Por Leonardo Belinelli[i]
“[…] a função da teoria crítica torna-se clara se o teórico e a sua atividade são considerados em unidade dinâmica com a classe dominada, de tal modo que a exposição das contradições sociais não seja meramente uma expressão histórica concreta, mas também um fator que estimula e que transforma.”
Max Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”
A interrogação que dá título às próximas linhas pode soar absurda aos seus eventuais leitores. Afinal de contas, se tomarmos por “crítico” alguém que teorizou contra a ordem social vigente no mundo – especialmente no Brasil, onde é especialmente desigualitária e autoritária -, não há a menor dúvida de que devemos classificar Florestan Fernandes como um representante destacado dos pensadores críticos. Por outro lado, se tomarmos por “teórico crítico” alguém explicitamente filiado à tradição formada no interior do Instituto de Pesquisa Social fundado e dirigido por Max Horkheimer e, posteriormente, Theodor Adorno, seremos obrigados a afastar o epíteto do autor de A integração do negro na sociedade de classes[ii].
Pensando entre os dois polos, o que se pretende a seguir é esboçar alguns traços mais finos a respeito do que seria crítico no fazer teórico e na atuação de Florestan, tendo por referência comparativa os frankfurtianos. Como toda comparação, é preciso refletir sobre seus motivos. Por que fazê-la? Creio, como se verá a seguir, que ela pode ser um mecanismo útil para pôr em relevo alguns elementos da forma de pensar e agir de Florestan.
I
Se vamos examinar traços do modo como o qual Florestan formulava suas interpretações sociológicas, uma dificuldade imediatamente se impõe: trata-se de saber se a obra de Florestan Fernandes guarda uma unidade ou se ela é marcada, como sustentou Barbara Freitag (1987), por uma ruptura epistemológica, determinada pelo golpe militar de 1964 e pela experiência do autor em seu exílio na América do Norte. A questão é espinhosa porque nela são refletidas tanto interpretações interessadas sobre a trajetória social e política de Florestan como também a narrativa do próprio autor sobre si- como indica o brilhante ensaio autobiográfico “Em busca de uma sociologia crítica e militante” (FERNANDES, 1980). Sendo impossível enfrenta-la amplamente, vou me limitar a uma reflexão que se organizará em torno de dois de seus livros fundamentais: A integração do negro na sociedade de classes (1964), tese de cátedra e o ápice da sua longa pesquisa desenvolvida na USP desde os anos 1960 sobre as relações raciais no Brasil, e A revolução burguesa no Brasil (1975), espécie de síntese interpretativa do passado, presente e futuro do país.
Comecemos por A integração do negro na sociedade de classes, obra em que se consolida os resultados das vastas pesquisas empreendidas pelo autor – provisoriamente sintetizadas em Brancos e negros em São Paulo – e por seus assistentes na Cadeira de Sociologia I da Universidade de São Paulo. As preocupações básicas do livro estão bem formuladas no projeto de pesquisa “O preconceito racial em São Paulo” (1951) (FERNANDES, 2008), escrito por Florestan Fernandes e debatido com Roger Bastide, originalmente publicado pelo Instituto de Administração da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo. No projeto de estudo, Florestan assinala sua preocupação em articular três planos analíticos, o informativo, o descritivo e o interpretativo. Para tanto, propunha-se a se orientar pela “Sociologia empírica”, tal como formulada por Émile Durkheim em As regras do método sociológico.
Muito bem. O que há de crítico nessa perspectiva, a princípio tão “tradicional”? Em primeiro lugar, a percepção de Florestan, expressa com clareza marcada no primeiro capítulo do livro – e depois retomada em 1975 -, de que a interpretação sobre a integração do negro na sociedade de classes brasileira pressupõe uma interpretação sólida a respeito do processo formativo dessa mesma sociedade. Nesse sentido, um problema sociológico particular remete, inevitavelmente, a outros de largo escopo. O empirismo de Florestan não supunha uma espécie de recorte ontológico da realidade social.
