teoria social em pílulas

Da modernidade líquida à modernidade tóxica: notas de uma aulinha sobre Bauman, por Gabriel Peters

Vivemos ainda na modernidade líquida? Zygmunt Bauman percebeu a tentação de um retorno agressivo à "comunidade" como resposta às inquietudes existenciais da sociedade líquido-moderna, mas talvez tenha subestimado a força tóxica desse retorno.

Por Gabriel Peters

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Modernidade ainda que tardia

 Diversas das publicações de Zygmunt Bauman nos anos de 1990 designavam as configurações sociais contemporâneas, sobretudo tal qual se apresentavam no espaço do Atlântico Norte ou da “Euroamérica”, como “pós-modernas” (1993; 1998a; 2011). Em diálogo com autores como Anthony Giddens e Ulrich Beck, o pensador polonês já se engajava em esforços de “sociologização” de temas filosóficos tornados populares por pensadores ditos “pós-modernos”, à la Lyotard ou Derrida. Tratava-se, em outras palavras, de mostrar os enraizamentos de tais problematizações filosóficas em transformações sócio-históricas cujas repercussões eram intensamente sentidas não somente por pensadores profissionais, mas também pelos membros leigos das sociedades contemporâneas. Do colapso das “grandes narrativas” teleológicas sobre o progresso até a consciência crítica da relatividade dos critérios epistêmicos de “verdade”, traços associados ao “pós-modernismo” como estilo de pensamento encontravam seus correlatos experienciais nas vidas dos habitantes da “pós-modernidade” como um arranjo sócio-histórico cuja fisionomia viria se formando desde a década de 70 do século XX.  

 Longe de se restringir a um mapeamento das bases sócio-históricas e existenciais de motifs do pensamento pós-moderno, Bauman não deixava tais motifs intocados. Ele os submetia a uma análise crítica, calcada no pressuposto de que uma sociologia da pós-modernidade (como condição histórica) não precisava ser uma sociologia “pós-moderna” (nos seus contornos epistemológicos e ético-políticos):

em vez de buscar uma nova forma de sociologia pós-moderna (uma sociologia afinada no seu estilo, como um ‘gênero intelectual’, ao clima cultural da pós-modernidade), sociólogos deveriam se engajar no desenvolvimento de uma sociologia da pós-modernidade” (Bauman, 1988: 812).

Eis a atitude crítica que levaria o sociólogo polonês, mais tarde, a preterir o conceito de “pós-modernidade” em prol daquele de modernidade líquida (2001) como ferramenta-chave de caracterização do tipo de sociedade que emergiu, nas últimas décadas do século XX, na esteira de transformações como as reestruturações neoliberais do capitalismo, o desmantelamento do estado de bem-estar social e a diversificação de esquemas de relacionamento erótico-afetivo e vida familiar. Como o conceito beckiano de “segunda modernidade” (Beck, 1999) ou a noção giddensiana de “modernidade tardia”, a ideia de “modernidade líquida” captura um misto de continuidades e descontinuidades sócio-históricas. Contra intérpretes que só viam “mais do mesmo” (como dizia o filósofo Renato Russo), tais qualificativos apostos à “modernidade” sinalizavam tratar-se, sim, de uma configuração nova, em uma série de aspectos, em relação ao feitio “clássico” do arranjo moderno analisado por autores como Marx, Durkheim, Simmel e Weber. As novidades se evidenciavam, por exemplo, na emergência de limites ecológicos não antevistos ao desenvolvimento tecnoindustrial ou, ainda, na radicalização de processos de globalização que tornaram analiticamente insustentável o “nacionalismo metodológico” (Beck, 1999: 48-49) que tendia a equiparar, na fase clássica da sociologia, sociedades a estados nacionais. Por outro lado, contra postulações de que a modernidade teria sido simplesmente suplantada por uma “pós-modernidade”, figuras como Beck, Giddens e, finalmente, Bauman apontavam para um núcleo incontornável de continuidade em suas estruturas institucionais e tendências de desenvolvimento (p.ex., a aceleração do desenvolvimento tecnológico e a expansão do capitalismo, tanto na sua extensão geográfica quanto na sua penetração na experiência cotidiana), núcleo que proscreveria a tese de uma época “pós-moderna”. 

