achegou muitíssimo a ela em uma famosa carta endereçada a Robert Liefmann:

Se agora me tornei um sociólogo (de acordo com os documentos de minha posse!), foi, em larga medida, porque quero pôr um fim a todo esse negócio…de trabalhar com conceitos coletivos. Em outras palavras: a sociologia também só pode ser levada a efeito se tomar, como ponto de partida, as ações de um ou mais (poucos ou muitos) indivíduos, isto é, com um método estritamente ‘individualista’” (Weber, 2012: 410).

Por se tratar de uma carta, o grande mestre permitiu-se uma formulação que não correspondia exatamente às diretrizes metodológicas da sua sociologia. Seus alvos primordiais não eram quaisquer conceitos coletivos, mas sobretudo aqueles que apreendiam as coletividades humanas à maneira de criaturas autônomas dotadas de vontade e consciência. Em mais de uma ocasião, Weber selecionou a ideia de “espírito de um povo” (Volkgeist), atrelada pela “escola histórica-jurídica alemã” (Weber, 2001a: 7) a uma explicação de fenômenos sociais como “emanações” da coletividade, para exemplificar esse raciocínio analítico espúrio. Seja como for, o que é ponto pacífico, entre weberólogos de ontem e hoje, quanto ao individualismo metodológico de Weber? Em primeiro lugar, já vimos em post que passou, o próprio projeto da sociologia compreensiva toma o agente individual como a unidade analítica básica da investigação sociológica, já que ele é a única entidade apta a emprestar significado(s) subjetivo(s) à sua própria conduta e àquelas de outros agentes no mundo social (Cohn, 2003; Sell, 2013b). Como já indica a espinafrada na noção de “espírito de um povo” encampada por Knies e outros, Weber também se opunha veementemente à consideração de coletividades inteiras como dotadas de atributos próprios a agentes concretos, tais quais intencionalidade e personalidade.

Embora severo crítico da reificação ou hipóstase dos coletivos, Weber, ao mesmo tempo, jamais abraçou qualquer “atomismo” metodológico conforme o qual os atores individuais atuariam em vácuos sócio-históricos. Suas críticas ao reducionismo psicologista carregavam consigo, ao contrário, o reconhecimento de que contextos socioculturais diversificados engendram distintas formas de subjetividade ou, nos seus próprios termos, distintos “tipos de homem” (Weber, 2004: 149). Ancorar a explicação sociológica na ação social também não implicava, como mostrou Stephen Kalberg (1994: 203), ignorar a realidade de padrões societais, mas justamente apreendê-los como formas ideal-típicas de conduta dotada de sentido: a atitude espiritual do místico hindu, a ação empresarial do protestante ascético, o desempenho profissional do funcionário da burocracia etc. Para leitores como Raymond Boudon (1995: 29), ao abraçar a tese de que quaisquer fenômenos sociais que aparentem existir para além dos indivíduos não passam, em última análise, de uma combinação de condutas individuais, Weber teria proposto o que kantianos chamam de “ideal regulativo”: um propósito no fim das contas inconquistável, mas que valeria a pena perseguir tanto quanto possível. Com efeito, contanto que tal qualificação individualista fosse mantida em mente, o sociólogo alemão admitia a conveniência metodológica do recurso a conceitos relativos a coletivos, como “mercado” ou “estado”.

Uma noção de referência coletiva, diz Weber, poderia ser apropriadamente mobilizada, em primeiro lugar, como “um conceito relacional para captar…provisoriamente uma diversidade…de fenômenos individuais que ainda não obtiveram devida elaboração lógica” (2001a: 7). Mas isso não é tudo. Weber também sublinha que conceitos coletivos como “estado”, “nação” ou “corporação” são sociologicamente relevantes porque os próprios agentes, na vida social, orientam suas condutas de acordo com eles. O autor descobriu por própria conta, em outras palavras, o insight guardado no coração do teorema de Thomas: mesmo que aquelas entidades não existam como realidades autônomas e independentes de ações individuais, os agentes no mundo social creem na sua existência e guiam suas condutas segundo tais crenças. Se a crença na realidade de tal ou qual estado nacional, por exemplo, é um fator que coordena as condutas de uma multiplicidade de atores individuais, aquele estado torna-se “real” como parte dos motores subjetivos das ações que sustentam, por seu turno, a vida societária. Afirma o próprio Weber:   

um estado moderno existe em grande medida dessa maneira – como complexo de específicas ações conjuntas de pessoas – porque determinadas pessoas orientam suas ações pela ideia de que existe ou deve existir dessa forma, isto é, de que estão em vigor regulamentações com aquele caráter juridicamente orientado” (2000: 9). 