Outro problema subjacente ao estudo de Florestan a respeito das relações raciais no país é a própria particularidade do processo de modernização pelo qual a sociedade brasileira passava. Nesse sentido, o sociólogo percebe uma decalagem entre o conceito utilizado e o concreto, que se tratava de investigar. Ora, a percepção de que há uma decalagem entre ambas as instâncias e de que é preciso um esforço teórico crítico para o “ajuste reflexivo” entre elas é uma atitude basilar do pensamento crítico. Uma das formas para tal ajuste é a reflexão sobre conceitos, seja por meio da sua formulação, da sua ressignificação ou da sua negação. Exemplo do que estamos sugerindo aparece na preocupação de Florestan com o exame do próprio conceito de “revolução burguesa” quando aplicado no Brasil. Exatamente por isso um trabalho dito “empírico” não pode dispensar uma reflexão teórica – aliás, como bem demonstram as pesquisas empíricas conduzidas pelos frankfurtianos, com destaque para A personalidade autoritária e a célebre “escala F”.
Poder-se-ia dizer que a percepção a respeito da distância entre “ideias” e “lugar” é facilitada em contexto periférico. Porém, seria o caso de recordar que é justamente nessa facilidade que reside a dificuldade. Se as lentes não nos servem, como enxergar a realidade? Desse prisma, a dificuldade é dupla. Por um lado, há os que, na ânsia de ir direto ao objeto, deixam de lado o aparato teórico, identificado unilateralmente com os pressupostos das sociedades centrais – em geral, aquelas sobre as coisas foi construído. Sim, sem dúvida há um elemento de verdade nessa suposição. O problema, como bem percebeu Florestan, é a consequência tirada a partir dela: a de que seria necessário abandonar as ferramentas científicas por inadequação. Por outro lado, há intelectuais que caem no risco oposto e simétrico: o de, na ânsia de compor a vida intelectual hegemônica, aderir ingenuamente a teorias cujos pressupostos históricos e sociais, embora não alheios, são diferentes daqueles que organizam a vida social local. Há, pois, um esforço propriamente dialético na procura de superar essa dicotomia, bem sintetizada naquilo que Antonio Brasil Jr. (2013) chamou de “aclimatação” operada por Florestan em relação à sociologia da modernização.
Avancemos um pouco mais, para agora nos referir ao modo como o qual Florestan encaminha o significado histórico e geral de seu objeto de estudo. Vale ir à letra do autor: “Em sentido literal, a análise desenvolvida é um estudo de como o Povo emerge na história.” (FERNANDES, 2008a). Portanto, o livro trata de dois aspectos gerais simultaneamente, a forma assumida pela sociedade de classes no país e como, no seu interior, o povo foi integrado. Sem a análise do primeiro aspecto, o segundo não se completa e vice-versa (COHN, 2001). Daí a discreta precisão do título de A integração do negro na sociedade de classes, no qual se pressupõe um jogo recíproco entre as formas de um processo social olhado simultaneamente de dois ângulos, um geral e outro específico. Aí flagramos outro traço do pensamento crítico: a capacidade de perceber o geral no particular e vice-versa. Em outras palavras, o estudo da integração social do negro é, simultaneamente, um objetivo específico e um meio para a compreensão de outros aspectos da ordem social competitiva em formação. Dito isso, seria o caso de ter em mente os diferentes significados históricos assumidos por processos sociais em contextos diferentes. Se o déficit da “integração” dos negros na sociedade de classes é pensado por Florestan como uma forma de refletir sobre os dilemas da democracia no Brasil, convém assinalar que este não era o ângulo assumido pelos teóricos críticos alemães. Para Adorno e seus colegas, o, digamos assim, excesso de integração dos trabalhadores na sociedade capitalista regida pela versão monopolística do capitalismo representava o desafio a ser superado. O contraste entre as duas perspectivas não revela, apenas, distintas orientações teóricas ou, valores políticos. Mais fundamentalmente, diz respeito aos sentidos assumidos pelas formas sociais em contextos “centrais” e “periféricos”.
Essa sugestão imediatamente nos enseja outra pergunta, qual seja: quais são, ou como definir, os objetos de pesquisa capazes de nos fornecer essa visada comparativa? Não há a menor condição de nos aventurarmos a responder a essa pergunta teórica, sem dúvida de grande envergadura. Mas podemos recordar a resposta que Florestan deu quando tratou do seu objeto: “E nos aventuramos a ele, por intermédio do negro e do mulato, porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil.” (FERNANDES, 2008a).