O livro sobre a “modernidade líquida” ([1999] 2001) deu início à fase baumaniana da “sociologia de liquidação” (no dizer do sociólogo pernambucano Luciano Oliveira), fase em que a marca editorial da liquidez (dos tempos, da vida, do amor, do medo etc.) foi garantia de ótimas vendas de livros ao redor do mundo. É necessário temperar, na minha opinião(zinha), o preconceito que a transformação de Bauman em autor best-seller gerou em parte significativa da comunidade acadêmica de cientistas sociais. Por um lado, embora as obras dessa última fase tenham adquirido, de fato, certa superficialidade se comparadas aos seus escritos anteriores, Modernidade líquida é, como vários dos textos baumanianos prévios, de excelente qualidade – e, por isso, nosso foco principal no texto-aula que se segue.   

O futuro não é mais o que era antigamente

Referindo-se à “teoria crítica” no sentido lato – o qual inclui os frankfurtianos, mas não se restringe a eles -, o autor polonês sustenta que a tarefa teórico-crítica primeira, no contexto da modernidade sólida, consistia em defender a individualidade frente às mega-estruturas institucionais que a constrangiam a mover-se pelos seus caminhos pré-definidos. Transpostas à realidade histórica, as promessas de libertação que outrora ofereciam o estofo ideológico para várias das instituições centrais à modernidade sólida, como o capitalismo industrial e o estado-nação, terminaram revelando sua faceta mais sombria como maximizações na eficácia de controles sociais da conduta e da subjetividade. Bauman surpreende esse mesmo tema no arco de perspectivas que vão da crítica weberiana à “rija crosta de aço” (outrora “gaiola de ferro”) até o esquadrinho a que Foucault submeteu a “sociedade disciplinar”, passando pelas denúncias frankfurtianas do “mundo administrado” (Adorno/Horkheimer) e do “homem unidimensional” (Marcuse): 

Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da ‘teoria crítica’ era impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade compulsória, imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no horizonte – como destino último, como uma bomba nunca inteiramente desarmada ou um fantasma nunca inteiramente exorcizado. (…) Entre os principais ícones dessa modernidade estavam a fábrica fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e predeterminados,…excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual; a burocracia, afim…ao modelo ideal de Max Weber, em que as identidades e laços sociais eram pendurados no cabide da porta da entrada junto com os chapéus, guarda-chuvas e capotes, de tal forma que somente o comando e os estatutos poderiam dirigir, incontestados, as ações dos de dentro enquanto estivessem dentro; o panóptico com suas torres de controle e com os internos que nunca podiam contar com os eventuais lapsos de vigilância dos supervisores; o Grande Irmão, que nunca cochila, sempre atento, rápido e expedito em premiar os fiéis e punir os infiéis; e – finalmente – o Konzlager (mais tarde acompanhado no contrapanteão dos demônios modernos pelo Gulag), lugar onde os limites da maleabilidade humana eram testados em laboratório e onde aqueles que suposta ou realmente não eram maleáveis o suficiente eram condenados a morrer de exaustão ou mandados às câmaras de gás ou aos crematórios” (Ibid.: 33-34).

Bauman pinta a modernidade líquida, em contraste, como uma configuração social inundada pela consciência de que eram infundadas as esperanças de uma ordem social perfeita como telos da história. Ainda mais desconcertante é a descoberta, revelada por tenebrosas lições da experiência histórica, de que algumas empreitadas de melhoramento social da condição humana que animaram a fase sólida da modernidade podiam e podem produzir efeitos perversos, efeitos que contradizem as próprias aspirações emancipatórias que haviam conduzido aquelas empreitadas. Fenômenos como o holocausto já evidenciaram, mostrou Bauman em um de seus melhores livros (1998), terríveis potenciais inerentes aos arranjos institucionais da modernidade sólida que não foram antecipados por seus defensores e nem mesmo por muitos dos seus críticos mais severos. Mais recentemente, catástrofes e ameaças ecológicas tornaram patente que o desenvolvimento tecnoindustrial, outrora tão celebrado como fonte de melhorias nas condições materiais da vida humana, pode inviabilizar, ele próprio, a continuidade da espécie humana na Terra. Bauman dá outros tantos exemplos dessa macrodinâmica em que a modernidade se depara com tragédias e riscos que não a confrontam “a partir de fora”, por assim dizer, mas são engendrados por suas próprias forças e tendências constitutivas.

