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Quero ser máquina: notas livres sobre Jonathan Crary e o inconveniente do sono, por Gabriel Peters

Como intervalo em que somos inúteis (i.e., inaproveitáveis) quer como trabalhadores, quer como consumidores, o sono se tornou, paradoxalmente, um dos bastiões mais teimosos de resistência a um capitalismo que busca colonizar todos os domínios da vida.

Por Gabriel Peters

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O ensaio como forma (adorniana)

Publicado em 2013, o livro 24:7: capitalismo tardio e os fins do sono é um ensaio estendido no qual o crítico cultural estadunidense Jonathan Crary explora, valendo-se da liberdade associativa própria à forma ensaística, a relação entre nossa teimosa necessidade de sono, de um lado, e as exigências funcionais que o capitalismo faz às nossas subjetividades, de outro. Embora Crary não seja um frankfurtiano ortodoxo de primeira geração, sua escrita tem múltiplas reverberações adornianas: a preocupação com a penetração reificante do capitalismo nas mais diversas esferas da vida; a sensibilidade “consteladora” para rastrear aquela penetração em dimensões variadas e surpreendentes da paisagem cultural; e, finalmente, o tom pessimista de muitas de suas formulações. Se o pessimismo de Crary parecia exagerado lá para os idos distantes de 2013, ele certamente adquire um ar profético quando reencontrado à luz dos processos sociopolíticos que nos atropelaram desde então.

Como reza a analogia entre o ensaio e um passeio (Waizbort, 2000: 35-74), é inerente ao gênero dar mais importância aos achados do caminho do que ao ponto de chegada. Eis por que o comentário(zinho) que vai adiante não é um resumo do livro de Crary, mas uma discussão livre das ideias craryanas que apertaram a mente deste escriba.

O sono como resistência passiva à subjetivação capitalista            

Em post anterior neste batblog, já encontramos a tese, partilhada por um amplo espectro de autores, de que o capitalismo atual depende de certas formas de subjetividade que o próprio sistema procura produzir através de uma série de dispositivos, os quais vão da literatura motivacional até mecanismos eletrônicos de avaliação de serviços, de estimulantes neurofisiológicos (p.ex., café, ritalina) até aplicativos (p.ex., despertador, agenda, filtro do Instagram). Ao tratar daquelas formas de subjetividade, é importante levar em consideração não apenas os modelos de individualidade voltados ao trabalhador ou produtor, mas também aqueles que se dirigem ao indivíduo como consumidor. Não é somente mediante mecanismos de “autoexploração” (Han, 2017) do trabalhador, como as metas que levam um entregador de aplicativo a trabalhar de dez a doze horas por dia, que o sistema capitalista coloniza amplas fatias do tempo de vida do indivíduo. Um sujeito que entra no Instagram, no Tik Tok ou no YouTube, procurando aproveitar o intervalo entre um e outro período de trabalho, continua útil à engrenagem do capitalismo na condição de consumidor. Ainda que o próprio indivíduo conviva cotidianamente com o dilaceramento interior entre sua intenção de concentrar-se em suas demandas de trabalho, de um lado, e a tentação de ceder a todo um ecossistema digital de distrações viciantes, de outro, ambas as atividades são, no fim das contas, “funcionalizadas” pelo capitalismo (p.ex., ao assistir a um vídeo no Youtube, estou gerando dados que a plataforma não tardará em converter em valor monetário).    

O capitalismo conseguiu instrumentalizar, portanto, tanto os momentos de trabalho quanto os momentos de lazer da existência individual, o que inclui as invasões do trabalho no lazer (p.ex., a mãe responde a e-mails profissionais pelo celular enquanto janta com os filhos) e do lazer no trabalho (p.ex., ouço alguma rádio de comentário político – entrecortado por anúncios pagos – enquanto dirijo Uber). No entanto, tal funcionalização capitalista da vida encontra uma “exceção colossal”, segundo Crary (2013: 24), nos períodos em que dormimos. Estado em que somos mais passivos e vulneráveis, o sono também é, paradoxalmente, um dos bastiões mais teimosos de resistência a um capitalismo que busca colonizar todos os domínios da vida. Por quê? Porque ele institui um intervalo em que somos inúteis (i.e., inaproveitáveis) quer como trabalhadores, quer como consumidores.