Finalmente, o princípio de que os fenômenos societários são explicáveis como combinações de condutas intencionais não levou Weber a superestimar o papel das intenções humanas no curso da história. Ao contrário, ele percebeu que a composição e o entrechoque de ações intencionais diversas gera, com frequência, consequências não intencionadas por quaisquer dos agentes envolvidos. Voltemos à Ética: a obra narra como praticantes da “ética da vocação” do “protestantismo ascético” contribuíram, de modo não intencional, à parturição do “espírito do capitalismo”. A atividade econômica disciplinada dos protestantes ascéticos (i.e., metodistas, pietistas, batistas e calvinistas), engendrando um lucro que não era gasto em prazeres pessoais, mas devotamente reinvestido na produção, era certamente intencional. As intenções que moviam aquela atividade não eram, no entanto, a construção da poderosa engrenagem da racionalidade instrumental no Ocidente moderno, mas o apaziguamento de incertezas angustiosas quanto à própria salvação, somado à procura de sinais dessa salvação na riqueza brotada do trabalho disciplinado.

O papel central que Weber confere aos efeitos não intencionais das ações intencionais no mundo social avulta de modo nítido nos seus textos histórico-sociológicos substantivos (p.ex., a noção de consequências paradoxais está na base da ideia de “ética da responsabilidade”, por oposição à “ética da convicção” [Weber, 1982: 140; 144]), muito mais do que em seus ensaios analíticos mais gerais, como a discussão acerca dos tipos de ação que abre Economia e Sociedade (2000). Algo análogo pode ser dito quanto à visão weberiana sobre os graus em que os contextos sociais coagem as condutas dos indivíduos neles imersos. Em primeiro lugar, como autor ciente das limitações de qualquer esquema teórico a priori em face da variedade do “socialmente real”, Weber lembraria que os níveis de liberdade de iniciativa dos indivíduos frente aos seus cenários sociais de ação são imensamente variáveis. A questão do grau de liberdade individual perante influências societárias só poderia ser, nesse sentido, respondida empiricamente. Contudo, na medida em que é comum associar o individualismo metodológico a um acento antideterminista sobre a autonomia dos agentes individuais, cabe lembrar o quão Weber era sensível à força de estruturas sociais. Justamente no tocante ao cerne de toda a sua empreitada intelectual, isto é, o diagnóstico histórico-sociológico da singularidade da civilização ocidental moderna, o autor alemão enxergava uma hipertrofia crescente de forças estruturais, como o capitalismo e a burocracia, que impeliam os indivíduos a uma conduta racional-instrumental. “Crítico resignado” (Cohn, 2003) da modernidade ocidental, Weber retratou os filhos dessa modernidade como agentes cuja liberdade é crescentemente sufocada pela “prisão de ferro” (na tradução antiga [1967: 131]) ou “rija crosta de aço” (na tradução nova [2004: 165]) de uma racionalização instrumental que marcha impiedosamente nas mais diversas esferas de tal tipo de sociedade.

Em suma: se Weber opôs uma sociologia “individualista quanto ao método” às abordagens que tomavam coletividades à maneira de agentes com “espírito” e personalidade próprios, seu individualismo metodológico não pressupunha que os agentes individuais operam em qualquer vácuo sócio-histórico, mas, ao contrário, reconhecia que as subjetividades são moldadas por seus cenários sociais (Weber, 2001a: 136). O autor também não tomava sua perspectiva como fundada em uma crença a priori nos maiores poderes de ação dos indivíduos frente aos contextos sócio-históricos em que se encontram, tanto é que reconhecia a possibilidade e, no caso da modernidade ocidental, a efetividade de uma perda de liberdade do indivíduo frente às prisões de ferro ou de aço da racionalização instrumental implacável. Por fim, o sociólogo alemão notava que, embora a vida social seja mantida em movimento histórico por uma combinação complexa de condutas intencionais, os resultados de tal combinação são, com muita frequência, consequências não intencionadas por quaisquer dos agentes envolvidos.

Diante de todas essas ressalvas, alguém poderia dirigir a Weber e a outros partidários do individualismo metodológico uma questão de Steven Lukes (1977: 176): vale a pena insistir em falar em individualismo metodológico? No tocante à obra do próprio Weber, será que as prescrições individualistas dos seus textos metodológicos são mesmo coerentes com o que ele afirma sobre ações individuais e estruturas sociais nos seus escritos histórico-sociológicos substantivos? Gabriel Cohn (2003), José Guilherme Merquior (1980) e Fritz Ringer (1997) acham que sim. Jeffrey Alexander (1983), Luís de Gusmão (2000) e Frédéric Vandenberghe (2009) acham que não.

Eu só sei que nada sei.

