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A depressão entre a terapia e a política: uma breve conversa com Mark Fisher, por Gabriel Peters

Como o próprio Fisher reconhecia, criticar a substituição da política pela terapia não precisa acarretar o programa reverso, isto é, uma substituição completa da terapia pela política.

Por Gabriel Peters

Ativismo da inatividade? Depressão como gesto político

Este micropost é desdobramento de um artigo – e, aliás, de uma palestra – em que aponto para algumas causas sistêmicas do sofrimento depressivo nas sociedades capitalistas contemporâneas. Ao explorar as fontes sociais de sofrimentos comumente enfrentados apenas como problemas individuais, a requerer soluções igualmente restritas ao plano individual (p.ex., tratamento psiquiátrico e/ou psicoterapêutico), a sociologia prepara o caminho para uma política da depressão. Deixando-se de lado, só por ora, o problema real da inflação de diagnósticos psiquiátricos, os índices que levaram a Organização Mundial de Saúde a anunciar que o mundo enfrenta uma pandemia global de depressão podem ser lidos como sintomas sociais ou mesmo alarmes civilizacionais. O capitalismo contemporâneo, baseado em modelos de individualidade e formas de subjetividade voltados à atividade ininterrupta, tem feito a indivíduos de carne e osso exigências maiores do que eles podem cumprir. Na medida em que cresce o número de indivíduos que, pelo seu estado depressivo, revelam-se indispostos a – ou incapazes de – responder àquelas exigências irrazoáveis, a pandemia de depressão expõe sua face de um efeito colateral sistêmico do próprio capitalismo.

Pois bem: se as raízes estruturais do sofrimento depressivo em escala pandêmica encontram-se no imperativo da atividade individualizada inerente ao capitalismo atual, diz o raciocínio, o alvo de uma política de combate à depressão é nada menos do que o sistema capitalista in toto. Mais ainda: a depressão, assim como outras formas de suposto “fracasso” frente aos modelos de autorrealização individual propostos pelo capitalismo contemporâneo, poderia ser imbuída de um significado ético-político próximo a um “ativismo da inatividade” – uma espécie de recusa às demandas estruturais que o mundo contemporâneo faz às nossas individualidades em diversos âmbitos da vida, a começar por aquele do trabalho (índice mais frequente das consequências “incapacitadoras” da condição depressiva).     

Duas ressalvas se fazem necessárias aqui. Em primeiro lugar, tal aspecto ético-político da depressão pode ser sublinhado sem que seja preciso, acredito eu, romantizar ou idealizar uma experiência de extraordinário sofrimento, a demandar atenção e cuidado pelos caminhos disponíveis – inclusive, quando necessário, o caminho neurofarmacológico. Em segundo lugar, o significado ético-político dos índices de depressão deriva sobretudo de seu caráter de sintoma social, como um índice de que algo está bastante errado com o capitalismo contemporâneo, não como uma ameaça efetiva à continuidade desse sistema. Mesmo sendo a principal causa de incapacitação para o trabalho no mundo, por exemplo, a depressão não impacta decisivamente uma condição socioeconômica na qual o capitalismo tem à sua disposição um amplo exército empregatício de reserva e um vasto contingente de indivíduos constrangidos ao subemprego, ao trabalho precário, à autoexploração e assim por diante. Um combate social e político por mudanças sistêmicas nesse domínio depende, é claro, de um enorme montante de atividade para o qual são necessários montantes idênticos de energias motivacionais. A ironia trágica é o fato de que a depressão, como um modo de inatividade crônica ou “patológica”, mina justamente aquelas motivações para a ação que seriam necessárias para o combate às suas fontes sistêmicas. Como pode lutar contra o capitalismo quem mal consegue levantar da cama? (Hedva, 2020) 

Pessoas estão deprimidas porque o mundo é deprimente? 

