Arte: Mariana Cavalcanti
Corpo como texto e corpo como prática
Quando tratam do corpo, cientistas sociais trazem consigo as lentes analíticas mais gerais que usam para abordar qualquer experiência humana em sociedade. Investigações da corporeidade evocam, em particular, as semelhanças e contrastes entre abordagens textualistas e abordagens praxiológicas da vida societária.
O textualismo aborda a realidade social como “texto” ou “discurso” no sentido amplo da palavra, relativo a quaisquer fenômenos imbuídos de significações partilhadas em uma coletividade. As cores de um sinal de trânsito, um aceno de cumprimento para um amigo visto ao longe, um traço anatômico interpretado como característica de um sexo biológico – tudo isso é exemplo de “texto” ou “discurso” nesse significado ampliado. Visões textualistas do corpo mostram, assim, como ele se torna veículo de significados históricos e culturais particulares. A variabilidade histórica e cultural dos modos de exprimir significado no – e com o – corpo contribui para a crítica de naturalizações ideológicas quanto a essa realidade material que abriga a existência humana – naturalizações como, para ficar em um exemplo butleriano (Butler [2003]), o pressuposto heteronormativo de uma “coerência” autoevidente entre sexo biológico (p.ex., genitalidade masculina), comportamento de gênero (p.ex., modos “masculinos” de falar e gesticular) e desejo heterossexual (p.ex., atração exclusiva por mulheres).
E quanto às teorias praxiológicas? Dando menos ênfase ao “corpo como texto”, praxiologias se concentram sobre o “corpo como prática”: um modo socialmente aprendido de ser-no-mundo que “encarna” ou “somatiza” características da coletividade na qual a subjetividade é socializada.
Como de costume, tais orientações analíticas são distintas, mas não mutuamente excludentes. Elas permitem e, por vezes, até demandam uma série de combinações. Por exemplo, comunicar a feminilidade ou a masculinidade mediante o próprio corpo, transformando-o em “texto” ou “discurso” sociocultural, depende de um aprendizado prático de movimentos e gestos que tornem aquela comunicação eficaz (Judith Butler de novo [2003]). Ideias, representações e outros “textos” sobre o masculino e o feminino são, por sua vez, traduzidos em modos práticos de ser-corpo-no-mundo. A bem da verdade, a socialização da subjetividade envolve uma via de mão dupla entre ideias sobre o corpo, de um lado, e práticas corporais, de outro. Autores como Bourdieu e Foucault, preocupados em combater a visão intelectualista do corpo como mero veículo de intenções e representações mentais, sublinharam o caminho inverso de condicionamento: formas particulares de educação do corpo são capazes de produzir, nos seres humanos, os “estados de alma” correspondentes. A noção de “corpos dóceis” empregada por Foucault em Vigiar e punir (1997: 117-142), por exemplo, transmite menos uma negação do papel da mente do que a tese de que a docilização prática dos movimentos corporais engendra uma docilização correspondente dos estados mentais ou de “alma” (p.ex., o aluno não fica sentado porque sua mente se tornou mais comportada; sua mente é que vai se tornando mais comportada conforme seu corpo se acostuma a ficar sentado – e o mesmo vale para o empregado de escritório). Bourdieu expressou ideias semelhantes (2009: 113).
Ainda mais relevantes para a relação entre o corpo-texto e o corpo-prática são os significados políticos que as práticas corporais assumem como discursos públicos, para além das intenções expressivas dos seus praticantes. Por exemplo, ao debruçar-se sobre a condução do próprio corpo em atividades como lançar uma bola, socar, gesticular ou sentar, Iris Young (2005) notou que os diferentes modos pelos quais mulheres e homens são educados a praticá-las, pelo menos em sociedades sexistas com papéis de gênero rígidos, possuem um sentido convergente: homens são socializados para projetarem-se ativamente no mundo como sujeitos corporais plenos (p.ex., sentando-se de pernas abertas, gesticulando efusivamente), ao passo que mulheres são socializadas a uma conduta ambígua na qual sua condição de sujeito é autocontida por uma consideração de si como um objeto (p.ex., sentando-se de pernas cruzadas, fazendo gestos pouco expansivos). Não é preciso um ousado salto interpretativo para perceber que essa diferença não é um dado da natureza, mas a expressão material de uma sociedade em que as prerrogativas de agência são desigualmente distribuídas por linhas de gênero – aliás, não apenas de gênero como de raça, classe, sexualidade e outros marcadores interseccionais (Ahmed, 2007; Fanon, 2008).
