Por Gabriel Peters
Como conversar sobre um neofascista
Publicado em 2018, portanto no ano da eleição do Inominável da Cloroquina no Brasil, o livro Authoritarianism: three inquiries in critical theory reúne os esforços de Wendy Brown, Peter E. Gordon e Max Pensky para pensar as possibilidades e limites da teoria crítica na interpretação dos novos autoritarismos de direita que pululam no mundo contemporâneo. Qual “teoria crítica”? Segundo a breve introdução assinada pelos três, uma abordagem que, partindo dos frankfurtianos, se deixe enriquecer pelas contribuições de outras linhas de teorização: “pós-coloniais, feministas, foucaultianas, antirracistas, queer” (2018: 5). Para ser sincero, essa é mais a promessa inicial e bem-intencionada de um livro cujas orientações analíticas permanecem, no fim das contas, bastante frankfurtianas – aliás, frankfurtianas de primeira geração (aliás de novo, com Adorno aparecendo bem mais do que os demais, como Horkheimer ou Marcuse).
Isto dito, o livro quer mobilizar o legado da teoria crítica de modo não dogmático, como um trampolim para insights teóricos e substantivos que escaparam aos frankfurtianos, seja devido às viradas do próprio processo sócio-histórico, seja porque tais insights se encontram em outras paragens – por exemplo, nas teses de Foucault sobre a relação entre poder e subjetividade, cruciais para a pintura que Wendy Brown faz do “Frankenstein do neoliberalismo” (Ibid.: 7). A contribuição de Brown a esse livro não é somente a mais eclética em aparato conceitual, mas também a mais relevante para a compreensão da nova direita global, a “Internacional Nacionalista” planejada pelo horrível Steve Bannon. Precisamente porque a autora oferece corretivos importantes aos argumentos adornianíssimos de Gordon e Pensky, deixarei o ensaio de Brown para a segunda parte deste texto.
Teoria adorniana e o padrão da propaganda trumpista
A contribuição de Peter E. Gordon ao volume revisita as reflexões de Adorno sobre a “personalidade autoritária”, objeto de mais de uma excelente discussão nesse blog por Bruna Della Torre. Se a primeira parte do ensaio de Gordon é um exercício bem informado de “adornologia”, voltado às complexidades da visão de Adorno sobre a relação entre o psíquico e o político na sociedade de seu tempo, a segunda arrisca um diagnóstico do nosso presente. Nesse diagnóstico, o trumpismo é tomado não como ruptura “fascista” da ordem social vigente, mas como culminância de uma tendência sócio-histórica já em curso bem antes da ascensão de Trump à presidência, a saber, a colonização da política e da consciência pelos mecanismos da “indústria cultural”. No âmbito “adornológico”, o texto mostra que alguns dos questionamentos críticos mais radicais de Adorno sobre as fontes sociais da “personalidade autoritária” terminaram expurgados do famoso volume coletivo publicado com tal título em 1950 (ADORNO ET AL., 2019). Longe de pensar, por exemplo, nos atributos psíquicos da personalidade autoritária como fatores pré-constituídos, uma espécie de variável independente a que a pesquisa sociopsicológica deveria recorrer para explicar a aceitação de regimes políticos autoritários, Adorno acreditava firmemente que aqueles atributos psíquicos eram internalizações dos traços autoritários da ordem social como tal. Nos comentários não publicados sobre o livro, Adorno pintou a personalidade autoritária não como uma patologia individualizada, frente à qual alguns sujeitos poderiam se declarar psicologicamente imunes, mas como “a estrutura total da nossa sociedade” (Ibid.: 71). Ao referir-se, pelo “nossa”, a sociedades de economia capitalista e democracia de massa como os Estados Unidos da década de 1950, Adorno já deixava transparecer sua tese de que “o fascismo”, como explica Gordon, “não é uma ruptura radical com a democracia de massas, mas emerge, em vez disso, como uma intensificação de suas patologias internas” (Ibid.: 75).
Gordon recorre a um raciocínio análogo para problematizar a frequente caracterização do trumpismo como uma versão estadunidense do fascismo, sobretudo quando essa caracterização supõe que a ascensão de Trump ao poder presidencial seria uma anomalia no curso “normal” das coisas, uma descontinuidade radical em relação à anterior vigência da “normalidade” democrático-liberal. Enxergar as coisas desse modo significaria ignorar, segundo o autor, os tantos aspectos em que Trump não representa uma cisão, mas a epítome de processos sócio-históricos que já vinham colonizando o espaço político-cultural nos Estados Unidos nas últimas cinco ou seis décadas. Do comercialismo vulgar ao histrionismo vocal, da vacuidade de ideias à redução do discurso político a slogans repetitivos, o sucesso sociopolítico de Trump representaria menos uma patologia social em si do que “mais uma instância da patologia geral que é a cultura política estadunidense” (Ibid.: 68).