 A configuração social que adentrou o século XXI é moderna, como moderna havia sido a que adentrara o século XX, mas não do mesmo modo. Em comum, Bauman localiza nelas um núcleo de dinamismo histórico que contrasta ambos os tipos societais com quaisquer formas pregressas de convivência social humana: a modernização como tendência irrefreada de desenvolvimento, manifesta na “destruição criativa” (Schumpeter) mediante a qual arranjos institucionais são feitos, desfeitos e refeitos com base em expectativas e anseios nunca plenamente saciados de melhoramento (tecnológico, econômico, jurídico, político, artístico e tutti quanti). Ao desaguar na sua fase líquida nas décadas finais do século XX, a modernidade apresenta, entretanto, duas diferenças importantes em relação à sua etapa prévia. A primeira delas, ventilada anteriormente na famosa menção de Lyotard à crise das “metanarrativas” ([1979] 2009), diz respeito ao colapso das expectativas e crenças quanto ao caráter teleológico da mudança histórica. Na autointerpretação que impulsionava a modernidade em sua fase clássica, o movimento histórico em função do qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”, como disse uma dupla dinâmica, não era visto como uma condição a se prolongar ad infinitum. Ao contrário, o desmanche dos sólidos pré-modernos era tido por pré-requisito ao estabelecimento de uma nova solidez genuinamente moderna: um telos no qual tanto o conhecimento do social quanto a vida social atingiriam a estabilidade garantida pelo cume do progresso (Ibid.: 38)[i].

A sociedade individualizada          

A par e passo com a dissolução da confiança em algum telos de perfeição ou, ao menos, ápice moral, a segunda grande transformação que anuncia a passagem à modernidade líquida consiste em uma forma específica e radicalizada de individualização. Na sua fase sólida, aquelas expectativas dinâmicas de melhoramento contínuo se atrelavam a uma concepção do estado, tomado por representativo das vontades da sociedade inteira, como grande planejador e administrador racional dos deveres e tarefas indispensáveis à modernização. Devido a uma multiplicidade de fatores convergentes no fin-de-siècle, os quais vão do desmantelamento das realizações da social-democracia pelas revoluções neoliberais até o desencanto antiutópico com o fracasso do chamado “socialismo real”, o compromisso com as tarefas de modernização ininterrupta (adaptação, aperfeiçoamento, superação, inovação etc.) foi, em medida muito significativa, retirado da sociedade in toto e transferido para os indivíduos. Eis a fonte da afirmação de Beck, subscrita por Bauman (2001: 44), conforme a qual a “segunda modernidade” exige dos atores individuais que encontrem soluções biográficas para contradições e problemas sistêmicos. Assim, por exemplo, embora o pleno emprego seja uma impossibilidade estrutural, reclamando alguma espécie de enfrentamento sistêmico (tais como políticas de renda básica que desvinculem emprego e renda), o ambiente cultural continua amplamente estruturado pela crença de que cada indivíduo é o único responsável por encontrar, manter e, quando necessário, reencontrar, mediante mérito e iniciativa próprios, um lugar no mercado de trabalho.

Segundo Bauman (1999a), o paradoxo intrínseco à modernidade líquida consiste no fato de que a liberdade de iniciativa ampliada com que se deparam os agentes individuais no âmbito biográfico não encontra condições de transposição para projetos coletivos de transformação estrutural da própria ordem societária. As deliberações reflexivas e as práticas inventivas pelas quais os indivíduos procuram trilhar seu caminho no mundo líquido-moderno, tais como o investimento em suas competências educacionais ou nas energias corpóreas necessárias às suas ocupadíssimas labutas, não se traduziriam em quaisquer programas abrangentes de mudança sistêmica das circunstâncias econômicas e políticas em que eles estão embebidos. Em uma “sociedade individualizada” (Bauman, 2009), os outros não desaparecem, decerto, mas emergem na consciência individual como diferentes exemplares de como cada um deve – ou não – perseguir sua própria “política da vida” (Ibid.: 40). Na modernidade líquida, os agentes individuais não são, nesse sentido, somente investidos da oportunidade de autodeterminação biográfica, mas obrigados a tanto em circunstâncias marcadas não apenas pela incerteza como também pela desigualdade dos recursos econômicos (p.ex., dinheiro), culturais (p.ex., competências educacionais) e sociais (p.ex., relações de amizade e influência) que permitiriam transformar tal individualidade de direito, irrealisticamente esperada de todos, em individualidade de facto:             

Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada. A autocontenção e a autossuficiência do indivíduo podem ser outra ilusão…(…) E, no entanto, se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para encontrar trabalho…; se não estão seguros sobre as perspectivas de carreira…é porque não são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar…as artes da autoexpressão e da impressão que causam. Isto é…o que lhes é dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade. (…) Riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados.” (Ibid.: 44).

Em busca da política

 A “liquidificação” das relações sociais na modernidade tardia amplia forçosamente, portanto, o espaço deixado à iniciativa e à responsabilidade individuais nos microdomínios da experiência biográfica: da formação educacional ao itinerário profissional, do cuidado com o próprio corpo via alimentação e exercícios físicos até as relações erótico-afetivas. Retratando à sua maneira um paradoxo notado por outros tantos observadores, Bauman sublinha, como vimos, que essa abertura (compulsória) da biografia à iniciativa pessoal coexiste com um fechamento de horizontes alternativos no domínio dos sistemas econômico e político. Enquanto as vidas individuais são representadas como esferas abertas a uma multiplicidade de transformações, o ambiente institucional que as circunda ganha ares de inevitabilidade. Levada ao paroxismo ao ser identificada por Fukuyama ao “fim da história” (1992), a tendência a se tomar a conjugação sistêmica entre economia de mercado e democracia liberal como caminho institucional incontornável ajudou a alimentar, segundo Bauman, um esvaziamento da política como espaço público em que dilemas individuais poderiam ganhar uma tradução coletiva. Se esse senso de um fechamento da história ganhava uma roupagem triunfalista e apologética na versão que Fukuyama apresentava nos anos de 1990, não demorou para que ele assumisse a vestimenta bem mais sinistra do que Mark Fisher chamou de “realismo capitalista” (2009): mesmo quando a operação continuada da engrenagem capitalista ameaça as próprias condições da “sobrevivência humana organizada na Terra” (na expressão de Chomsky), alternativas sistêmicas se tornaram tão inimagináveis que o colapso daquelas condições (o “fim do mundo”) parece mais provável do que um desenlace alternativo (o “fim do capitalismo”, pelo menos – creio eu, no que Mark Fisher possivelmente consideraria reformismo pelego – na versão socialmente irresponsável e ecologicamente insustentável em que o capitalismo continua a existir). 

Não se trata de dizer, lembra o autor polonês, que os indivíduos não percebem quaisquer similaridades nas suas aflições biográficas. Ao contrário, um olhar sobre matérias jornalísticas de “aconselhamento pessoal e profissional” ou sobre best-sellers de autoajuda é suficiente para trazer a lume quão semelhantes são os problemas enfrentados por indivíduos líquido-modernos: como lidar com a escassez de tempo frente a tantas demandas profissionais e familiares, como administrar a energia física e psíquica necessária para um manejo tão saudável quanto possível de tais jornadas, como recuperar o ânimo diante de sentimentos cotidianos de desmotivação etc. Não obstante, o próprio elenco desses problemas, como também a linguagem psicologizante na qual os apresentei, dão testemunho de que os modos dominantes de tematizá-los e enfrentá-los não consistem na formação de coletivos voltados a enfrentar suas fontes sistêmicas no domínio político (p.ex., mediante legislação protetiva do tempo de lazer dos trabalhadores). Eles importam, ao contrário, em um reforço da mensagem individualizante que, quando muito, mostra para indivíduos solitários e autorresponsáveis como outros indivíduos solitários e autorresponsáveis se desincumbem eficazmente de suas tarefas:

 “Talvez possa-se…aprender da experiência de outras pessoas a como sobreviver à nova rodada de “redução de tamanho” (downsizing);…como pôr a gordura e outros “corpos estranhos” indesejáveis “para fora do sistema”; como livrar-se de um vício que não dá mais prazer ou de parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o que aprendemos antes de mais nada da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver em nossa solidão irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que devem ser enfrentados solitariamente” (Ibid.: 46).