A resposta de Florestan pode surpreender aos que, fiéis a uma interpretação encontrada em O capital, imaginam que são os setores mais desenvolvidos – “integrados”, para usarmos o termo do sociólogo – que indicam o futuro daqueles que se encontrariam em um estágio anterior/inferior. É que, ao Florestan de A integração, interessava compreender os obstáculos à formação do que designava como “ordem social competitiva”. Compreender a formação da sociedade de classes no Brasil passaria por entender as dificuldades enfrentadas por aqueles que não conseguiram competir. Naquela altura de sua carreira acadêmica, o autor percebia um vínculo estreito entre “ordem social competitiva” e democracia – um entendimento tipicamente weberiano, segundo o qual a sociedade de classes é organizada segundo os princípios da igualdade civil e da dinâmica do mercado.
Examinado desse ângulo, o estudo empírico de Florestan revela aquilo que, no interior do conceito de “ordem social competitiva”, talvez restasse obscurecido: a competição, para ser efetiva, pressupõe uma cooperação – isto é, uma dose de igualdade/integração entre os seus participantes[iii]. Não à toa, os dois volumes do livro são dedicados ao exame de como se produz e reproduz, incessantemente, uma dinâmica que põe fora de competição os negros no Brasil. A revolução burguesa no Brasil é escrito justamente quando percebe que a sociedade brasileira não produziu uma burguesia capaz de ordenar uma sociedade inclusiva, na qual seus componentes poderiam efetivamente competir (RICUPERO; BELINELLI, 2020). Não é por outra razão que formula o conceito de “autocracia burguesa”, que é, em um primeiro e mais saliente sentido, justamente o contrário de “ordem social competitiva”.
II
Desde o raciocínio construído nas linhas anteriores, poderíamos ser levados a crer que há uma forte continuidade entre a tese de cátedra e o ensaio de 1975. Em parte, o argumento é mesmo esse. Porém, é preciso nuançá-lo e recordar que entre os dois livros ocorre algo fundamental: o golpe de 1964. Com ele, a história do país se altera – impondo ao autor uma reavaliação acerca das suas razões e eventuais limites. Sem dúvida, encontramos aí outro traço importante de um pensamento crítico: a sua disposição de acompanhar os influxos históricos, o que exige uma abertura de espírito capaz de, se assim necessário, reavaliar o pensado e o escrito até ali. A revolução burguesa no Brasil é um ensaio, digamos nos termos do autor, com profunda saturação histórica. Entre os diversos sinais dessa faceta da obra, dois são especialmente salientes.
O primeiro diz respeito à própria utilização da forma “ensaio” – contra a qual Florestan havia se posicionado em anos anteriores. Desse ponto de vista, o relativo inacabamento de A revolução burguesa no Brasil contrasta com a inteireza de A integração do negro na sociedade de classes. Gabriel Cohn (1999, p.395) notou a correspondência entre o seu” formato fragmentado, de projeto interrompido, mas não abandonado” e a própria carreira universitária de Florestan, caçado pelo AI-5.
Dito isso, seria o caso de qualificar o vínculo entre essa forma de exposição e inacabamento. Para tanto, é esclarecedor voltarmos à etimologia da palavra “ensaio”. Acompanhando a reconstituição de Jean Starobinski, recordemos que o termo provém do latim exagium (“balança”), de modo que, em um primeiro momento, “ensaiar” (exagiare) significa “pesar”. Porém, outra etimologia comum seria o vergo exigo, algo como “por para fora”, de modo que “dizer “ensaio” é o mesmo que dizer ‘pesagem exigente’, ‘exame atento’, mas também o ‘enxame verbal’ cujo impulso liberamos.” (STAROBINSKI, 2018, p.13). Talvez por isso Adorno tenha escrito que “o ensaio reflete o que é amado e odiado” e começa “com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer […].” (ADORNO, 2003, p.16-7).