Gordon questiona a hipótese, ventilada por diversos analistas “à esquerda”, de que o populismo raivoso representado por Trump consistiria em um protesto “mal orientado” contra os efeitos do capitalismo global, “cinicamente instrumentalizado” por forças de direita (a narrativa da população esquecida da “América profunda” contra as elites das costas leste e oeste etc.). Aferrar-se a essa explicação significaria esquecer, sustenta o autor, que a maior parte dos seus eleitores não se compôs de trabalhadores brancos pobres, mas de pessoas das “classes médias suburbanas que votaram em Trump simplesmente porque ele era o candidato republicano” (Ibid.: 68). (Infelizmente, Gordon não apresenta qualquer referência estatística ou bibliográfica para fundamentar esta asserção.)
De resto, indo muito além desse lembrete do republicanismo de classe média, o autor defende que o trumpismo se ancora em certos traços da cultura política contemporânea nos Estados Unidos que atravessam as divisões ideológicas entre democratas e republicanos ou, ainda, entre esquerda e direita. Veja-se o caso da transformação da política em entretenimento. Se é fácil notar que as fontes do apelo de Trump para os seus seguidores estão na própria indústria cultural que vendeu sua imagem como empresário rico e entertainer (p.ex., como apresentador do “reality show” O aprendiz), Gordon nota o quanto as performances de Trump também eram, durante as eleições, um artigo de entretenimento para aqueles entre seus opositores que “adoravam odiá-lo”. Caberia perguntar se esse “entretenimento”, hoje, já deu lugar à exasperação, mas é certo que, em uma era de bolhas informacionais demarcadas por divisões ideológicas, o hate-watching contribui para dar visibilidade midiática a figuras extremas do espectro político. Como já foi dito, a “normalização” da presença de Bolsonaro no debate político brasileiro, por exemplo, deveu muito às suas participações em programas como o CQC, nos quais ele aparecia como atração aberrante e divertida, não como uma ameaça política genuína.
A pobreza de ideias que marca o discurso de Trump, por seu turno, também não poderia ser tomada como uma patologia circunscrita a uma pessoa ou a uma fatia do eleitorado estadunidense, mas como signo do esvaziamento da discussão cultural e política como um todo: jornalismo sério e argumentação racional substituídos por trollagens e lacrações; confronto de ideias substituído por bolhas midiáticas que pregam aos já convertidos as mensagens que eles querem ouvir (p.ex., emissoras e jornais de esquerda vs. emissoras e jornais de direita); em vez de uma esfera pública na qual indivíduos se engajam ativamente, a transformação da política em espetáculo publicitário performado diante de um público inativo; e assim por diante.
A introdução de Max Horkheimer para Profetas do engodo ([1949]), livro no qual Leo Löwenthal e Norbert Guterman analisaram o discurso dos “agitadores” fascistas nos Estados Unidos da época, converge com a posição adorniana quanto ao déficit democrático de uma sociedade na qual as atitudes mais íntimas da subjetividade não se formariam autonomamente, mas seriam fabricadas ou “manufaturadas” pela indústria cultural:
“Hoje, sob as condições de uma sociedade altamente industrializada, o consumo é largamente determinado pela produção mesmo no campo das ideologias. Atitudes e comportamentos reativos são frequentemente ‘manufaturados’. As pessoas não ‘escolhem’ livremente, mas os aceitam sob a pressão de poderes reais ou imaginários. (…) A natureza dos estímulos deve ser estudada juntamente com as reações se se pretende apreender a significação real dos fenômenos do comportamento de massa. Caso contrário, pode-se atribuir erroneamente um padrão subjacente de mentalidade pública ao que pode ser, na verdade, o produto de técnicas calculadas de comunicação” (1949: xi-xii).
Gordon transpõe o argumento horkhemeiriano para tratar do papel da Internet, em particular das redes sociais, na configuração de subjetividades políticas na contemporaneidade. Ele revisita a história da Cambridge Analytica, empresa privada cujos perfis psicométricos de eleitores estadunidenses, montados a partir de dados coletados em perfis do Facebook, foram decisivos para vitória da campanha presidencial de Trump em 2016. Em vez de sublinhar a dúbia legalidade da coleta de tais dados ou os hiatos na correspondência entre os perfis psicométricos e os sujeitos empíricos aos quais eles se referem, Gordon tem outra preocupação: salientar que não são as mídias sociais que se adequam às preferências e inclinações de subjetividades pré-constituídas; as subjetividades é que são largamente moldadas pelo modo de funcionamento das mídias sociais: “as mídias sociais de hoje são um instrumento eficaz para a criação de tipos psicológicos e políticos” (2018: 78; grifo do autor).
O ensaísta não chega a explorar exemplos em detalhe, mas não é difícil enxertar concretude nessa tese geral. Os mecanismos de sugestão algorítmica de uma plataforma como o YouTube, por exemplo, são estruturados para “customizar” a oferta de conteúdo ao usuário: com base naquilo de que ele indicou “gostar” a partir de um repertório inicial de dados (p.ex., um vídeo palavroso de Olavo de Carvalho), a plataforma oferecerá mais e mais conteúdos afins (p.ex., Allan dos Santos). Ainda que tal customização obedecesse a um critério puramente mercadológico, não demorou para que uma variedade de efeitos políticos viesse à tona, como o insulamento dos usuários em bolhas informacionais que “pregam aos convertidos”, formam redemoinhos de radicalização ideológica e, com o tempo, criam “realidades paralelas” com “fatos alternativos” (nos termos da trumpista Kellyanne Conway): a mudança climática é uma “farsa”; vacinas são ineficazes e provocam autismo; a Terra é plana (ou, pelo menos, diz o rigoroso Olavo de Carvalho, não está provado que ela não seja). Numa espécie de realização histórica do “positivismo” que subjaz à psicometria da Cambridge Analytica, a redução de subjetividades complexas a “perfis” estereotipados assusta Gordon não por ser falsa, mas precisamente por ser verdadeira, isto é, um efeito “performativo” (em linguagem mais contemporânea) da própria realidade que aqueles mecanismos digitais pretendiam apenas descrever.