Capitalismo da luz

Não é preciso ser marxista para notar que diversos traços da experiência temporal na modernidade se associam à transformação do tempo em mercadoria pelo sistema capitalista – a começar, como mostrou o historiador E.P. Thompson (1998: cap.6), pela consolidação de um tempo abstrato e quantificado pelo relógio mecânico, desligado de quaisquer conexões “qualitativas” com o “tempo da natureza” (p.ex., a clareza do dia, a escuridão da noite, as distintas estações do ano). Seja dia ou noite, inverno ou verão, clima de sol ou chuva etc., as unidades quantitativas de tempo são tidas pela economia capitalista como idênticas para os cálculos de ganhos e perdas. Como escreve um intérprete arguto de Marx: “uma hora na qual as máquinas cessam e não se trabalha, ou então não se transporta ou vende, é uma hora economicamente perdida” (Rosa, 2019: 331). Marx já notara em algum canto, assim, que a apropriação de valor ao longo de 24 horas por dia e 7 dias por semana era um impulso imanente à produção capitalista – impulso historicamente concretizado, segundo a interpretação de Crary, no capitalismo tardio.  

Um dos principais correlatos ideológicos do capitalismo 24/7 é, continua o autor estadunidense, um “imaginário contemporâneo” da “iluminação permanente” (2014: 15; 19). A luminosidade constante corresponderia a um presente ao mesmo tempo eterno e frenético, sustentado por um sistema que não apenas dispõe da capacidade de atividade ininterrupta, mas tende a transformá-la em imperativo para todos aqueles imersos em suas engrenagens.  Apoiado no “desempenho maquínico” (Ibid.) de sistemas tecnológicos que jamais são desligados, o modelo do funcionamento ininterrupto interpela indivíduos que, por mais que estejam compromissados em corresponder ao imperativo, encontram nos seus próprios organismos fontes inerentes de resistência a tal interpelação. O sono avassalador, digamos, aparece como estágio extremo de uma série de estados orgânicos e psíquicos que se revelam inconvenientes à subjetividade ativa e empreendedora (p.ex., sonolência, distração, devaneio, tontura, vertigem, dor de barriga etc.).

Como discuti em outros textos, os dispositivos orientados ao cultivo de formas de subjetividade funcionais ao capitalismo tardio preenchem o vazio, por assim dizer, deixado pelo desmantelo do estado de bem-estar social e do arranjo fordista-keynesiano do “capitalismo organizado”. Enquanto tal arranjo institucionalizava um direito ao sono e ao descanso, em resposta “aos piores abusos no tratamento dos trabalhadores” (Crary, 2014: 24) que marcaram a anterior fase industrial-liberal do capitalismo (Boltanski; Chiapello, 2007), o capitalismo tardio lança sobre os indivíduos a responsabilidade pelo manejo do próprio sono, em mais uma instância daquela individualização discutida por Bauman como típica da “modernidade líquida”.  A administração individualizada das próprias necessidades de sono se dá, entretanto, em condições sociais de vida que pressionam os mesmos indivíduos a maximizarem sua vigília tanto quanto possível: na tentação viciante a assistir vários episódios de um seriado ao longo da madrugada, com a consciência de que é preciso levantar cedo para o trabalho no dia seguinte; na necessidade que um professor substituto tem de cortar horas de sono para administrar sua carga de aulas e, ainda assim, escrever artigos que turbinem seu currículo; na jornada dupla de uma mulher que, devido à distribuição desigual do trabalho doméstico e do cuidado, chega em casa do trabalho e, em vez de descansar, vai lavar a louça e colocar as crianças para dormir.