Para dar um exemplo das relações raciais: quando um indivíduo negro circula em espaços públicos em sociedades com alto grau de racismo, como os Estados Unidos e o Brasil, as vulnerabilidades a que o contexto social o sujeita por sua cor da pele constrangem seus movimentos, seja objetivamente a partir de uma fonte ambiental (p.ex., o indivíduo tira despreocupadamente a mão do bolso do casaco e leva um tiro de um policial que o observava), seja a partir de um senso interno dos riscos potenciais de um ambiente racista (p.ex., o indivíduo restringe e estiliza cuidadosamente seus movimentos no shopping, pois sabe que suas chances de ser abordado por seguranças são bem maiores do aquelas de indivíduos brancos) (Souza, 2021).
Sofrimento feminino como texto?
Tais reflexões teóricas prévias preparam o terreno, espero, para uma discussão da filósofa estadunidense Susan Bordo sobre distúrbios psíquicos que, em diferentes contextos histórico-culturais, marcaram o gênero feminino de modo desproporcional, ainda que na intersecção bem particular “mulheres brancas de classe média e média-alta” (1997: 22): a “neurastenia” e a “histeria” nos cenários vitorianos da segunda metade do século XIX; a agorafobia nas sociedades do Atlântico Norte após a Segunda Guerra; a anorexia nervosa e a bulimia na segunda metade do século XX em boa parte do mundo. Tomando a “sintomatologia dessas desordens” como “textualidade” cultural e política (Ibid.: 23), Bordo nota que, quando pensadas à luz das concepções de feminilidade hegemônicas nas suas respectivas conjunturas, elas partilham uma ambivalência: cada uma manifesta traços que sua época tomava como típicos das mulheres, porém exacerbando-os até um ponto em que eles passam a ser socialmente percebidos como patológicos.
Por exemplo, as múltiplas manifestações do que era chamado de histeria intensificavam atributos que o sexismo da época identificava, em doses menores, como propriedades da feminilidade normal: fragilidade e delicadeza; certa instabilidade e imprevisibilidade nas reações emocionais, ainda que numa chave de assimilação condescendente da mulher à criança (p.ex., menos controle emocional, passagens súbitas do riso ao choro etc.); uma existência sexual marcada pela disponibilidade passiva aos desejos do marido; a destituição de seu poder de fala e ação em domínios públicos, tais quais o trato das finanças, a esfera política, os debates científicos etc. (Bordo, 1997: 157-158).
Ao manifestarem tais características de maneira exacerbada, entretanto, os sintomas histéricos as tornavam perturbadoras para os ambientes sociais em que aquelas mulheres se inseriam. Assim, eles mostravam, mediante uma espécie de caricatura, o potencial destrutivo inerente àquelas concepções da feminilidade “normal”: a instabilidade das reações emocionais ultrapassava o limiar da infantilização para tornar-se “ameaça” à estabilidade da vida do marido; a passividade sexual que subordinava a mulher ao desejo do cônjuge passava a obstar as “necessidades” do último ao evoluir para o que à época foi chamado de “frigidez”; a ausência de voz deixava de ser uma metáfora para as restrições econômicas e políticas à agência da mulher e somatizava-se, tornando-se afonia; e assim por diante.