Fascismo não é adorno
É uma pena que Gordon não confronte a questão das bases epistêmicas a partir das quais Adorno se supunha dotado de uma consciência crítica capaz de escapar a uma forma de dominação que, segundo seu próprio argumento, seria tão abrangente e profunda na sua colonização das individualidades. Como nota Max Pensky na sua contribuição ao mesmo livro (2018: 88), a denúncia radical do “contexto total de ilusão” (totaler Verblendungszusammenhang) por Adorno demonstra, por si só, que a ilusão denunciada não é total. Essa incoerência no plano epistemológico também transborda, no domínio ético-político, para a acusação de elitismo quietista frequentemente lançada contra Adorno, cuja pintura do mundo administrado desencorajaria a práxis política e se refugiaria, na menos melancólica das hipóteses, em virtuosismos estético-filosóficos como a música de Schönberg ou a prosa aporética da Dialética Negativa.
O esforço de Gordon em mostrar as continuidades maciças entre o ontem e o hoje no que toca ao espetáculo atual do trumpismo e à colonização da política pela indústria do entretenimento é, sob diversas facetas, bastante convincente. Por outro lado, há uma espécie de desequilíbrio dialético nessa tentativa de acentuação de continuidades históricas, o que leva o autor a subestimar o modo como Trump – tal qual Bolsonaro, Órban e outros líderes da nova direita global – vem produzindo danos qualitativamente novos à vida social contemporânea. Isso já era o caso, aliás, antes que a Covid-19 se combinasse, em um coquetel biopolítico pestilento, com a irresponsabilidade letal que o estadunidense e seu deslumbrado admirador brasileiro demonstraram quanto aos efeitos da pandemia. Por exemplo, Gordon parece sublinhar que a “autenticidade da performance” de Trump se reduz a uma “performance de autenticidade”, em que as transformações anunciadas (p.ex., o fim da ditadura do politicamente correto com a ascensão de um troll à Casa Branca) seriam exercícios teatrais para comícios mais do que mudanças genuínas no tecido social:
“Trump invoca constantemente o ‘politicamente correto’ como uma força do mal da repressão liberal [i.e., no sentido estadunidense da “esquerda”], e, assim, é tentador considerá-lo como uma espécie de empresário do que o liberalismo reprimiu. Mas o trumpismo é menos o ‘desmonte’ da repressão do que um evento de teatro político, no qual todo mundo pode vivenciar o desmantelo aparente da repressão sem que nada efetivamente mude. Mesmo sua misoginia e racismo desinibidos, assim como seus comentários demagógicos sobre os muçulmanos, meramente recapitulam um repertório de atitudes estereotípicas que vem caracterizando, há muito, o discurso público nos Estados Unidos. (…) O próprio trumpismo…é apenas outro nome para a indústria cultural, onde a performance do desmonte da repressão serve como um meio de continuar precisamente como antes” (2018: 71; 72; grifo do autor)
Só que não. Antes mesmo da devastação provocada pela pandemia de Covid-19, Gordon já minimizava perigosamente o potencial de estrago novo trazido pelo trumpismo e seus imitadores ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Como estamos lidando com uma realidade multidimensional, a rigor, o ideal seria distinguir entre diferentes esferas societais nas quais os graus de continuidade e descontinuidade com o passado são variáveis. Por exemplo, frente à instrumentalização da raiva populista contra elites econômicas e culturais, faz sentido sublinhar que a legislação econômica avançada pelo governo Trump, longe de ser antielitista, caminha no sentido de uma radicalização da plutocracia (p.ex., menos impostos para milionários e bilionários, desmantelo de políticas sociais etc.). Por outro lado, Gordon não parece atentar para os efeitos que espetáculos “meramente” teatrais de discurso de ódio contra minorias podem produzir por vias diversas – por exemplo, a autorização e mesmo o encorajamento à violência policial arbitrária, pela difusão da crença de que membros de minorias raciais seriam impunemente “matáveis” pelas forças da lei.
Confesso que pularei a contribuição de Max Pensky ao livro, o ensaio “Crítica radical e epistemologia tardia: Tocqueville, Adorno e autoritarismo” (2018: 85-124), já que ele possui significativas sobreposições com os argumentos de Gordon. Pensky também devota a maior parte de seu texto a uma discussão adornológica, ainda que sua exegese do pensador frankfurtiano se deixe enriquecer por paralelos inteligentes entre Adorno e Tocqueville, sobretudo o analista do “individualismo” e do “despotismo democrático” em A democracia na América.