Uma olhada nas literaturas de autoajuda e desenvolvimento pessoal verá que a proteção ao sono, embora pensada como uma responsabilidade estritamente individual, ainda é frequentemente justificada como necessária à otimização das próprias capacidades. Sacrificar “demasiadas” horas de sono torna-se contraproducente, dizem gurus diversos da ideologia gerencial, quando tal sacrifício passa a prejudicar as competências necessárias ao desempenho eficiente de tarefas cotidianas no trabalho e em outras dimensões da vida. Quantas horas sacrificadas de sono, porém, são demasiadas? Na medida em que esse cálculo é abandonado aos ombros individuais, também ignorada é a desigualdade de recursos que diferentes indivíduos têm à disposição para enfrentar os desafios socioestruturais ao seu sono. Por exemplo, o período entre cinco e sete da manhã no qual um empresário dorme, enquanto sua empregada doméstica se desloca de ônibus para sua residência, revela uma desigualdade de classe em função da qual o tempo de sono do primeiro é comprado às custas do tempo de sono da segunda.

Seja como for, Crary sustenta uma posição mais radical: conforme caem os controles institucionais próprios a “formas mitigadas ou controladas de capitalismo”, passam a desabar também os discursos ideológicos que ainda justificavam a “produtividade” e a “utilidade” do sono e do descanso com base nas suas qualidades regeneradoras. Mais do que negar que esses discursos persistem em certos quadrantes, o desencantado crítico se concentra no descompasso sistêmico que os períodos de repouso (seja da produção, seja do consumo) apresentam em relação ao capitalismo 24/7: “o tempo para o descanso e a regeneração dos seres humanos é simplesmente caro demais para ser estruturalmente possível no capitalismo contemporâneo” (Crary, 2014: 24).

Reificação e gnosticismo tecnológico

Um dos traços “adornianos” do ensaio de Crary consiste, já dissemos acima, no mapeamento de exemplares histórico-culturais da reificação, i.e., da expansão colonizadora do capitalismo para “um número cada vez maior de esferas da vida individual e social” (Ibid.: 109). Mas a linguagem da reificação também se conecta, na escrita craryana, ao tema clássico da alienação tecnológica: o processo em que seres humanos passam a ser enfeitiçados e dominados pelas máquinas que eles próprios criaram. As duas modalidades de reificação se entrelaçam no sistema tecnocapitalista: operando à imagem e semelhança de um ambiente maquínico de funcionamento ininterrupto, o capitalismo 24/7 interpela os indivíduos com um ideal de “vida ativa” do qual eles só podem se aproximar se se transmutarem, tanto quanto possível, em máquinas.

No entanto, a aproximação ao ideal de funcionamento maquínico nunca é completa. Na medida em que os “progressos” nessa tentativa de tornar-se máquina esbarram em limites orgânicos e/ou psíquicos demasiado humanos, os traços do organismo que atrapalham a identificação completa com o maquinal são crescentemente vividos como inconvenientes e embaraçosos. Tais “resistências” orgânicas e psíquicas à “automaquinização” vão do nervosismo e da ruminação inútil até o sono e as funções excretoras. Não admira que várias das estratégias práticas pelas quais os indivíduos buscam tornar-se valiosos ao capitalismo, não somente pela otimização do desempenho como pela manutenção de uma persona correspondente, se dirijam àquelas “resistências”, seja reduzindoas ao mínimo possível (p.ex., cortando horas de sono), seja instrumentalizando-as (p.ex., responder mensagens de trabalho enquanto se está sentado na privada), seja escondendo-as tanto quanto possível (p.ex., quando a fachada de bem-sucedido demanda a ocultação dos custos orgânicos e psíquicos do sucesso, como as olheiras e a dor gástrica que, sendo efeitos colaterais do excesso de trabalho, podem ser escondidas respectivamente com maquiagem e remédio para o estômago). Em resumo, mesmo que a harmonização plena de “seres vivos reais com as demandas do capitalismo 24/7” seja uma exigência impossível, ainda restam fortes e “inúmeros incentivos para suspender ou disfarçar ilusoriamente algumas das limitações humilhantes da experiência vivida, seja emocional ou biológica” (2014: 109-110). 