Modernidade tardia demais: a vingança do comunitarismo e a (in)atualidade de Bauman

Na sua releitura da categoria freudiana do “mal-estar na civilização” (1998a), historicizada como o mal-estar na “modernidade sólida”, a primeira fase da modernidade, ao pesar as mãos institucionais em favor da ordem e da segurança, gerava um anseio dorido por maiores doses de liberdade, inclusive com o que ela traria de desordem e incerteza. A modernidade líquida inverte o pêndulo: introduzindo altos montantes de incerteza em prol da maior liberdade dos indivíduos em domínios como o trabalho e as relações erótico-afetivas, essa nova etapa do mundo moderno desperta neles anseios existenciais intensos por condições sociais de vida mais propícias à segurança (ordem, rotina, previsibilidade etc.). Se o sujeito que passava 30 anos no mesmo emprego guardava anseios por uma vida profissional mais dinâmica, o empregado flexível e precarizado toma a estabilidade profissional, ao contrário, como uma fantasia distante e inalcançável. Se a estabilidade dos casamentos na modernidade sólida podia facilmente transmutar-se em prisão sufocante dos anseios amorosos, a liberdade para fazer, desfazer e refazer laços erótico-afetivos na modernidade líquida cobra seu preço, ao contrário, na forma de uma insegurança crônica quanto à continuidade das relações (Bauman, 2004). E assim por diante… 

Tendo feito da sensibilidade à ambivalência um princípio central das suas lentes sociológicas, Bauman dedicou significativa energia a mapear fenômenos culturais e políticos que, em plena modernidade líquida, manifestavam tentativas de (re)conquista dos alicerces de um mundo seguro, a começar pela fuga de uma “sociedade individualizada” mediante a construção e manutenção de “comunidades” fechadas (Bauman, 2003):

Quando (como notavelmente formulado por Erich Fromm) ‘cada indivíduo deve ir em frente e tentar sua sorte’, quando ‘ele tem que nadar ou afundar’ — ‘a busca compulsiva da certeza’ se instala, começa a desesperada busca por ‘soluções’ capazes de ‘eliminar a consciência da dúvida’ — o que quer que prometa ‘assumir a responsabilidade pela ‘certeza’’ é bem-vindo” (Bauman, 2001: 30).

Trazidas para os anos de 2020, uma conjuntura transformada por fenômenos como a “pós-verdade”, as bolhas informacionais impulsionadas por algoritmos e a ascensão de uma aliança transnacional de extrema direita (a “Internacional Nacionalista” planejada por Steve Bannon), as sugestões analíticas de Bauman se mostram, em larga medida, pertinentes. Juntamente com outros teóricos da sociedade “pós-tradicional” na década de 1990, como Giddens e Beck, o teórico da modernidade líquida já podia remeter os humores relativistas do pensamento pós-moderno a uma experiência típica do habitante da modernidade tardia: ter de decidir, em nada desprezível medida a partir da própria autonomia reflexiva, entre discursos com pretensões de validade cognitiva distintas e, muitas vezes, conflitantes (p.ex., sobre os benefícios e malefícios do consumo de café e vinho, sobre vacinas, sobre a mudança climática, sobre conspirações internacionais de atores poderosos etc.). Combinada a uma overdose de informações continuamente renovadas nos meios de comunicação de massa, essa condição existencial é propensa a despertar sensações agudas de desconforto cognitivo e, mais radicalmente, de “insegurança ontológica” a respeito de questões acerca das quais o indivíduo é obrigado a decidir no cotidiano.

Pois bem: o que hoje chamaríamos de “bolha informacional”, como instância sociodigital que “assume a responsabilidade pela certeza”, se apresenta como um dos avatares possíveis do que Bauman chamava de “comunidade”. Os alicerces cognitivos e normativos da visão de mundo que sustenta uma bolha, quando suficientemente sedimentados na psique, tornam-se os critérios mesmos para a distinção entre “verdade” e “falsidade”:  

Com os olhos postos em seu próprio desempenho – e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas -, os homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. Não que considerem as “soluções biográficas” onerosas e embaraçosas; simplesmente não há “soluções biográficas para contradições sistêmicas” eficazes, e assim a escassez de soluções possíveis à disposição precisa ser compensada por soluções imaginárias. (…) Há, então, demanda por cabides individuais onde os indivíduos atemorizados possam pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo é propício aos bodes expiatórios – sejam eles políticos que fazem de suas vidas privadas uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nos bairros perigosos ou “estrangeiros entre nós’ O nosso é um tempo de cadeados, cercas de arame farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e também de jornalistas de tablóides “investigativos” que pescam conspirações para povoar de fantasmas o espaço público funestamente vazio de atores, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral’” (Ibid.: 49).