“O Frankenstein do neoliberalismo”, ensaio de Wendy Brown no volume, é, por seu turno, um resumão dos argumentos que ela delinearia em Nas ruínas do neoliberalismo (2019) – e não vai aí nenhuma crítica, já que se trata de um resumão muito bom de um livro muito bom. No mais, a despeito do seu enfoque estadunidocêntrico, Brown tem lições valiosas a ensinar, como bem notou Camila Galetti nesse blog, sobre a forma bolsonarista do monstro autoritário. Quando necessário, juntaremos, então, o ensaio-resumo ao livro.
Neoliberalismo tardio (demais)
Debruçando-se sobre as enrascadas do nosso presente através de “combinações…experimentais de teóricos e disciplinas há muito mantidos em separado por ortodoxias vigilantemente policiadas” (2018, p. 8), Brown constrói um argumento sobre a regressão democrática calcado no improvável trio formado por Hayek, Nietzsche e Marcuse. Lendo o economista austríaco por um prisma foucaultiano, a autora procura, na obra de Hayek, os princípios de uma racionalidade neoliberal que, longe de ser mera mistificação ideológica, tornou-se realidade corporificada nas instituições, práticas e mentalidades no Ocidente das últimas cinco décadas. Poder “produtivo” (Foucault), construtor de mundos (BROWN, 2019, p. 17), a racionalidade neoliberal é interpretada pela autora como um dispositivo que não se restringiu à esfera econômica stricto sensu, mas se espraiou como um novo “senso comum” para “locais de trabalho, escolas, hospitais, academias de ginástica, viagens aéreas, policiamento e toda espécie de desejos e decisões humanas” (BROWN, 2018: 12).
Entre os exemplos do espraiamento da racionalidade neoliberal nessas diversas instâncias da vida social, Brown cita o comentário em que Emmanuel Macron, logo após ser eleito em 2017, afirmou que estava determinado a fazer a “França se mover e pensar como uma startup” (Ibid.). O fato de que Macron tenha se tornado, nos dias que correm, um modelo de civilidade, sobretudo quando contrastado a figuras como Trump e Bolsonaro, indica as questões miradas por Brown com sua noção de um “Frankenstein do neoliberalismo”. Se seu livro de 2015, Desfazendo o demos (Undoing the demos [2015]), focava suas energias críticas no estilo tecnocrata hoje encarnado por Macron, tal como antes o fora por governantes como Bill Clinton, Tony Blair e mesmo Barack Obama, sua obra subsequente sobre as ruínas do neoliberalismo tenciona capturar uma manifestação mais corrosiva de retrocesso democrático. Tendo iniciado o livro sob o impacto traumático da vitória do trumpismo nas eleições estadunidenses de 2016, Brown reconhece ter de interpretar um avatar de antidemocracia cujo feitio agressivamente nacionalista discrepa do tecnocratismo globalizado outrora associado às figuras acima mencionadas e seus colaboradores (p.ex., as elites frequentadoras de Davos). Ao caracterizar tal manifestação como um “Frankenstein do neoliberalismo”, Brown quis destacar, por um lado, que aquela preparação de terreno socioeconômico e sociopolítico resultou das iniciativas neoliberais de “desmantelamento da sociedade” (2019: 23) e “destronamento da política” (Ibid.: 55) desde os anos de 1970, mas também, por outro, que a realidade sócio-histórica que emergiu na esteira daquelas devastações não foi premeditada pelos idealizadores da revolução neoliberal.
No processo em que o novo autoritarismo representado por Trump emergiu das ruínas do demos desfeito pela revolução neoliberal, o destino histórico da noção neoliberal de “liberdade” desempenhou um papel central. Crucial à pintura browniana dessa noção é o seu caráter despolitizado: oriunda de um contexto mercadológico, ela se desconecta do seu sentido “positivo” de virtude cívica e participação democrática. Em vez disso, aquela concepção de liberdade passa a ser plenamente identificada com a persecução de fins privados, sobretudo aqueles atados ao incremento do próprio “valor” individual ou corporativo em cenários competitivos (BROWN, 2019: 119). Tecido sob a terrível sombra do fascismo europeu e do totalitarismo soviético, os alicerces teóricos da razão neoliberal, como apareciam na obra de Hayek e Friedman (Ibid.: 61-64), apreendiam aquelas formações sociopolíticas opressivas como diferentes em grau, mas não em natureza, de outras sociedades marcadas pela intervenção do estado na economia e pelo planejamento social em larga escala. A social-democracia keynesiana e o estado de bem-estar social foram, assim, estigmatizados por Hayek e companhia como etapas de um mesmo “caminho da servidão” que incluía também o fascismo e o estalinismo. Pensado nessa moldura ético-filosófica, o modelo neoliberal de liberdade extravasa o âmbito da economia para transmutar-se em uma visão da vida humana in toto. Nessa cosmologia, “toda a sociedade é como um mercado e é mais bem organizada como um mercado, e toda liberdade (pessoal, política, social, cívica etc.) tem uma forma de mercado” (2018: 16). Traduzido em um programa político e, de modo mais profundo, em uma forma de “governamentalidade” (Foucault), o neoliberalismo que concretiza o programa hayekiano nas últimas décadas do século XX, via Reagan ou Thatcher, avança na privatização de bens até então públicos e, ao fazê-lo, busca incrementar o espaço da “responsabilidade” individual nos mais variados âmbitos. A agenda de proteção da “esfera privada” frente à ameaça estatal de “invasão” injustificada, tema clássico do liberalismo político, passa de defensiva a ofensiva: uma empreitada de ampliação da liberdade privada com vistas à conquista de mais e mais domínios de vida “desestatizados” (2019: 89-122).