Notas

[i] Quem realmente quiser estudar o assunto em detalhe fará melhor em ler os competentíssimos livros de Pierucci (2003) e Sell (2013) listados logo abaixo na bibliografia. Um exemplar de crítica historiográfica bem fundamentada a teses weberianas, concentrada neste caso na relação entre a profecia hebraica e o cristianismo paulino, é o livro de Freitas (2010). Seja como for, já que estamos você e eu por aqui, vamos lá: o desencantamento do mundo é moderno? Se tomado como uma rejeição da magia qua ferramenta de salvação, o desencantamento do mundo não principiou com a modernidade, mas já vinha avançando há séculos (literalmente) no Ocidente pré-moderno, ao longo de todo o arco temporal que vai do judaísmo antigo até chegar à versão radicalmente “desmagificada” de religião que foi o protestantismo ascético na aurora da modernidade. Conforme a análise detalhada de Pierucci (2013: 194), Weber privilegiou a noção de desencantamento do mundo para designar sobretudo esse estendidíssimo processo desmagificador, cujos pontos de partida (os profetas israelitas) e de chegada (os protestantes ascéticos) ainda permaneceram nos marcos da religião:  O desencantamento do mundo a que Weber se refere n’A ética protestante é…o desencantamento religioso do mundo e não o desencantamento científico do mundo. Este último…está longe de haver chegado à sua conclusão, posto que Weber o pensa atrelado…a um progresso que não tem fim, em protensão para o infinito (Pierucci, 2003: 210-211). E o que fará a ciência empírica moderna com o legado histórico do desencantamento religioso? Diz Pierucci que ela irá “determinar-lhe novos desdobramentos mas também novas direções ao reduzir o mundo, já desmagificado sob o modo da moralização religiosa, a um mero mecanismo causal sem totalidade possível e sem mais nenhum sentido objetivo” (Ibid.: 2013: 199-200). Com efeito, se as variantes da religiosidade judaico-cristã reprimiram a magia enquanto técnica de salvação, elas só fizeram reforçar o papel das metafísicas religiosas na representação e na vivência do mundo como uma ordem dotada de sentido, precisamente aquilo que o desencantamento científico do mundo passa a dissolver. O ganho em penetração cognitiva e domínio técnico dos processos naturais propiciado pelo avanço da ciência é imenso, admite Weber de bom grado. No entanto, pelo menos na conversa que trava com (o espírito de) Tolstoi em “A ciência como vocação” (1982: 154-187), ele nota que aquelas vantagens são pagas na moeda de uma “perda de sentido” crescentemente experimentada pelos indivíduos modernos, obrigados a escolher entre valores eternamente inconciliáveis entre si, assim como frequentemente atacados por uma dificuldade angustiosa de compreenderem a si próprios como dotados de um papel especialmente significativo no cosmos, ao invés de criaturas a cujo destino o universo seria indiferente – eis o lado “existencialista” avant la lettre do velho Weber (Aron, 2000: 448).      

[ii] A noção de “estímulo” em “estímulos psicológicos” corresponde, na tradução de José Marcos Mariani revisada por Antônio Flávio Pierucci, ao termo “Antrieb”, que Parsons traduziu por “sanção”, Kalberg por “motivação” e Bendix por “impulso” (Cf. Cavalletto [2007] para uma análise minuciosíssima). À luz do que Weber afirma sobre “psicologia” no capítulo de abertura de Economia e Sociedade, seu recurso ao qualificativo “psicológicos” me parece mais um indício de que ele pretendia destacar o caráter especificamente “irracional” da mediação causal entre as ideias calvinistas, de um lado, e as práticas a que elas conduziam, de outro. Isto porque, após defender a utilidade heurística de principiar a análise de ações concretas pelo pressuposto de que elas seriam racionais, aquele capítulo sustenta que uma psicologia de cunho interpretativo (“verstehende”, com um aceno ao nosso querido Karl Jaspers) serve à sociologia como socorro na compreensão dos “desvios” e “perturbações” irracionais da ação:… em termos gerais, as relações que a Sociologia tem com a Psicologia não são mais íntimas do que as que tem com todas as outras ciências. O erro está no conceito do ‘psíquico’: tudo o que não é ‘físico’ seria ‘psíquico’. Mas…não é coisa ‘psíquica’ o sentido de um exemplo aritmético que alguém tenha em mente. A consideração racional de uma pessoa sobre se determinada ação é proveitosa ou não para determinados interesses…, em vista das consequências a serem esperadas, e a decisão resultante são coisas cuja compreensão nem por um fio é facilitada por considerações psicológicas. Mas é precisamente em tais pressupostos racionais que a Sociologia (incluída a Economia) fundamenta a maioria de suas ‘leis’. Na explicação sociológica dos aspectos irracionais das ações, ao contrário, a Psicologia Compreensiva pode prestar, sem dúvida, serviços de importância decisiva” (Weber, 2000: 12; grifos do autor).    

Referências

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COHN, G. “Introdução”. In: Weber: Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 2003. 

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FREITAS, R.S. Judaísmo, racionalismo e a teologia cristã da superação: um diálogo com Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2010. 

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