Considerações similares se aplicam à agorafobia em circunstâncias históricas como o pós-Segunda Guerra nas sociedades do Atlântico Norte. A condição feminina tomada por normativa nos anos de 1950 e 1960, pelo menos dentre mulheres brancas de classe média, se associava à domesticidade: o mundo das tarefas caseiras, do cuidado dos filhos, do marido etc. Entretanto, quando a casa se tornava o único lugar seguro – ou mesmo o único lugar tolerável – na experiência agorafóbica, ela passava a comprometer aquelas tarefas percebidas como extensões da domesticidade, como as idas ao supermercado, à escola dos filhos ou às reuniões sociais que “requeriam” a presença da esposa ao lado do marido.
Finalmente, ao vasculhar o significado sociocultural da anorexia e da bulimia na modernidade tardia, Bordo sustenta que ele reflete uma ambiguidade própria à condição feminina nas últimas décadas do século XX: de um lado, a persistência das concepções tradicionais de feminilidade aparece na negação, pelas mulheres, das próprias necessidades orgânicas (fome, sono etc.), negação vinculada ao pressuposto de que ela deve cuidar das necessidades de outros antes (ou acima) de si própria; de outro lado, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, assim como em outros domínios competitivos dos quais elas outrora se encontravam largamente excluídas (p.ex., a academia), se atrelou a um interesse em valores socialmente tidos por “masculinos” – como no caso do autodomínio, em particular aquele exercido pela mente sobre o corpo.
A inserção massiva das mulheres no mercado de trabalho se deu em meio às transformações estruturais do capitalismo tardio, tais como uma flexibilização do trabalho fundada em modelos de subjetividade “empreendedora” que se mostrassem funcionais à nova fase do sistema capitalista. Tal conjunção de fatores históricos impactou as concepções vigentes de feminilidade, na medida em que estas se abriram às influências ideológicas do empreendedorismo individualizante. Nesse contexto, mesmo noções nascidas de preocupações políticas do movimento feminista com transformações estruturais, como aquela de “empoderamento” (desenvolvida no diálogo de Paulo Freire com feministas negras como bell hooks), ganharam uma versão despolitizada e “empreendedorista” quando apropriadas pelo “feminismo da mercadoria” na indústria cultural. A representação das mulheres na publicidade e no cinema, por exemplo, passou a comportar paradigmas individualistas como a executiva ou a advogada de sucesso, ainda que a novidade dessa representação se misturasse a acentos mais tradicionais (p.ex., a suposta associação da competência profissional à atratividade física, à esbeltez e à elegância do vestuário, quando não ao “sucesso” duplo na esfera do cuidado familiar).
Bordo não chega a explicar as origens da valorização estética da esbeltez, mas nota que ela está no cerne das condições socioculturais que favorecem a anorexia nervosa (1997: 141). A combinação entre uma ideologia individualista do empreendedorismo e o elogio cultural da magreza como ideal estético, imposto com virulência muito maior sobre as mulheres do que sobre os homens, fez com que o valor estético da aparência física se tornasse, como outros tantos domínios da vida, uma esfera de severa “responsabilização” do indivíduo pelo seu “sucesso” ou “fracasso”.
É relevante, nesse sentido, que quase todos os casos de anorexia nervosa principiem como dietas convencionais que caem, em algum momento, em uma espiral de radicalização. Para além de suas consequências patológicas no âmbito orgânico, como os problemas de saúde oriundos de déficits nutricionais, a existência de uma patologia no âmbito psíquico costuma ser atribuída ao fato de que, uma vez mergulhada no processo anoréxico, a pessoa frequentemente parece impermeável a quaisquer resistências de especialistas (como médicos e psicólogos) e de seus próximos (como parentes e amigos) – por exemplo, às reclamações de que os custos orgânicos das transformações na sua aparência não seriam justificáveis ou de que seu emagrecimento extremo seria antes feio do que bonito.