Está pavimentado o caminho para que a liberdade de iniciativa econômica se hipertrofie a ponto de transmutar-se na reivindicação de “liberdade” frente a coerções não apenas do estado, mas também de outras normas da convivência democrática, como igualdade, inclusão e até mesmo civilidade. Como indica a figura caricatural do filhinho de papai que esbraveja contra os programas sociais do governo sem perguntar-se por um instante sobre a arbitrariedade das vantagens que ele obtém de sua herança, a corrosão dos valores públicos pela invasão de valores privados enseja uma espécie de familismo no qual princípios normativos impessoais (igualdade, laicidade, pluralismo, inclusão) vão dando lugar aos valores morais tradicionalmente associados à “família”. (A realidade da família, aliás, foi reconhecida por Ms. Thatcher na parte menos conhecida da infame frase em que a amiga de Pinochet negou a existência da sociedade.[i]) A coletividade supostamente inexistente entra, assim, pela porta dos fundos, na forma não somente do “familismo”, mas também de outros imaginários morais particularistas, marcados pela distinção forte e absoluta entre “nós” e “eles”: raça, nacionalidade, sexualidade, religião etc. (Idem, p. 129-134).
A democracia é atacada, pois, por duas fontes de privatização. Na esteira do encolhimento dos bens públicos por valores capitalistas e das desigualdades engendradas pela privatização econômica, uma segunda ordem de privatizações subverte a democracia com valores antidemocráticos “familistas” e particularistas – o compromisso com o pluralismo religioso e a laicidade das instituições, por exemplo, é combatido por uma defesa da nação “cristã”, do casamento “cristão” e da família “cristã”. Em ambas as formas de “privatização” do político, a linguagem liberal dos direitos individuais é estrategicamente mobilizada em prol daqueles particularismos (p.ex., a recusa em prestar um serviço a um casal homossexual passa a ser defendida como “liberdade de expressão religiosa”).
Em suma: se a sociedade não existe, ilegítimos seriam quaisquer valores, demandas e restrições que limitem a liberdade individual em nome da convivência social civilizada. Nesse contexto, atos e ditos ofensivos (racistas, machistas, homofóbicos etc.) tornam-se expressões de resistência corajosa ao “politicamente correto” e outras ameaças à liberdade (nesse caso, à liberdade de ser chauvinista), resistência capitaneada por figuras públicas (p.ex., apresentadores de jornal, políticos, youtubers) cujo apelo carismático se alimenta daquela aura da “coragem de ser ofensivo”: “a oposição de esquerda ao sentimento supremacista é apresentada como um policiamento tirânico, enraizado no mito totalitário do social e ancorando-se nos poderes coercitivos do estado” (Idem, p. 21).
Mas o que responde, então, pelo componente “autoritário” da liberdade pregada pela nova direita, isto é, pelos seus próprios apelos aos “poderes coercitivos” do estado na manutenção de fronteiras (p.ex., o “muro” de Trump), nas restrições à liberdade de cátedra (p.ex., a perseguição a professores encorajada pelo “Escola sem [sic] Partido”), no discurso hiperpunitivista (p.ex., “direitos humanos para humanos direitos”) e assim por diante? Ressalvando que chauvinismos como “os ataques a imigrantes, muçulmanos, negros, judeus, queers e mulheres” não foram advogados por Hayek, Friedman e galera neoliberal, Brown quer mostrar que tais ataques estão, ainda assim, entre os efeitos não intencionais da virulenta artilharia neoliberal contra os apelos à justiça social redistributiva. O fato de que tais efeitos foram impremeditados reflete-se, por óbvio, no próprio recurso da autora à metáfora de “Frankenstein” para designar a realidade que brota das ruínas do demos implodido pelo neoliberalismo.