Essas características são facilmente perceptíveis em A revolução burguesa no Brasil, cujo subtítulo, não por acaso, é “ensaio de interpretação sociológica”. Se, por um lado, o livro, especialmente na sua terceira parte, é permeado por um tom amargo, por outro, também é obra de síntese, na qual se articula o acúmulo das reflexões do sociólogo desde o início de sua trajetória acadêmica. Aí o “sociológica” do subtítulo ganha toda a sua especificidade, situando o autor e o seu livro num determinado campo do saber a partir do qual interpela outros pontos de vista, como os da historiografia, da ciência política e da antropologia.
Já o segundo elemento ao qual aludimos acima tem a ver com a rotação de perspectiva teórico-metodológica encontrada no ensaio. Numa palavra: com a reelaboração interpretativa propiciada pela inserção do conceito de dependência em sua obra – o que, de fato, passa a ocorrer de modo sistemático desde “Sociedade de classes e subdesenvolvimento”, texto escrito no final de 1967 para um seminário na Universidade de Münster, na Alemanha. Além de alimentado pela situação histórica em que a América Latina vivia à época, esse desdobramento da reflexão de Florestan também é produto do diálogo com intelectuais latino-americanos, em especial com seus ex-alunos.[iv] Ora, a conjugação entre independência e trabalho coletivo não seria outra dimensão de uma reflexão crítica, ao mesmo tempo afirmadora de sua autonomia, mas capaz de reconhecer e incorporar achados de outros empreendimentos intelectuais?
Antônio Brasil Jr. (2013) sintetiza com clareza as maneiras como as quais a incorporação da perspectiva da “dependência” impactou as análises sociológicas de Florestan Fernandes. Em primeiro lugar, permitiu ao sociólogo inserir a dinâmica internacional na análise do processo de reprodução da sociedade brasileira, na qual se insere outra tensão, aquela entre elementos “arcaicos” e “modernos”. Vale registrar: essa última distinção é analítica, na medida em que tais polos se articulam no processo de reprodução social.
Em segundo lugar, permitiu a Florestan reinterpretar a atuação da burguesia brasileira. Em lugar de tomá-la como “irracional”, pois resistente à mudança social preconizada pela sociologia da modernização, agora a classe capitalista brasileira era percebida na chave da “racionalidade possível”, propiciada pela condição dependente. Por fim, e profundamente conjugado aos dois elementos anteriores, permitiu a Florestan formular sua interpretação a respeito da dimensão “autocrática” do processo de transformação capitalista em um país dependente.
Esperando não exagerar no paralelo, seria o caso de notar, ainda que rapidamente, que essa alteração de visada de Florestan Fernandes guarda aproximações com aquela que Roberto Schwarz desenvolveria em “As ideias fora do lugar” (1973). Publicados com a diferença de dois anos, A revolução burguesa no Brasil e Ao vencedor as batatas, a partir de objetos distintos e por autores não exatamente próximos entre si, guardam uma convergência significativa no que se refere ao problema da crítica da ideologia no Brasil. Ou, o que dá no mesmo, ao problema da crítica da dominação.
“Dominação”, ou “senhorio” (herrschaft), é um conceito jurídico da Antiguidade reapropriado por algumas das principais teorias sociológicas do século XIX. Marx afirmará que “a apropriação da vontade alheia é pressuposto da relação de dominação.” (MARX, 2011, 543 – grifo do original); Weber, depois de reconhecer a elasticidade do conceito e os seus graus e tipos variados, vai em direção similar ao conceituar como dominação “uma situação de fato, em que uma vontade manifesta (‘mandado’) do ‘dominador’ ou dos ‘dominadores’ quer influenciar as ações de outras pessoas (do ‘dominado’ ou dos ‘dominados’) e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações (‘obediência’).” (WEBER, 1999, p.191 – grifo nosso). Os apontamentos dos autores nos endereçam para a mesma questão: como se estabelece a “dominação”? De que maneiras a “apropriação” (Marx), realizada por um senhor, da vontade de um sujeito pode se passar (Weber) por como se fosse de sua livre eleição? Em uma palavra: o enigma está em compreender como a coerção produz consenso.
