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Bruno Latour: As Ilusões da Modernidade, por Graham Harman

                                                                       Tradução: Thiago Pinho

Para versão original, publicada no The Institute of Art and Ideas, clique aqui

Bruno Latour, um importante intelectual francês que faleceu em 9 de outubro, colocou um grande desafio ao pressuposto-chave da filosofia moderna: a existência de uma distinção entre o sujeito humano e o mundo. Sua alternativa radical de ver o mundo como um conjunto de atores interagindo uns com os outros, ofereceu uma nova estrutura para entender a ciência, a política e a crise ambiental – diz o filósofo e biógrafo intelectual de Bruno Latour, Graham Harman.

Com a morte de Bruno Latour por câncer em 9 de outubro, o mundo perdeu uma figura importante e paradoxal, cujas contribuições mais profundas ainda não foram bem compreendidas. Em certo sentido, seria absurdo dizer que ele “não é apreciado”, já que recebeu o Prêmio Holberg em 2013 e o Prêmio Kyoto em 2021, além de ter quase 300.000 citações, assim como uma vasta rede global de admiradores e colegas de trabalho. Mas, como tantos intelectuais importantes, Latour foi uma peça que nunca se encaixou muito bem nos espaços mais prestigiados. Impedido por inimigos de participar de eventuais encontros em Princeton e no Collège de France, ele passou a maior parte de sua carreira na School of Mines de Paris, antes de se mudar mais tarde para o Sciences Po, na mesma cidade.

Católico praticante que se movia com facilidade no rigoroso ateísmo do pensamento contemporâneo, Latour acabou desenvolvendo um sistema de pensamento que era basicamente secularizado em espírito, apesar do espaço reservado à religião perto do seu núcleo. Acusado pelos guerreiros da ciência americana de ser um “construcionista social”, o que ele nunca foi, na França ele foi atingido no flanco oposto pelos discípulos de Pierre Bourdieu, que viam seu fascínio por atores não-humanos como uma forma de realismo reacionário.

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A razão da relativa falta de sucesso de Latour com os leitores de filosofia até agora é também a razão de sua futura e inevitável importância no campo: o golpe que ele dá contra a suposição central da filosofia moderna.

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Tweetando a notícia da morte de Latour, o presidente francês Emmanuel Macron notou com razão que Latour foi reconhecido no exterior antes disso acontecer em sua própria pátria. De fato, apesar dos evidentes elementos franceses em sua personalidade e estilo de vida, Latour era em muitos aspectos mais tipicamente anglo-saxão, e alguns de seus livros mais importantes apareceram primeiro em inglês. Mas talvez o maior paradoxo de sua carreira tenha sido o contraste entre seu status icônico nas ciências sociais e seu impacto ainda mínimo na filosofia, um campo onde suas esperanças de influência foram geralmente frustradas. Quando o convidamos em 2003 para falar aos filósofos da Universidade Americana no Cairo, ele observou que era apenas a segunda vez que ele se dirigia a um Departamento de Filosofia. Duvido que o número tenha aumentado muito durante os dezenove anos restantes de sua vida. 

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A inovação de Latour – antecipada por seu ancestral intelectual Alfred North Whitehead – é tratar todas as entidades igualmente como “atores”, analisando cada uma delas em termos dos efeitos que têm sobre outros atores.

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No entanto, a razão de sua relativa falta de sucesso com os leitores de filosofia até agora é também a razão de sua futura e inevitável importância no campo: o golpe que ele dá contra a suposição central da filosofia moderna. A suposição ocidental padrão dos últimos quatro séculos é que o universo consiste em dois tipos básicos de coisas: (1) pensamento humano, e (2) todo o resto. Em seu primeiro clássico Jamais Fomos Modernos (1991 em francês, 1993 em inglês, [2013 em português]) Latour tentou demonstrar que a modernidade como um todo gira em torno da suposta oposição entre as formas improvavelmente puras destes dois pólos. De um lado temos cultura, valores e liberdade, enquanto de outro temos natureza, fatos e necessidade. Existem múltiplas estratégias para lidar com esta situação: os construcionistas sociais reduzem a ciência à jogos de poder; os neurofilósofos contra-atacam reduzindo o pensamento às secreções do cérebro; outros introduzem o corpo humano como um terceiro termo supostamente capaz de preencher a lacuna. O que nenhum deles questiona é a estranha e improvável suposição de que o pensamento merece ser colocado em uma cesta do cosmos e todo o resto empacotado em uma cesta diferente.

A inovação de Latour – antecipada por seu ancestral intelectual Alfred North Whitehead – é tratar todas as entidades igualmente como “atores”, analisando cada uma delas em termos dos efeitos que têm sobre outros atores. As entidades não-humanas (quebra-molas, lixeiras, trens, neuropeptídeos, estiletes) desempenham um papel importante na filosofia de Latour, assim como os “híbridos”, cujos ingredientes humanos e não-humanos são quase impossíveis de diferenciar. Como cientista social, a chave de seu método é introduzir atores locais específicos no lugar de abstrações como “Sociedade”, “Ciência” ou “Capital”. Como filósofo, ele defende a mesma posição: que todas as interações entre os atores estejam exatamente no mesmo nível, de modo que o vínculo entre o pensamento e o mundo (obsessão da filosofia moderna) se torne apenas uma relação entre trilhões de outras. No máximo, pode-se questionar se Latour de fato considerou os casos em que todos os humanos estão ausentes. Ao contrário de Whitehead, ele não foi um filósofo da natureza, mas da ciência, e para Latour os observadores humanos estão sempre em algum lugar em cena.