Masculinima moralia; ou o ressentimento do homem branco
Para explicar a criatura que emerge dos destroços gerados pelo neoliberalismo, Brown parte das consequências socioeconômicas da revolução neoliberal sobre brancos das classes populares e médias das “regiões suburbanas e rurais das nações euroatlânticas” (2018, p. 24). De modo confuso, afirma ela, muitos desses indivíduos já percebiam algum vínculo entre o declínio da soberania econômica do estado-nação, a queda na qualidade de suas próprias condições de vida e, finalmente, como resultado da globalização, uma diminuição da homogeneidade étnica (branca) em suas sociedades. Segundo a autora, a intuição desse vínculo era em si correta, mas foi instrumentalizada por forças e discursos de direita que jogam as consequências socioeconômicas funestas da globalização neoliberal na conta da invasão do país por imigrantes perigosos (“terroristas”, “criminosos”, “roubadores de empregos”). Entre trumpistas nos Estados Unidos, defensores do Brexit na Inglaterra e partidários de Le Pen na França, promessas de restituição da potência econômica e política de outrora se atrelaram, assim, a uma agenda étnico-cultural de defesa das supremacias de raça e gênero que vigoravam nos “bons tempos”. Para a autora, esse discurso combina o reconhecimento genuíno da piora nas condições socioeconômicas e da queda no poder de influência política desses homens trabalhadores brancos com uma ideia falsa: a de que aquela piora e essa queda teriam sido especialmente danosas aos “homens” e aos “brancos”. Distorcido pelas lentes da extrema direita, polidas ad nauseam em veículos como rádios e estações de TV conservadoras, o senso de “exclusão” vivido por essa população passa a ser, em larga medida, “experienciado…não como declínio econômico, mas como um direito perdido à supremacia política, social e econômica” (2018, p. 25). O resultado é um agressivo ressentimento quanto a prerrogativas perdidas:
“Ressentimento, rancor, ódio, reação à humilhação e ao sofrimento – tudo isso está certamente em jogo no populismo de direita e no apoio a lideranças autoritárias hoje. Entretanto, essa política do ressentimento emerge daqueles historicamente dominantes conforme eles sentem sua dominância refluir – conforme a branquitude, especialmente, mas também a masculinidade, fornecem proteções contra os deslocamentos e perdas que quarenta anos de neoliberalismo legaram às classes trabalhadoras e médias. Esse ressentimento varia, portanto, em relação à lógica nietzschiana enraizada nas vicissitudes psíquicas da doença. Embora ligadas pela humilhação, as frustrações da fraqueza (existencial ou histórica) e do poder ofendido estão mundos à parte, o que é suficientemente óbvio nas respostas radicalmente diferentes entre brancos de classe trabalhadora e negros de classe trabalhadora aos deslocamentos e rebaixamentos produzidos pelos efeitos econômicos neoliberais. Apenas os primeiros são ressentidos pelo seu destronamento” (2019, p. 175).
Nesse ponto, Brown recorre à filosofia de Nietzsche, não para abraçar a atitude (trans)moral do pensador alemão, é claro, mas para aprender com seu retrato psicológico de como o sofrimento, em particular aquele advindo da humilhação, encontra pelo ressentimento um caminho de transmutação em condenação moralizante da sua fonte. Ainda que se concentrasse sobre a “moralidade escrava” dos fracos e oprimidos, cuja autovalorização moral seria a recompensa psicológica por seu ressentimento quanto aos fortes e poderosos (não, Nietzsche não era de esquerda), o filósofo-dinamite alemão também localizou esse tipo de mecanismo psicológico na moralidade de racistas, antissemitas e outros tipos odientos. Ao capturar o ressentimento como um componente nítido dos discursos da nova direita (p.ex., contra o orgulho gay, a autoassertividade negra, o empoderamento feminino etc.), Brown afirma que “a mais importante contribuição de Nietzsche para teorizar a conjuntura corrente é o seu tratamento do niilismo” (2018, p. 26). Aqui, a emergência do Frankenstein da nova direita, brotando da terra arrasada pela razão neoliberal, torna-se nítida: o niilismo do qual fala a autora não se refere à morte dos valores, mas à sua transformação em instrumentos maleáveis conforme os interesses econômicos e políticos, bem como as pulsões afetivas, daqueles que os mobilizam. A instrumentalização dos valores por impulsos como o ressentimento inclui os valores da “verdade” e da “argumentação racional” quando convicções sobre fatos (p.ex., os efeitos da cloroquina, a realidade da mudança climática provocada pelo ser humano, a [não] conexão entre vacinas e autismo etc.) respondem não à evidência empírica ou ao argumento racional, mas às suas fontes emocionais e políticas. Em contraste com a “criatividade moral” engendrada pelo ressentimento judaico-cristão segundo a interpretação nietzschiana, o ressentimento por trás da nova direita é niilista, na medida em que seu propósito primordial, quando não único, é a vingança impulsionada pelo ódio.
Festas da morte; ou o niilista unidimensional
Brown conecta o niilismo da era contemporânea ao que chama, tomando de empréstimo um termo de Marcuse, de “dessublimação da vontade de poder”. Segundo Nietzsche e Freud, o investimento pulsional em valores consiste em um recurso importante de sublimação dos impulsos do animal humano, sublimação que implica sua dose de frustração, mas contribui, por seu turno, para a vida “civilizada” (Freud). Com a corrosão de valores deslanchada pelo niilismo, a vontade de poder se dessublima e retorna à sua manifestação nua e crua. Ligada à concepção negativa de liberdade encorajada pelas formas neoliberais de subjetivação, a vontade de poder encontra suas autoafirmações na forma de uma política do “foda-se!”, isto é, de ditos e feitos que não precisam prestar contas a ninguém, da recusa de assumir qualquer restrição ao próprio comportamento (p.ex., utilizar máscara na rua para evitar a possível contaminação de outros, reduzir as próprias emissões de carbono) em nome de cuidado ou responsabilidade por outros seres humanos, outras espécies ou mesmo pelo planeta como um todo. O caráter atraente desse tipo de comportamento para certo tipo de psique tem a ver com o senso de libertação “festiva” que ele engendra (2019: 164), a qual passa muito frequentemente para a provocação ativa – por exemplo, a catarse de não ter de monitorar o próprio discurso frente à “vigilância” politicamente correta torna-se gozo na provocação de sensibilidades “politicamente corretas” mediante falas racistas, machistas, homofóbicas etc. (Ibid.: 171). Como escrevi noutro canto, o carisma de figuras como Bolsonaro e Trump entre seus seguidores tem nesse traço uma de suas fontes. Contrapostos aos “políticos profissionais” cujo discurso é a defesa hipócrita da virtude, os indivíduos que dizem as coisas mais ofensivas aparecem àqueles seguidores como os únicos autênticos, imbuídos da “coragem” moral de dizer o que “realmente” pensam.