De uma perspectiva ampla, não seria exagero afirmar que esta é a questão subjacente nos diversos momentos da produção teórica de Florestan Fernandes. Para investigá-la, o sociólogo volta à própria gênese da sociedade brasileira. Daí que Florestan abra A integração do negro na sociedade de classes examinando o processo social e político que “abriu as portas” para o estabelecimento da sociedade de classes no Brasil: a “Abolição” da escravidão, vista, até pouco tempo atrás, apenas como um momento de libertação dos ex-cativos. Nota o sociólogo: “os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva.” (FERNANDES, 2008a). Sem condições materiais, ninguém é senhor de si mesmo; onde deveria haver autonomia – outro nome para emancipação? -, há dominação. É desse ângulo que Fernandes percebeu que a Abolição foi mais centrada na ideia de “libertação” do senhor do que dos ex-escravos., o que a tornou uma “espoliação extrema e cruel”. Na sua gênese, a sociedade de classes brasileira já se instaurava aquém dos pressupostos mínimos de seus princípios – nesse caso, apenas supostamente – fundamentais. Em suma: no próprio ato (supostamente) emancipatório de sua fundação há reforço da dominação.
III
A princípio, há diferenças salientes entre objetos e formas de raciocínio de Florestan o sentido do argumento desenvolvido por Adorno e Horkheimer em A dialética do esclarecimento. Em planos diferentes, o sociólogo paulista está interessado em explicar a gênese e perpetuação de desigualdades numa sociedade de classes periférica, a brasileira; já os dois filósofos alemães formulam uma interpretação ampla sobre a dimensão dominadora presente no interior da razão moderna. Além das diferenças radicais de objetos e ambições teóricas, é o caso de notar outro problema: aquilo que Adorno e Horkheimer procuram desvendar com sua crítica – a falsa universalidade da dominadora razão instrumental subjacente ao próprio capitalismo -, no Brasil era fenômeno socialmente conhecido, mas nem por isso deixava de solicitar explicação. A razão moderna jamais foi sequer capaz de se estabelecer como ideologia propriamente dita tal num país cujas origens sociais remontam à perversa combinação entre trabalho escravo, latifúndio e dependência econômica. O exemplo da “Abolição” dado acima indica o ponto: a igualdade civil foi estabelecida para a manutenção da desigualdade social, numa espécie de Revolução Francesa ao contrário.
Daí que seja relativamente comum encontrarmos no Brasil a tese de que lhe “falta liberalismo”; isto é, a sociedade e o Estado brasileiro precisariam se nutrir dos princípios liberais de modo a superar os resíduos do “antigo regime”, para usarmos expressão cara a Florestan. Sem desconhecer o que chamava, inspirado em Karl Mannheim, de dimensão “utópica” do pensamento liberal – especialmente desenvolvida na primeira parte de A revolução burguesa no Brasil -, a obra do sociólogo paulista acaba por revelar justamente o contrário: como os princípios liberais funcionaram como meios de perpetuação da exclusão social. Exemplo dessa linha de raciocínio é encontrado no exame detalhado que Florestan faz sobre a competição social desigual entre negros e imigrantes na Primeira República. “Por paradoxal que pareça, foi a omissão do “branco” – e não a ação – que redundou na perpetuação do status quo ante.” (FERNANDES, 2008a – grifo nosso).
Esse tema será desdobrado em A revolução burguesa no Brasil, livro em que, à luz de 1964, o sociólogo assinala um “crescente divórcio” entre a “ideologia e a utopia burguesas” e a “realidade criada pela dominação burguesa” (FERNANDES, 2005, p.345), razão pela qual sustenta que é preciso que se ponha de lado todo o “idealismo burguês” com “seus compromissos mais ou menos fortes com qualquer reformismo autêntico, com qualquer liberalismo radical, com qualquer nacionalismo democrático-burguês mais ou menos congruente.” (ibidem).
Entre a esperança pelo estabelecimento de uma “ordem social competitiva” e o diagnóstico sobre a “autocracia burguesa”, o que mudou? No essencial, a expectativa a respeito do potencial equalizador do capitalismo. Se, antes de 1964, esse era visto como um modo de organização social capaz de estimular o rompimento com os arcaísmos da sociedade brasileira, depois ocorre o contrário: Florestan passa a enfatizar os seus limites e a sua crescente necessidade de estabelecer relações sociais e políticas autoritárias para sustentar o seu domínio – reflexão, como se percebe, que o aproxima dos frankfurtianos.