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Em uma época em que o discurso científico é geralmente tomado como o padrão de ouro da verdade, o livro de Latour argumenta que política, direito e até mesmo religião formam reinos paralelos com seus próprios padrões de veridicção.

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Tornou-se um clichê falar das fases “precoce” e “tardia” de qualquer filósofo; Heidegger e Wittgenstein são dois dos casos mais super-analisados. Latour também tem uma fase “precoce” e uma “tardia”, mas com uma reviravolta incomum: seus dois períodos foram em grande parte simultâneos. Já em 1987, Latour estava cansado de seu famoso lema de que toda situação consiste em uma rede de atores heterogêneos, envolvendo tanto elementos humanos quanto não-humanos. Embora esta perspectiva ainda esteja fresca o suficiente e, por isso, longe de estar esgotada, Latour estava cada vez mais interessado na forma como certas zonas da realidade se dobram sobre si mesmas e excluem outros modos de discurso. Após um quarto de século de trabalho, isto levou à publicação de sua obra-prima de maturidade Investigação sobre os modos de existência [2012 em inglês e 2019 em português], na qual dois modos abrangentes (rede e preposição) governam outros doze, agrupados em quatro famílias de três. Em uma época em que o discurso científico é geralmente tomado como o padrão ouro da verdade, o livro de Latour argumenta que política, direito e até mesmo religião formam reinos paralelos com seus próprios padrões de veridicção. A racionalidade econômica, essa poderosa companheira moderna das ciências, é previamente decomposta em uma tripla estrutura de apego, organização e moralidade, desmentindo todas as tentativas de apresentar Latour como um “neoliberal”. Ao lado destes, temos o modo ontológico anti-Bergsoniano conhecido como reprodução, ao insistir que a realidade deve ser constantemente recriada a cada instante. Também encontramos convidados muito familiares – embora bem-vindos – como a tecnologia e a ficção, e a obscura e estranha metamorfose, que combina aspectos do xamanismo e da psicologia. Os modos [de existência] têm inspirado dúvidas, assim como entusiasmo, e é seguro dizer que a história de sua interpretação ainda mal começou. Na prática, mesmo durante o período pós-Modo de existência, tanto Latour como seus seguidores conduziram a maioria dos seus assuntos diários usando a linguagem inicial da teoria ator-rede.

Eu gostaria de encerrar falando um pouco sobre Latour como teórico político, já que também aqui ele tem inovações a oferecer. As críticas mais severas a Latour vieram da esquerda política, como era de se esperar, dada sua suspeita em relação ao “capitalismo” como uma categoria de análise. Na sua qualidade de cidadão francês e europeu, as opiniões políticas de Latour raramente eram enérgicas: em nossos anos de conversa, ele estava confiantemente em algum lugar entre o centro-esquerda e o centro, e sempre foi mais intelectual público do que ativista. Mais intrigantes eram os fundamentos teóricos de sua política, que contrariavam a modernidade, assim como todas suas áreas em que ele tocava. Pode-se dizer que o conflito moderno entre esquerda e direita se resume a uma discordância básica sobre se a natureza humana é boa (ou pelo menos melhorável) ou má (ou pelo menos não melhorável).

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Os últimos anos da carreira de Latour foram em grande parte repletos de esforços para desenvolver uma política climática que poderia ser algo mais do que um protesto ineficaz ou um apelo obsoleto à revolução.

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 Em seu recente best-seller The Dawn of Everything, David Graeber e David Wengrow criticaram esta alternativa moderna, mas apenas a substituíram pela noção de que a natureza humana é naturalmente experimental e imaginativa. Por mais revigorante que seja sua abordagem, é, em última análise, apenas mais uma teoria da natureza humana, que não responde suficientemente pela parte não-humana da política: que vai desde as debatidas restrições geográficas e de recursos, até elementos recentemente estudados, como documentos, micróbios, nutrição e animais de estimação. Mas somente com a crise climática os atores políticos não-humanos se aproximaram de sua idade de ouro pela primeira vez, a tal ponto que será necessária uma nova tradição teórica para compreender seu funcionamento.

Os últimos anos da carreira de Latour, de Diante de Gaia (inglês em 2015, [português em 2020]) até After Lockdown: A Metamorphosis (inglês em 2021) foi em grande parte repleta de esforços para desenvolver uma política climática que poderia ser algo mais do que um protesto ineficaz ou um apelo obsoleto à revolução. Embora a vida deste pensador engenhoso e gregário tenha terminado, os fios soltos de seu trabalho nos guiarão cada vez mais em sua direção, assim como a arte de seu compatriota Paul Cézanne estabeleceu a agenda para uma geração crescente de pintores.

Para citar este texto: HARMAN, Graham. Bruno Latour: As ilusões da modernidade. Tradução Thiago Pinho. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 07 de novembro de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/11/07/bruno-latour-as-ilusoes-da-modernidade-por-graham-harman/

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