Para além desse paradoxo prático, uma leitura sistêmica e política da depressão tem de enfrentar a hegemonia ideológica de perspectivas individualistas e individualizantes na psiquiatria biomédica, na psicologia clínica, nos meios de comunicação de massa e no próprio senso comum. A bem da verdade, tão dominante é essa visão individualista que a crítica a ela parece estrategicamente justificada em simplesmente “torcer o bastão para o lado oposto”, abraçando uma conclusão coletivista: as pessoas estão deprimidas porque o mundo é deprimente. Para introduzir nuances nessa conclusão, poderíamos mapear as correspondências entre, de um lado, sintomas individuais de quadros depressivos e, de outro, características “depressogênicas” – ou, mais simplesmente, deprimentes – das coletividades contemporâneas. Pensemos, por exemplo, em um sintoma característico: a corrosão de qualquer esperança de que o futuro possa ser melhor do que o presente. Tal corrosão é uma resposta ao menos inteligível, em princípio, a uma crise de futuro de alcance genuinamente civilizacional, relacionada a catástrofes ecológicas que, outrora anunciadas como ameaça apocalíptica, já estão em curso – é o caso, sabemos, da mudança climática. Ao instaurar uma “vida a crédito” (Bauman, 2010) baseada na areia movediça do endividamento, o capitalismo oferece outra fonte de comprometimento do futuro e, por extensão, de perda de esperança. Quando pressões financeiras empurram muitos indivíduos ao que David Graeber chama de “trabalhos merda” (shitty Jobs) (Graeber, 2018), não admira que eles se sintam relutantes a realizarem-se pelo engajamento contínuo com a atividade infinda.

Ademais, como tendência geral, se muitos empregos são ruins, o desemprego é pior ainda. Tal qual disseram pós-marxistas (e.g., Vandenberghe, 2002), a disponibilidade de um exército de desempregados dispostos a – quando não desesperados para – aceitar trabalhos precarizados ou degradantes enfraquece, por sua própria natureza, a crítica marxista ao caráter alienante dos empregos existentes. As privações econômicas e as feridas simbólicas derivadas do desemprego empurram muitas pessoas à procura de um emprego no qual possam ser propriamente “exploradas”. Um mecanismo semelhante na relação emprego/desemprego se aplica à depressão: tudo o mais mantido constante, desempregados são mais vulneráveis a ficarem deprimidos do que pessoas empregadas, mesmo nos casos em que estas últimas não gostam de seus empregos. Na medida em que, como vimos com Alain Ehrenberg, as performances exigidas dos trabalhadores no novo capitalismo incluem uma fachada de bom-humor e afabilidade, é possível que a queda no desemprego também leve os afetados a aceitarem o próprio sofrimento de maneira mais aberta do que os que permanecem empregados.        

No rastro das tempestades econômicas que atravessaram o mundo desde 2008, um conjunto de pesquisas estatísticas se debruçou sobre as consequências psíquicas do endividamento. Tais pesquisas confirmam a sugestão intuitiva de que dívidas tornam as pessoas mais propensas à depressão e ao suicídio. Um desses estudos (Meltzer et al. 2011) empresta um rosto numérico a tais conexões ao concluir, por exemplo, que endividados tendem a pensar duas vezes mais em suicídio do que não endividados, quando controladas toda uma série de variáveis intervenientes (demográficas, econômicas, sociais e de estilo de vida). Outro estudo com estadunidenses mostrou, por seu turno, que indivíduos com pagamentos de sua hipoteca em atraso tinham uma probabilidade nove vezes maior de desenvolver sintomas de depressão se comparados àqueles com pagamentos em dia (Stuckler; Basu, 2013: 127).