“Dessublimação”, como disse, é palavra marcusiana. Se as primeiras tentativas de conexão entre marxismo e psicanálise na explicação sociopsicológica do autoritarismo, como aquela promovida por Wilhelm Reich, conferiam um papel de proa à conexão entre dominação e repressão sexual, esforços posteriores, como o de Marcuse, tiveram de partir de um fato inegável: as sociedades capitalistas ocidentais da segunda metade do século XX não se fundavam naquele choque tão intenso entre princípio de prazer e princípio de realidade que vigorava na época vitoriana de Freud. Em vez de fincado na repressão de energias pulsionais, especialmente daquelas relacionadas à sexualidade, o estágio do capitalismo sobre o qual Marcuse escrevia instrumentalizava tais energias no interesse da produção, da publicidade e do consumo. (O filósofo alemão sublinhou esse fato, aliás, bem antes que Foucault avançasse sua famosa crítica da “hipótese vitoriana” no primeiro volume da História da sexualidade.). Seja como for, pessimista teimoso como só um frankfurtiano (mesmo na Califórnia) pode ser, Marcuse não considerava tal liberação instintual genuinamente emancipatória. Para ele, tratava-se de um processo paradoxal de “dessublimação repressiva” pelo qual a ordem social capitalista passava, como diz Brown, a apresentar…
“…bastante prazer, inclusive aquele obtido por meio de restrições radicalmente reduzidas sobre a sexualidade,…mas não emancipação. Energias instintuais, em vez de serem diretamente confrontadas pelos mandatos da sociedade e da economia, portanto não mais requerendo repressão pesada e sublimação, são agora cooptadas pela e para a produção e o marketing capitalistas. Como o prazer, e especialmente a sexualidade, estão em todo lugar incorporados à cultura capitalista, o princípio de prazer e o princípio de realidade abandonam seu antigo antagonismo. O prazer, em vez de uma insurreição contra o tédio e a exploração do trabalho, torna-se uma ferramenta do capital e gera submissão. Longe de ser perigoso ou opositivo, não mais refugiado na estética ou na fantasia utópica, o prazer torna-se parte da maquinaria” (2019: 165).
Dentre os impulsos liberados em tal dessublimação, encontram-se aqueles oriundos de uma fonte psíquica que Freud, sob o impacto brutal da Primeira Guerra, teorizou apenas tardiamente: Thanatos. Segundo a interpretação marcusiana, sendo a liberação de Eros parcial e restrita ao domínio da sexualidade, ela poderia conviver com a intensificação de formas de agressividade, fosse sublimada (p.ex., a transformação do “debate intelectual” [sic] em espetáculo de xingamentos) ou não sublimada (p.ex., um jornalista é fisicamente agredido em manifestação de bolsolavistas). Notando o caráter não somente “alterdirigido”, mas também, por vezes, autodirigido da pulsão de morte, Marcuse afirma que a normalização da violência acostumava os indivíduos daquela nova ordem “ao risco de sua própria dissolução e integração” (palavras do próprio Marcuse citadas por Brown [Ibid., p.168]). Se a ilustração dileta de Marcuse nos tempos de Guerra Fria dizia respeito à normalização de uma corrida armamentista nuclear potencialmente apocalíptica, Brown não tem problemas em localizar o mesmo flerte da destruição com a autodestruição em fenômenos como a negação contemporânea da mudança climática e, acrescentaríamos hoje, a irresponsabilidade letal de Trump e do seu imitador tupiniquim frente à pandemia de Covid-19.
Conclusão: quem é mesmo o monstro?
Juntando tudo, pintado está o retrato do Frankenstein parido pelo neoliberalismo. Quer tenha aparecido nas marchas neonazistas de Charlottesville ou em domingos no Palácio do Planalto, o que emerge, diz Brown, é uma…
“…criatura ofendida, reativa, moldada pela razão neoliberal e seus efeitos, criatura que abraça a liberdade sem o contrato social, a autoridade sem legitimidade democrática e a vingança sem valores ou horizonte de futuro. Longe daquele ser calculador, empreendedor, moral e disciplinado imaginado por Hayek e seus parentes intelectuais, este é raivoso, amoral e impetuoso, movido por uma humilhação e uma sede de vingança não declaradas. A intensidade dessa energia é em si própria tremenda, além de facilmente explorada por plutocratas, políticos de direita e magnatas da mídia de tabloides decididos a agitá-la e a mantê-la estúpida. Ela não precisa alvo de políticas que possam produzir para ela melhoras concretas, pois procura sobretudo a unção psíquica de suas feridas. Pela mesma razão, ela não pode ser facilmente pacificada – já que é alimentada sobretudo por rancor e desespero niilista. Não se pode apelar a ela mediante razão, fatos ou longa argumentação porque ela não quer saber e não é motivada pela consistência ou profundidade dos seus valores ou pela crença na verdade. (…) Não tendo nada a perder, seu niilismo não é apenas negador, mas festivo e mesmo apocalíptico, decidido a levar a Grã-Bretanha para o abismo, negar a mudança climática, apoiar poderes manifestamente antidemocráticos ou colocar um ignorante instável no posto mais poderoso da Terra” (Ibid.: 36).
