Por Philippe Descola[1]
Tradução: Maria José da Silva Aquino Teisserenc (Professora de Sociologia – PPGSA/UFPA)
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Quando do sepultamento do filósofo, o antropólogo se dirigiu a um amigo cuja “filosofia diplomática” permite, no “novo regime climático”, melhor habitar a Terra.
Bruno Latour, sociólogo, antropólogo e filósofo francês. 03 de fevereiro de 2021. JOEL SAGE /AFP
Caríssimo Bruno. Chegou o momento, tão temido, de aprender a viver sem ti. Para tua família de nascimento, primeiro, e para aquela que você construiu casando-se com Chantal, que deverão reacomodar dia após dia os fios descosturados pela interrupção de tua presença, de um amor cujo suporte físico se ausentou. Para a multidão de teus amigos, desamparados por não mais poder retomar a conversação contigo do ponto em que foi interrompida, lembrando, sem dúvida com nitidez, de tuas últimas palavras, do último estado de ressonância entre eles e você.
Cada um de nós possui uma razão particular para te amar, imagens de ti que se destacam de outras, falas proferidas e escritas que vibram ainda como tantos apegos porque elas se tornaram um pouco de ti que em nós sobrevive. Como juntar esse fluxo de afetos, de conceitos, de gestos, divididos por todos aqueles que te conheceram, para que se forme um conjunto que faça jus ao que tu foste para nós todos? Os Achuar da alta Amazônia, de quem muitas vezes falamos juntos, inventaram um tratamento dos mortos, chocante à primeira vista, mas que poderia nos indicar uma maneira de conciliar os múltiplos traços deixados em nós por você.
Na memória de um defunto, dissocia-se brutalmente as lembranças da pessoa amada, o tecido das emoções e os momentos compartilhados, do lembrar das realizações de alguém especialmente estimado por seus parentes e cujas ações orientam aqueles que o sobrevivem. As primeiras, as lembranças pessoais devem ser banidas da memória, por medo de ser levado pelo defunto imediatamente ao país dos mortos, enquanto as segundas são amplamente evocadas para evitar a desagregação da estrutura das relações sociais. Longe de mim, caro Bruno, querer transpor automaticamente, de maneira tão patética esse tratamento da memória dos mortos. Parece-me somente que essa dissociação entre as lembranças de tua pessoa, assume no interior de cada um de nós uma forma diferente, e as lembranças do que você nos legou em tua vida de pensador poderia me permitir falar de ti sem ter a impressão de obrigar o cortejo daqueles que te acompanham hoje a endossar minhas palavras.
Começaste como um filósofo, Bruno, e, de fato, permaneceste filósofo toda tua vida, recolhendo no passar do tempo qualificativos de circunstância – sociólogo, antropólogo, historiador das ciências, até, horresco referens, epistemólogo – os quais apenas definiram de maneira conjuntural um elemento em meio a outros de tuas zonas de interesse e de teus campos de investigação. “É tão linda a filosofia”, dizias ainda em uma entrevista recente; não porque ela nos leve a verdades eternas inatingíveis, não porque ela forneça um idioma livre de contingências permitindo legislar tudo, mas porque ela é um potente antídoto contra isso que chamavas os erros de categoria e permite pensar a diversidade do ser de modo empírico e diplomático ao mesmo tempo.
Empírico, mostrando, como você não cessou de fazer, que as práticas, os enunciados, os modos de existência não são definíveis em si, mas dependem em sua constituição íntima dos modos de sua construção. E esses modos de construção, temos de buscá-los pelo trabalho de campo: nos laboratórios de biologia, nos gabinetes onde se planejam sistemas de transporte, nas salas de audiência do Conselho de Estado, nas redes técnicas que percorrem o subsolo de Paris. Para que as ciências e o direito se pronunciem, para que as técnicas sejam eficazes, para que as mercadorias sejam produzidas e circulem, é preciso uma imensa aparelhagem na qual humanos e não humanos são inextricavelmente combinados e desempenham papeis complementares. Enfim, você destituiu a realidade de sua posição transcendental, ao examinar todas as mediações ventríloquas necessárias ao seu advento.
Entendemos, portanto, o movimento de horror que recebeu essas proposições, em todos aqueles que viviam na ilusão de uma ciência pura, de que os fatos falavam por eles mesmos. Desde que um filósofo indiscreto abandonara o ser isolado e as investigações lógicas sobre as condições de estabelecimento da verdade para desinvisibilizar o que há por trás da robusta materialidade das caixas de Petri e dos interferômetros, dos mecanismos de toda ordem que permitem capturar os fenômenos do mundo físico, triá-los e lhes conferir uma expressão autorizada.