Mark Fisher e o realismo capitalista

A dívida hiperbólica assombra o futuro. A insatisfação com o trabalho domina o presente. Uma vez que ambas se atrelam a um capitalismo que proscreve mesmo a imaginação de alternativas, a perda de esperança que marca tantos quadros depressivos aparece como uma resposta compreensível a tal conjuntura. Chamando-a de “realismo capitalista” (2009), Mark Fisher a definiu como o estado histórico no qual  “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” – uma frase, salvo engano, atribuída tanto a Fredric Jameson quanto a Slavoj Zizek. Dado que a referência a alternativas utópicas sempre foi um complemento importante nas teorias críticas do sistema capitalista, a alusão que a definição faz à imaginação é crucial para apreender a radicalidade do fenômeno. Para além da tese amplamente propalada de que o capitalismo é o único sistema econômico e político viável, o realismo capitalista tende a tornar “impossível até mesmo imaginar uma alternativa coerente a ele” (Ibid.: 78).

Ao identificar-se com o realismo, a justificação ideológica do sistema capitalista, diz Fisher na trilha de Badiou, procura menos exibi-lo como “ideal” ou “maravilhoso” do que apresentar “todo o resto” como horrível (Ibid.: 11). Eis um traço em que o realismo capitalista se assemelha ao que já foi chamado de “realismo depressivo” na psicologia: não um apreço pelas coisas como são, mas a suspeita ou destruição da esperança de que condições melhores sejam possíveis. A semelhança não é apenas de estrutura, nota Fisher, mas indício de que as causas estruturais da condição depressiva se encontram na etapa tardia do capitalismo.

O argumento de Fisher, detalhado e repleto de achados surpreendentes como é, não cabe em um resumo. Porém, ainda que não tenhamos espaço para discutir o tema aqui, cabe dizer de antemão que o autor inglês, por óbvio, não negava que sintomas depressivos possuem alguma forma de manifestação material nos cérebros dos indivíduos por eles afligidos. O que Fisher sustentava era a existência de causas sociais dessa própria manifestação, uma vez que as subjetividades humanas, assim como seus suportes neurofisiológicos, estão abertas a influências oriundas do mundo social:

se for verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda precisa ser explicado é por que indivíduos particulares têm baixos níveis de serotonina. Isto requer uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental é urgente caso a esquerda queira desafiar o realismo capitalista” (Ibid.: 43).

De fato. Suponha-se, para dar outro exemplo, um veterano de guerra que desenvolve síndrome de estresse pós-traumático em função de sua experiência de haver sido torturado quando feito prisioneiro por um exército inimigo: afirmar que suas vivências daquele distúrbio dependem de processos materiais no seu cérebro é tão óbvio quanto reconhecer que ele não teria tais vivências caso não houvesse atravessado processos cujas raízes são sociais de cabo a rabo, como a guerra, a prisão e a tortura.

Por um lado, como vimos, é possível até surpreender uma lucidez sociológica na postura que toma o fechamento dos próprios horizontes de futuro não como um fracasso individual, mas como uma realidade sistêmica (p.ex., os becos ecológicos sem saída em que a humanidade já se colocou). Frente ao caráter descartável de qualquer membro individual da força de trabalho, para dar outra ilustração, o senso da futilidade da própria conduta também parece outro traço depressivo de “realismo”.  Por outro lado, para defensores de uma política de saúde mental de esquerda como Fisher, o “realismo depressivo” não deve ser visto como apreensão da natureza das coisas, mas, ao contrário, como um sintoma patológico do realismo capitalista. O senso de inevitabilidade, bem como a crise de imaginação que barra de saída a procura de caminhos alternativos, são os alvos, não os alicerces, de uma politização do debate sobre depressão.  

 A parada é difícil. Com o pessimismo do intelecto, Fisher mapeia a avassaladora força do realismo capitalista como uma formação ideológica, encarnada em práticas e instituições, que subjaz ao sofrimento depressivo. Com o otimismo da vontade, ele quer revelar a historicidade daquela formação e, assim, mostrar que o senso de inescapabilidade “absoluta” que marca tanto o realismo capitalista quanto o realismo depressivo são ilusões patológicas. Como escreveu Frantzen (2019: s/p), é somente combinando os dois veios de análise que se torna possível “desenvolver um discurso sobre a depressão que não seja”, ele próprio, “deprimente” (Frantzen, 2019: s/p).