O retrato é bem pintado; quando Wendy Brown escreveu essas palavras, o exemplo trágico da irresponsabilidade de trumpistas e bolsonaristas frente à Covid-19 estava ali na esquina da história. Talvez só caiba alguma objeção, no fim das contas, à metáfora do “Frankenstein” utilizada por Brown. O símile é utilíssimo para enfatizar os efeitos terríveis, porém impremeditados, que figuras como Hayek, Friedman e os ordoliberais contribuíram para engendrar, no mesmo passo em que marca a profunda diferença que separa tais personagens comparativamente mais civilizados dos neoautoritários que avançaram, nos tempos que correm, sobre a terra devastada pelo desmonte neoliberal do demos. Ainda assim, como ensinou Judith Butler – alvejada junto com a própria Wendy Brown por imbecis fascistas em um aeroporto brasileiro em 2017-, deve-se ter cuidado em recorrer tão facilmente a figuras da “monstruosidade”. Por vezes, o que elas revelam é somente um horror, dos mais reacionários, diante do que é “inclassificável” ou de difícil classificação conforme as matrizes de inteligibilidade costumeira – frequentemente a serviço de relações de hierarquia, desigualdade, violência e opressão.
A consequência mais prosaica desse raciocínio é também o lembrete de que a criatura engendrada pelo Doutor Frankenstein não merece, no fim das contas, ser comparada a Trump e a Bolsonaro. Para além do inconveniente de serem reais, esses dois são também infinitamente piores.
Notas
[i] Em crítica a um interlocutor que propunha uma taxação de 100% das heranças familiares, Milton Friedman afirmou que eram as famílias, não os indivíduos, a unidade fundamental para a compreensão dos incentivos fundamentais da conduta econômica: “Tendemos a falar de uma sociedade individualista, mas, na verdade,…[trata-se de] uma sociedade de famílias, e os maiores incentivos, os incentivos que realmente motivam as pessoas, são, em ampla medida, os incentivos da criação de família, de estabelecer suas famílias em um sistema decente” (1977: 24). Como mostrou Melinda Cooper (2017), várias empreitadas neoliberais de desmantelamento do estado de bem-estar social se valeram de um contraponto familista, isto é, de apelos às “responsabilidades” da família tradicional precisamente naquelas áreas alvejadas pela “desestatização”, como a educação, a saúde e o cuidado de crianças. A convergência entre a agenda neoliberal e a agenda neoconservadora no discurso de “responsabilização das famílias” também ajuda a explicar, segundo Brown, como o neoliberalismo ajudou a preparar o terreno, paradoxalmente, para movimentos e regimes políticos ultranacionalistas. Ao encorajar uma atitude do tipo “primeiro os meus” ou mesmo “apenas os meus”, uma moralidade familista favorece o cultivo de outros particularismos morais, como os de nacionalidade – eis, então, que “o neoliberalismo planta as sementes de um nacionalismo que ele formalmente repudia” (2019: 117).
Referências
ADORNO, T.; FRENKEL-BRUNSWIK, E.; LEVINSON, D.; NEVITT SANFORD, R. The authoritarian personality. London: Verso, 2019.
BROWN, W. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.
________In the ruins of neoliberalism: the rise of antidemocratic politics in the West. New York: Columbia University Press, 2019.
BROWN, Wendy; GORDON, Peter E.; PENSKY, Max. Authoritarianism: three inquiries on critical theory. Chicago and London: University of Chicago Press, 2018.
COOPER, Melinda. Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism. New York: Zone Books, 2017.
FRIEDMAN, Milton. “What is America?”. Lecture delivered at the University of Chicago, 3 October 1977. [https://miltonfriedman.hoover.org/friedman_images/Collections/2016c21/BP_1978_2.pdf]
HORKHEIMER, Max. “Introduction”. In: LOWENTHAL, Leo; GUTERMAN, Norbert. Prophets of deceit. New York: Harper & Brothers, 1949.
LOWENTHAL, Leo; GUTERMAN, Norbert. Prophets of deceit. New York: Harper & Brothers, 1949.
Para citar este texto: PETERS, Gabriel. Frankenstein, Trump, Bolsonaro: figuras do novo monstro autoritário. Blog do Labemus, 2020 [publicado em 2 de novembro de 2020] Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/11/03/frankenstein-trump-bozo-figuras-do-novo-monstro-autoritario/
Excelente texto, Gabriel. Aliás esse é um livro que precisa mesmo ser mais debatido no Brasil!
Obrigado, Bruna!
Ótima análise do atual Momento…….
Valeu!