Quantas vezes tive de explicar, infelizmente sem sucesso, a sábios, aliás respeitáveis, porque podia-se dizer que Pasteur não descobriu a doença do carvão ou que Ramsés II, a bem da verdade, não morreu de tuberculose.
Trinta anos de discussões
Uma filosofia diplomática também, tenho dito, não significa que seja prudente ou bombástica; é uma filosofia capaz de compreender as coabitações dando a cada modo de existência o campo de fenômenos que lhe pertence sem invadir o dos outros, para evitar a confusão a que um grande amor pela diversidade poderia levar. Os seres são emaranhados, certamente, mas as condições respectivas de sua construção não devem ser confundidas. E é nesse momento que o método Latour – seguir, descrever e explicitar em toda parte as ligações entre fenômenos heterogêneos para ter certeza de fazer corretamente – encontrou o mais vasto dos emaranhados, aquele do “novo regime climático”; é aqui que um pensamento audacioso e aparentemente paradoxal, que seduziu os mais brilhantes jovens pesquisadores em sociologia das ciências, tornou-se o pensamento do tempo presente, aquele que levou a multidão de teus leitores mundo afora a tomar consciência de que a modernidade foi estabelecida nas nuvens, acima do solo, ao pretender separar os humanos dos não humanos, a natureza da sociedade.
Aqui também nós nos encontramos. Você, partindo do coração da modernidade mostrou que ela foi fundada sobre uma ilusão iniciada na grande divisão entre natureza e sociedade, afirmada em alto e bom som e não respeitada efetivamente pelos praticantes das ciências que não cessam de combinar os dois registros; e eu, habituado por vocação a frequentar gentes que permaneceram à margem da modernização, que tive a felicidade de observar mundos combinando de maneira inextricável pessoas humanas e pessoas não humanas, práticas religiosas e práticas econômicas, operações técnicas e operações políticas. Faz trinta anos que discutimos a interpenetração dessas duas perspectivas.
É nesse momento também, iniciada sua parceria intelectual com James Lovelock que, para a surpresa de alguns dentre nós, você faz Gaïa emergir de um paganismo ultrapassado para reconfigurá-la inteiramente sob a aparência de uma Terra redescoberta de repente na fina película de suas ligações. Você se torna “o pensador da ecologia” como dizem as gazetas. É verdade que é um campo político sobre o qual não se pensava muito, pelo menos em sua variante institucional. Mas, teu pensamento desorienta, Bruno, e é este teu objetivo. Como mobilizar Gaïa na suave transição ecológica? Que fazer da consciência cosmopolítica dos Terrestres nas políticas de redução do consumo de energia? Como conciliar teu trabalho com os livros de reclamações descrevendo o que importa para cada habitante de um lugar, com o que ele ou ela realmente se preocupa, com o plano de mobilidade ou com todas essas maneiras de nos impulsionar em um mundo que permanece desesperadamente moderno.
Eu te vejo muitas vezes, Bruno, como nesses afrescos alegóricos neoclássicos que decoram os muros dos grandes estabelecimentos de ensino superior, muito à frente em um ambiente agreste, cercado de jovens entusiasmados que te acompanham, enquanto o bloco retardado dos Modernos te olha de longe, perplexo e descontente. Que fardo você nos deixou, Bruno! Que responsabilidade! Fazer viver depois de ti teu pensamento, continuar o trabalho de irredução, de fazer denso o raso e desconectado, amar o mundo pelo que ele é, não o universo infinito de Galileu, mas a exuberância das interações que nos permitem nele viver. É para dizer que sentiremos tua falta nessas tarefas. Mas, estamos decididos a continuar fiéis a você.
Publicado em 03 de novembro de 2022.
Texto original:
Notas:
[1] Antropólogo e professor emérito do Collège de France. Publicou recentemente Ethnographies des mondes à venir (Seuil, 176 páginas, 19 euros).
Para citar este texto:
TEISSERENC, Maria. Elogio de Philippe Descola a Bruno Latour: “teu pensamento audacioso tornou-se o pensamento do tempo presente”. Blog do Labemus, 2022. [Publicado 18 de novembro de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/11/18/elogio-de-philippe-descola-a-bruno-latour-teu-pensamento-audacioso-tornou-se-o-pensamento-do-tempo-presente-por-maria-teisserenc/
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