 Na estimativa da Organização Mundial de Saúde, a depressão se tornou a principal causa global não apenas de incapacitação para o trabalho, mas também de suicídios. Considerados os vínculos entre depressão e realismo capitalista, há uma significação trágica no fato de que Fisher, sistematizador da ideia de que hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, terminou por colocar fim à sua própria vida. Eis um território que deve ser percorrido com o máximo possível de cautela e delicadeza. De um lado, é óbvia e terrivelmente relevante que um dos intérpretes mais inteligentes e sensíveis da depressão como um efeito histórico do realismo capitalista tenha cometido suicídio. De outro lado, não devemos ceder à tentação, ao mesmo tempo simplista e injusta, de supor que o suicídio de Fisher seja uma espécie de fonte-mestra do significado de toda a biografia e legado intelectual do autor – um reducionismo retrospectivo que, de Sylvia Plath a uma multidão de desconhecidos, é costumeiramente aplicado à narrativa de vidas que terminam com a morte auto-infligida.

O serviço de prevenção ao suicídio do Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece atendimento gratuito e sigiloso, por telefone ou chat, todos os dias, 24 horas por dia.

Conclusão

Como o próprio Fisher reconhecia, criticar a substituição da política pela terapia não precisa acarretar o programa reverso de uma substituição completa da terapia pela política. Sim, a diminuição da incidência de quadros de depressão no mundo contemporâneo é algo que tem precondições sistêmicas, as quais são em larga medida imunes a formas individualizadas de tratamento. Mas a luta política pela transformação daquelas circunstâncias sistêmicas tem ela própria, por seu turno, precondições psíquicas. Nas palavras de Mikkel Frantzen, “lidar com a depressão – e outras formas de psicopatologia – não é apenas parte, mas uma condição de possibilidade para um projeto emancipatório hoje” (2019: s/p). Continua o autor:

compreender a depressão através de lentes políticas não significa que o problema da depressão possa ser imediatamente resolvido por meios políticos. Há um horror na depressão que não pode e não deve ser traduzido muito rapidamente para a esfera da política, independentemente de nossas aspirações críticas e revolucionárias. A dor física é insuportável, seu corpo está inerte e se sente pesado demais, sua mente não está funcionando, e você não pode escapar ao sentimento de estar preso, estagnado, que a corrida já terminou e que o presente – que é inferno – é tudo o que há e tudo que pode-se imaginar que haverá. Seria uma ofensa dizer ‘bem, é só política’” (Frantzen, 2019: s/p).

Ante um cenário no qual a ética da autorrealização tende a esvaziar o espaço da política da emancipação, aquilo de que necessitamos não é substituir a primeira pela segunda, mas vinculá-las como os domínios interdependentes que são.

Mais sobre isto depois.         

Referências

BAUMAN, Z. Vida a crédito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

FISHER, M. Capitalist realism. Winchester: Zero Books, 2009

FRANTZEN, M.K. “A future with no future: depression, the left, and the politics of mental health”. Los Angeles Review of Books, December 16, 2019.

GRAEBER, D. Bullshit jobs: a theory. New York: Simon & Schuster, 2018.

HEDVA, J. Sick woman theory. https://johannahedva.com/SickWomanTheory_Hedva_2020.pdf

JAMESON, Fredric. Postmodernism: or the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke University Press, 1991.

STUCKLER, D.; BASU, S. The body economic: why austerity kills. New York: Basic Books, 2013. 

VANDENBERGHE, F.  “Working out Marx: Marxism and the end of the work society”. Thesis Eleven, n.69, p.21-46, 2002.

Para citar este texto: PETERS, Gabriel. A depressão entre a terapia e a política: uma breve conversa com Mark Fisher. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 19 de setembro de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/10/19/politica-terapia-mark-fisher/

             

2 comentários em “A depressão entre a terapia e a política: uma breve conversa com Mark Fisher, por Gabriel Peters

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