IV
Consciência da distância entre o conceito e a realidade, capacidade de perceber o geral no particular e vice-versa, ênfase nas formas sociais, saturação histórica da reflexão, trabalho coletivo e acento na crítica da dominação foram alguns dos elementos que marcaram a obra de Florestan Fernandes. Seriam eles suficientes para classificá-lo como “crítico”? Do ponto de vista sustentado pelas linhas acima, sim. Porém, pode ser que o ponto essencial não seja esse, mas outro: fundamentalmente, são lições essenciais para a produção de conhecimento sobre a realidade social e, nessa forma, estímulos sólidos para o embasamento de projetos de mudança social – tarefa de toda “crítica” digna desse nome.
Referências:
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ______. Notas de Literatura I. São Paulo: 34, 2008.
BRASIL JR, Antonio. Passagens para uma teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. São Paulo: Hucitec, 2013.
COHN, Gabriel. Florestan Fernandes: A revolução burguesa no Brasil. In: MOTTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (vol.1). São Paulo: SENAC, 1999.
COHN, Gabriel. A integração do negro na sociedade de classes. In: MOTTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um baquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2001.
FERNANDES, Forestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978.
FERNANDES, Florestan. Em busca de uma sociologia crítica e militante. In: _____. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2005.
FERNANDES, Florestan. O preconceito racial em São Paulo (projeto de estudo). In:_____. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca” (vol.1). São Paulo: Globo, 2008a.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era (vol.2). São Paulo: Globo, 2008b.
FREITAG, Bárbara. Democratização, universidade, revolução. In: D’INCAO, Maria Angela (org). O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Unesp, 1987.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
RICUPERO, Bernardo; BELINELLI, Leonardo. Entrevista – Gabriel Cohn: Florestan Fernandes e os limites da autocracia burguesa. In: FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Contracorrente, 2020.
STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? In: PIRES, Paulo Roberto (org.). Doze ensaios sobre o ensaio: antologia serrote. São Paulo: IMS, 2018.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (vol.2). São Paulo/Brasília: Imprensa Oficial/UnB, 1999.
Notas:
[i] Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador associado ao Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (Cedec) e editor da Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB.
[ii] Gabriel Cohn (2018, p.290) comenta que, apesar de ter sido apresentado aos frankfurtianos em aula de Fernando Henrique Cardoso sobre A personalidade autoritária, o tema “Teoria Crítica” não era rotina nos debates das Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) dos anos 1960. Na extensa bibliografia de A revolução burguesa no Brasil – “que reflete os conhecimentos acumulados ao longo de toda uma carreira” – encontramos apenas a referência a O homem unidimensional, de Herbert Marcuse, e a Estado democrático e Estado autoritário e Behemoth, de Franz Neumann.
[iii] É preciso reconhecer que essa dimensão do conceito foi percebida por William F. Ogburn e Meyer F. Nimkoff em “Cooperação, competição e conflito” (In: Cardoso; Ianni, 1965), sem, todavia, o grau de dramaticidade assinalado por Florestan em seu estudo.
[iv] “Em 1966 organizei um curso sobre a matéria, que dei no primeiro semestre, na Faculdade de Filosofia, e explorei as ideias centrais na redação da primeira e da segunda partes de A Revolução Burguesa no Brasil (mantidas inéditas até 1975, embora circulassem, na ocasião, entre alguns colegas, como Luiz Pereira, Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia de Carvalho Franco, José de Souza Martins e outros). […] Outros elementos do nosso grupo trabalhavam, independentemente de mim, na mesma direção: Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Luiz Pereira, Leôncio Martins Rodrigues, Marialice M. Foracchi, Maria Sylvia de Carvalho Franco e outros. Procurei aproveitar o melhor possível a contribuição positiva de todos eles e devo confessar que me foi muito útil a primeira formulação da teoria da dependência, elaborada por Fernando Henrique em 1965, e que chegou às minhas mãos em 1966.” (FERNANDES, 1978 p.27)
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Para citar este texto: BELINELLI, Leonardo. Florestan Fernandes, teórico crítico? Elementos para uma reflexão. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 16 de novembro de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/11/16/florestan-fernandes-teorico-critico-elementos-para-uma-reflexao-por-leonardo-belinelli/
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