As passagens trazem antecipações sociológicas sagazes, tais como a intuição da importância de teorias conspiratórias (p.ex., “marxismo cultural”) e pânicos morais (p.ex., o “kit gay”) como fatores de formação de comunidades sociopolíticas. Isto dito, os desenvolvimentos históricos dos últimos anos também revelam insuficiências na visão de Bauman. Ciente das tentativas intensas de reconstrução do cálido casulo da “comunidade” em sociedades individualizadas, o sociólogo polonês preferia enfatizar, tenho a impressão, o que havia de precário e efêmero nessas tentativas. Bauman parece ter subestimado, nesse sentido, o quão duráveis e pouco permeáveis tais formas de “comunidade” poderiam se tornar. Como mostrou Wendy Brown na sua interpretação do novo autoritarismo de direita, as frustrações oriundas de promessas ideológicas não cumpridas pelo neoliberalismo, para além de engendrarem mais algumas rodadas de esforços estritamente individuais, deram ensejo, mais recentemente, a uma inegável politização. À sua maneira, essa politização combateu, sim, a individualização descrita por Bauman, porém deslocando o alvo do sistema econômico para inimigos talhados sob medida para o extravasar catártico da agressividade e do ressentimento (p.ex., os imigrantes nos E.U.A, os “comunistas” no Brasil etc.).  

Enquanto o conteúdo e o tom dos argumentos de Bauman sugeriam que tais comunidades tendiam a se dissolver mais cedo ou mais tarde sob o peso da individualização líquida, esta sim vista como a força avassaladora, o autor foi menos sensível aos perigos do fenômeno inverso: quando os indivíduos são lançados ao vórtex de certas bolhas informacionais comunitárias (como a do bolsonarismo), o escape à bolha pode ser o desenlace menos provável, a despeito dos custos extraordinários (muitas vezes mortais) que sua permanência pode trazer para outros dentro e fora da bolha. A persistência do bolsonarismo em parcela significativa da população brasileira, no rastro de catástrofes que carregam a inegável impressão digital do movimento (das centenas de milhares de mortos por Covid-19 às dezenas de milhões lançados de volta à fome), é um dos exemplos mais trágicos dessa dinâmica.

Volto ao tema com mais (bem mais, espero) depois.  

Notas 

[i] As sistematizações intelectuais dessa concepção teleológica de progresso em diferentes domínios da filosofia e das ciências humanas são bastante variadas, incluindo da noção de “civilização” na antropologia evolucionista até a teoria marxista da abolição da sociedade de classes pela revolução proletária como fim da “pré-história da sociedade humana” (Marx, 1982: 25). A junção entre o telos da transparência cognitiva e o telos do progresso social já se exibe nesses dois exemplos, assim como em outros tão diversos quanto as noções do “estágio positivo” do pensamento humano em Comte ou do “fim da história” em Hegel. 

Referências

BAUMAN, Zygmunt. “Viewpoint: Sociology and Postmodernity”. The sociological review, v. 36, n. 4, p.790-813, 1988.

________Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1993.

________O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.

________Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b.

________Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 1999a.

________Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro, Zahar, 1999b. 

________Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

________Comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

________Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

________A sociedade individualizada. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

________Vida em fragmentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

BECK, Ulrich. O que é globalização?. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Reflexive modernization. Stanford: Stanford University Press, 1994.  

FISHER, Mark. Capitalist realism. London: Zero Books, 2009. 

FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. New York: Free Press, 1992.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1982.

Para citar este post: PETERS, Gabriel. Da modernidade líquida à modernidade tóxica: notas de uma aulinha sobre Bauman. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 30 de agosto de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/08/30/baumanmodernidade/

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