Crucial é levar em consideração, entretanto, o quanto tal “desconexão” com a realidade recebe um reforço poderoso de estímulos muito reais que a pessoa com anorexia continua a receber de sua própria cultura, a começar pelo elogio da esbeltez como uma realização dependente de empenho e disciplina. A instilação desses ideais socioculturais na economia psíquica de mulheres com anorexia ajuda a explicar uma experiência altamente gratificante de triunfo pessoal que acompanha, com frequência, o controle exercido sobre o próprio corpo; uma euforia com intensidade suficiente, muitas vezes, para tornar inócuas as objeções e pedidos de indivíduos próximos, como amigos e familiares.
Sofrimento feminino como protesto?
É em diálogo com feministas de inspiração lacaniana voltadas ao significado político da “histeria” que Bordo ensaia uma interpretação de outras sintomatologias, tais quais a agorafobia e a anorexia posteriormente, como formas de “protesto”. O termo possui múltiplas camadas de sentido na reflexão da autora. Por um lado, Bordo entende que tais psicopatologias podem configurar “protestos” objetivos, por assim dizer, na medida em que, ao intensificarem características da feminilidade considerada “normal” em um contexto sócio-histórico, elas exibem o que há de danoso e opressivo naquelas características. Nos trabalhos de autoras como Catherine Clément, a ideia de protesto se vincula, ademais, a uma intencionalidade inconsciente. No caso mais frequentemente discutido da histeria, por exemplo, as “dificuldades” que a paciente gera para homens, como seu marido e seu psicanalista, são interpretadas por Clément como uns tantos modos de ridicularizar o mundo masculino (apud Bordo, 1997: 27-28). Mutatis mutandis, protestos similares se associariam à agorafobia e à anorexia.
Bordo não nega que protestos de intencionalidade inconsciente possam subjazer a condições como histeria, agorafobia e anorexia, mas faz questão de enfatizar os efeitos práticos contraproducentes de tais formas de protesto. Como vimos em um diálogo com Mark Fisher, considerações similares se aplicam à depressão como protesto contra as exigências irrazoáveis que o capitalismo faz às nossas mentes e corpos. Para retornar à ilustração da histeria, por exemplo, por mais que um significado político de crítica à ausência feminina de voz possa ser apreendido no ponto extremo da afonia, tal extremo não significa, decerto, um combate prático efetivo àquela ausência de voz. De modo análogo, a agorafobia radicaliza o confinamento da mulher à esfera doméstica, por mais que perturbe expectativas sociais sexistas quanto à extensão de suas funções domésticas para além da casa. Finalmente, o protesto anoréxico…
“está escrito nos corpos de mulheres com anorexia, não abraçado como uma política consciente nem…refletindo qualquer compreensão social e política. Ademais, os próprios sintomas funcionam para impedir a emergência de tal compreensão. A idée fixe – permanecer magra – torna-se, no seu mais extremo, poderosa a ponto de tornar sem sentido quaisquer outras ideias ou projetos de vida. Paradoxalmente – e frequentemente de modo trágico -, estas patologias de protesto feminino…funcionam, na verdade, como que em conluio com as condições culturais que as produziram” (Bordo, 1997: 159).
Referências
AHMED, Sarah. “A phenomenology of whiteness”. Feminist theory, v.8, n.2, 2007.
BORDO, Susan. Unbearable weigth: feminism, Western culture and the body. Los Angeles: University of California Press, 1995.
_______“O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault”. In: BORDO, Susan; JAGGAR, Alison M. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador UFBA, 2008.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
YOUNG, Iris Marion. “Throwing like a girl: a phenomenology of feminine body comportment, motility, and spatiality”. In: On female body experience. Oxford: Oxford University Press, 2005.
Como citar este texto: PETERS, Gabriel. Sofrimento como protesto: uma nota sobre Susan Bordo e a leitura feminista da “psicopatologia”. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 21 de novembro de 2022]. Disponível em: blogdolabemus.com/2022/11/21/susan-bordo/
Muito interessante, a perspectiva da exacerbação de papéis (e poderia dizer (performatividade?) da feminilidade. Me pergunto quais seriam as outras formas de protesto autodestrutivo e geradores de sofrimento desenvolvidos por mulheres…além dessas patologias. Obrigada por esse artigo “bom para pensar”.