Nessa curva do ensaio, quando inclui o sono entre as características do corpo e da psique humanos que se mostram recalcitrantes à “subjetivação” capitalista, Crary depara com o fenômeno – não o conceito, mas a coisa – que Victor Ferkiss e Hermínio Martins denominaram de “gnosticismo tecnológico” (Martins, 1996). A alusão da expressão às heresias gnósticas dos primeiros séculos da Era Cristã sublinha que, em certo imaginário contemporâneo, a tecnologia se torna investida das mesmas aspirações atendidas, no passado, por cosmologias religiosas – aspirações cujo cerne é o anseio de transcendência humana em relação à carne e às suas vulnerabilidades, incluindo a mortalidade como a maior delas. Juntando Crary com Martins, sociólogo português não citado pelo crítico estadunidense, pode-se ver o gnosticismo tecnológico não apenas em suas formas ideológicas sistematizadas (p.ex., entre defensores de uma etapa “pós-humanista” na evolução [Vandenberghe, 2013: 246-329]), mas também como uma sensibilidade encantada com as propriedades da máquina (a eficácia, a durabilidade, a assepsia) e, correlativamente, avessa às características do orgânico (a fraqueza, a viscosidade, a finitude). Do desejo sexual que substitui humanos de carne e osso por avatares digitais até a esperança de “clones eletrônicos” da consciência que continuariam a existir em máquinas após a morte do corpo físico do seu proprietário original, as ilustrações dessa sensibilidade tecnognóstica são múltiplas e variadas em suas formas e intensidades. 

Tecnosfera e biocídio

Ao desejarem assimilar-se mais a máquinas do que a organismos, sugere Crary, os seres humanos intensificam a denegação de seus elos com a biosfera da Terra no mesmo ritmo em que a danificam e destroem. Negar o pertencimento à biosfera terrestre é abandonar ou minimizar a responsabilidade moral pela extinção, provocada pela iniciativa humana, de milhões de espécies inteiras de organismos. De par com “nossa desobrigação do biocídio em curso por todo o planeta” (Ibid.: 110), supor-se pertencente à “mecanosfera do capitalismo global”, em vez da biosfera terrestre partilhada com espécies vulneráveis e transitórias como nós, é também acreditar que a espécie humana pode sobreviver à hecatombe ambiental. Projetos de estabelecimento de condições artificiais que propiciem a ocupação humana de outros planetas, como Marte, florescem desse mesmo imaginário “mecanosférico”. Na esteira das aventuras espaciais como iniciativa de bilionários, é de se supor que tais empreitadas de povoamento, mesmo revelando-se factíveis em futuro mais ou menos próximo, serão apanágio de uma minoria de privilegiados.  Ao revelar-se dependente da desigualdade social, a capacidade de dissociar o próprio destino humano do destino da biosfera da Terra aponta, no fim das contas, para o vínculo entre a falta de cuidado com a natureza por uma civilização tecnotópica, de um lado, e a negação de nossas interdependências sociais pela ideologia individualista do capitalismo tardio, de outro:

…a crença de que podemos subsistir independentemente da catástrofe ambiental é paralela às fantasias de sobrevivência ou prosperidade individual no contexto da destruição da sociedade civil e da eliminação de instituições que guardem qualquer aparência de proteção social ou de apoio mútuo, seja educação pública, serviço social ou saúde para os necessitados” (2014: 110).

Referências

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. The new spirit of capitalism. London: Verso, 2007.

CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa: Edições Século XXI, 1996.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo: Unesp, 2019.

THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34.

5 comentários em “Quero ser máquina: notas livres sobre Jonathan Crary e o inconveniente do sono, por Gabriel Peters

  1. Wagner Arandas

    Dormir vem se tornando um ato de resistência.

  2. Caro Gabriel, você cita “Martins” mas não nos dá a referência doa/a autor/a. Poderia fazer isso, por favor?

    • bloglabemus

      Obrigado pelo lembrete, Helion. A referência é: MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa: Edições Século XXI, 1996. Aproveitei o ensejo e inseri na bibliografia do próprio post. Abraço

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